A Academia Brasileira de Ciências (ABC) promoveu a Conferência Internacional “Como Ciência e Tecnologia Podem Contribuir para a Redução da Pobreza e da Desigualdade”, entre 27 e 29 de março, no Museu do Amanhã. O evento teve o apoio de BNDES, Capes e do próprio Museu.

A relevância dos ODSs para a desigualdade, pobreza e tecnologia

Especialista em Desenvolvimento Internacional no Departamento de Políticas da Universidade de York e do Centro e Interdisciplinar de Desenvolvimento Global, no Reino Unido, a economista Ingrid Harvold Kvangraven proferiu a palestra especial que abriu o segundo dia da Conferência Internacional “Como Ciência e Tecnologia Podem Contribuir para a Redução da Pobreza e da Desigualdade”, promovida pela Academia Brasileira de Ciências (ABC) e parceiros.

As pesquisas de Ingrid são focadas na história do pensamento econômico, macroeconomia, comércio e finanças globais e economia política do desenvolvimento, incluindo o papel dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODSs) e das instituições financeiras internacionais no desenvolvimento.

A economista colocou questões sobre a necessidade de metas globais sobre o tema da pobreza e desigualdade, e a real capacidade dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável para atingi-las,

Ele considerou que ter metas em comum ajuda os países a alinhar expectativas e esforços de modo a alcançar sucesso. Para isso, porém, é necessário que haja alguma flexibilidade. “Não podem haver metas fechadas: será sempre necessário revisá-las e replanejar, porque o conhecimento está sempre evoluindo”, afirmou Ingrid. Além disso, é preciso levar em conta a percepção pública sobre a legitimidade das propostas. E a avaliação do que seja sucesso em relação a estas metas atingidas também é relevante e passível de discussão. “É muito claro o que deve ser feito, mas não quem deve fazê-lo. Existe um esforço grande, novos relatórios sendo feitos, mas não se sabe exatamente o que quer dizer sucesso. Os países estão se auto avaliando, existe uma coordenação, mas não há consenso em como medir o sucesso”, pontua.

O começo deste movimento se deu com o estabelecimento dos Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (ODMs). A ideia repercutiu positivamente e em 2015, o então secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU) Ban Ki-Moon afirmou que este processo de definir metas de acompanhamento do desenvolvimento promovido pelos objetivos do milênio já havia tirado um bilhão de pessoas da pobreza extrema. Assim, foram criados os ODSs, em 2015, bem mais abrangentes do que os ODMs.

O ODS relativo à pobreza, na visão de Ingrid, é ambicioso. “Acabar completamente com a pobreza extrema envolve obter recursos de fontes diversas e ampliar a cooperação para o desenvolvimento”, refletiu. Segundo ela, se se mantiver o ritmo em que a pobreza absoluta foi reduzida entre 1993 e 2008, o mundo levaria ainda 100 anos para atingir o objetivo.

Reduzir a desigualdade dentro e entre os países também não é uma meta fácil – este é o ODS 10. Ingrid diz que isto envolve, no mínimo, “reduzir custos de migração; evitar arranjos institucionais que produziram, historicamente, níveis extraordinários de desigualdade; garantir direitos iguais aos recursos econômicos; e instalar sistemas eficazes de proteção social.”

Tecnologia é importante, afirmou Ingrid, complementando: “Mas não adianta levar para os países e ajudar na implementação. Deve ser sobre fortalecer patentes”. A palestrante esclarece que as maiores barreiras relativas à transferência de tecnologia, como o sistema internacional de propriedade intelectual e os acordos bilaterais de comércio, simplesmente não constam dos ODSs. “A tecnologia é abordada mais pelo viés da quantidade de recursos do que pelo tipo de financiamento obtido ou seus efeitos”, destacou Ingrid.

E para extrair o melhor dos ODSs, Ingrid afirma que flexibilidade é importante: muitos itens menores tomam o foco do objetivo mais amplo. A ideia deve ser experimentar, aprender e discutir, nacional e internacionalmente, de forma democrática. “Não há receitas prontas. Há muitos esforços para desenvolver novos indicadores e relatórios, mas pouca discussão sobre como o progresso vai ser medido. Focar nos indicadores não necessariamente leva a atingir os objetivos maiores”, apontou. “Nem tudo que conta pode ser contado”, alertou a pesquisadora.

Inovação como ferramenta para redução da pobreza e da desigualdade

A sessão intitulada “Inovação como ferramenta para redução da pobreza e da desigualdade” contou com o físico Yousuf Maudarbocus como moderador. Ele é diretor do Conselho de Proteção de Radiação e vice-presidente da Rede de Academias de Ciências Africanas.

Yousuf acredita que a inovação tem potencial para enriquecer as novas estratégias de desenvolvimento. “Se usarmos novas tecnologias de modo correto, podemos fazer com que os pobres deem um salto e alcancem, de fato, um avanço. É por isso que devemos adotá-las”, diz.

  • Reconexão com valores éticos para mudar o mundo

Empreendedor social, Rodrigo Baggio é fundador e presidente da Recode/ CDI International, uma ONG global com presença em sete países e 689 centros de empoderamento digital. Desde

1995, o objetivo da ONG sem fins lucrativos é transformar comunidades no Brasil e América Latina por meio do aumento do acesso a computadores e educação para a cidadania e empreendedorismo. O público-alvo é composto por jovens em situação de vulnerabilidade social.

Há 24 anos ele iniciou este projeto, por acreditar que tecnologia é um direito do cidadão. A primeira iniciativa foi uma grande campanha de arrecadação de computadores, a “Informática para todos, com uso de metodologia inspirada no educador Paulo Freire.

“Começamos numa escola na favela de Santa Marta, em Botafogo, no Rio de Janeiro, que estava dominada por uma facção criminosa. Lá construímos a Escola de Informática e Cidadania (EIC), o primeiro centro tecnológico em favela no Brasil. Não tínhamos nenhum exemplo a seguir, fomos pioneiros.” Com o apoio da igreja católica e uma ONG, o centro foi inaugurado, com uma fila de 300 pessoas na porta, além de TVs e jornais. Por terem convidado os líderes da comunidade, líderes de outras dez comunidades pediram para que fizessem um núcleo similar em suas regiões, e assim foi feito.

“O importante sobre nossa prática é que nunca pretendemos ensinar as pessoas só sobre tecnologia. Utilizamos como referência a metodologia de Paulo Freire, que alfabetiza pessoas baseada nas suas experiências. Então, quisemos que as pessoas falassem de sua realidade, que identificassem desafios pelos quais tivessem paixão”, relatou Baggio. “É um projeto de empoderamento. Assim eles se engajavam de fato e promovíamos uma atitude através da ação.” Rodrigo explica que o trabalho foi desenvolvido a partir de quatro habilidades socioemocionais: criatividade, inovação de impacto, resolução de problemas e trabalho em equipe.

Hoje, 20 anos depois, sua equipe gerencia quase 690 unidades em outros países. “Essa semana começamos em El Salvador”, comentou. A Recode está treinando 1,7 milhão de pessoas em todos os estados brasileiros em sete países, tendo recebido mais de 60 prêmios internacionais.

Baggio deu exemplo de recuperação social de jovens envolvidos com tráfico, de comunidades indígenas que escreveram para as autoridades de invasores de países vizinhos,

No Brasil, 70% da população tem acesso à internet, com acesso principal a Whatsapp e redes sociais. Mas só é usada para diversão e não para empoderamento ou para adquirir conhecimento. Mas estas mesmas pessoas poderiam encontrar empregos melhores e o PIB brasileiro pode crescer. “Isso pode acontecer em qualquer pais do mundo e provocar mudança na vida das pessoas”, afirma o palestrante.

Ele já tem parceria com o Facebook para treinar professores e alunos de escolas públicas em áreas remotas, com vídeos de realidade virtual que podem trazer empatia e conscientização sobre a realidade de outros países. Um grupo de alunos de uma escola pública em Goiás, por exemplo, fez um vídeo mostrando a vida de uma pessoa que reciclava lixo. “Essa pessoa tornou-se líder para cinco mil famílias, que puderam galgar um degrau social.

“Acreditamos na necessidade de trabalhar duro para reurbanização mundial, com valores éticos. Essa reconexão é o que pode mudar o mundo”, concluiu.

  • Aplicativos inovadores ajudam no combate à pobreza e desigualdade

Depois de obter o doutorado pelo Instituto de Tecnologia da Georgia, nos EUA, a cientista da computação Nova Ahmed voltou para Bangladesh, para servir ao seu país. Ela trabalha com sistemas, na área de conexão das pessoas com a computação. Seu país tem grande densidade populacional – em 2017, tinha quase 165 milhões de habitantes – e muitos desastres naturais, que ocorrem de forma regular – ciclones a cada três ou quatro anos e enchentes anuais. Faz fronteira com Índia e Mianmar, estando numa posição muito crítica.

Olhando para as oportunidades de crescimento do país, a primeira é o povo. “Do total da nossa população, 30% são jovens entre 10 e 19. É neles que investimos para liderar o país”, afirma.

A infraestrutura de conectividade é boa: todo mundo nas vilas tem um celular. Mostrando otimismo, Nova diz que “com conexão e pessoas educadas, podemos mudar as coisas”. Como exemplo, citou o aplicativo Mobile Banking, que já tinha 24 milhões de usuários em 2018. Também se destaca o uso do aplicativo “Conexão Familiar”, que visa preservar as histórias de família, com as vozes das pessoas de várias gerações e fotos.

Outro aplicativo que faz sucesso é o Maya Apa, por meio do qual mulheres podem ligar para um médico e fazer qualquer pergunta. “Isto é muito importante para nós, porque em nossa sociedade dificilmente conversamos com alguém sobre assuntos de saúde da mulher”, ela diz, contextualizando a iniciativa.

Há também um projeto sobre câncer de mama: em Bangladesh, a doença aparece em mulheres de 20 a 30 anos. “Os cuidados têm que ser providenciados cedo, mas elas se sentem desconfortáveis falando sobre o corpo, mesmo em grupos só de mulheres. Na família, ninguém conversa sobre isso. São questões culturais”, explicou Nova.

Voltando ao tema dos desastres naturais, Nova Ahmed relata que foi criado um sensor de baixo custo para detectar inundações rápidas, como as originadas por tsunamis. “O aplicativo usa a conexão do celular. Agora precisa alcançar aceitação social”, explica.

Isso porque não se consegue prever a subida da água: é repentina. Então criaram estruturas com sensores, simples, de madeira, que formam torres na água. “Mas as pessoas das vilas resistiam, porque muitos moradores ganhavam dinheiro do governo para medir a água, e às vezes nem mediam. Então oferecermos sensores reduz a renda dessas pessoas, embora aumente a segurança”, esclareceu. Mas diz também que, agora, muitas pessoas querem a instalação. “Nosso desafio é ter dispositivos de baixo custo”, ressaltou Ahmed.

E haja desafios. Ela reconhece que tecnologia não resolve todos os problemas. “Ela é desenhada para ocidentais.Quando uma nova tecnologia chega aos nossos países e vemos que não participamos do desenvolvimento, cria-se uma lacuna, que pode trazer problemas”, alerta a cientista.

Abuso digital é outro desafio. Apenas 25% das mulheres usam celular. Muitas vezes, o telefone da família fica com o homem da casa e o acesso das mulheres é limitado; a senha é compartilhada e elas são assediadas de várias maneiras. “Mas o governo controla a internet, porque os jovens fazem uso de mídias sociais e o governo quer controlá-las. A proteção dos direitos digitais é muito vago”, relatou Ahmed.

Nova reconhece que a tecnologia tem papel importante, mas que precisa ser bem utilizada.  “Precisamos de políticas adequadas, atenção ao uso – que pode ser positivo ou negativo”, acrescenta. “Precisamos de tecnologia com consciência, com mudanças políticas e com suporte”, concluiu Nova Ahmed.

  • “Temos que convencer o mundo a olhar para a África, para o seu próprio bem”

Graduado pela Universidade Metropolitana Nelson Mandela, na África do Sul, Dion Jerling iniciou sua carreira no Reino Unido, no setor de construção. Suas habilidades e experiência em gerenciamento de projetos o aproximaram da área de tecnologia e mídia na década de 90, período de explosão da internet.

Em 2004 descobriu a ONG Conectando a África http://www.connectingafrica.com/, empreendimento social voltado para ampliar a cobertura do sistema global para comunicações móveis nas comunidades rurais por todo o continente.

Desde então atua na conexão dos desconectados, o que resultou na recém-fundada empresa Conecte a Terra Inovação como ferramenta para redução da pobreza e da desigualdade, líder no uso de internet e tecnologias relacionadas para permitir uma mudança econômica, social e educacional na África, dando acesso público à internet de modo sustentável, seguro e rápido a bilhões de jovens africanos.

A proposta é possibilitar que estes transformem a África em centro de crescimento global até 2050, através do conhecimento e da informação. “Estamos chegando às fronteiras rurais, mas ainda com 2G, que não transmite dados muito bem. Estamos estudando formas de oferecer gratuitamente internet melhor, com patrocinadores e geração de conteúdo”, contou Jerling.

Ele acredita que a África é a resposta para a pobreza e a desigualdade. “Temos a maior população de jovens do mundo. Precisamos dar acesso ao conhecimento para que eles resolvam os próprios problemas”, afirmou.  E como a inovação vai ajudar? “O acesso ao conhecimento pode trazer prosperidade, que é o que vai combater os problemas dos quais estamos tratando.”

Estes jovens não são diferentes dos outros, segundo o pesquisador. Precisam apenas ter a mesma nutrição, para que tenham saúde. Depois, é dar acesso à informação. “Temos que investir nos novos líderes em Gana, na Nigéria, na Tanzânia. Assim, em 20 ou 30 anos podemos ter uma realidade muito diferente. Temos que nos dedicar as crianças de três a oito anos, que serão os pais da nova geração em 2050 e, em 2100, as crianças já terão uma nova mentalidade”, defendeu Jerling.

E o que está impedindo isso hoje? Não há pessoas conectadas suficiente. Não há estrutura e dispositivos básicos. “Precisamos de novos modelos de negócio, acesso gratuito ao conhecimento. O celular de U$20 será transformador, vai fazer a diferença”.

Jerling relata que a infraestrutura de conexão já existe, mas que é preciso modificar agora a forma como as pessoas a utilizam. “Temos que oferecer conteúdo de forma estruturada e segura, para ser utilizado de forma proveitosa”. Isso porque a maior parte dos usuários africanos utilizam a internet para comunicação e diversão, não como forma de adquirir conhecimento. Mas, segundo o palestrante, a pobreza mundial está aumentando e, em 2030, a maior parte desta pobreza estará na África. “A Índia já saiu do ranking dos mais pobres. Em 2030, nove dos países mais pobres estarão na África. Agora apareceu a Venezuela, que era inesperado”, aponta.

O sistema educacional tradicional, no entanto, Jerling chama de “dúbio”. Tem que haver outro sistema em paralelo, que mude a visão do mundo sobre a África; que a veja como uma oportunidade e não como um passivo.  Ele reiterou: 32% dos jovens do mundo estarão na África em 2030 – e serão 50% em 2050.

“Serão trilhões de dólares para previdência social no mundo e a falência global, com a população envelhecendo. E são os jovens que vão sustentar isso. Os jovens africanos é que vão pagar nossas pensões. É uma oportunidade que a África tem e uma perspectiva para que o mundo veja a África de outra maneira. Isto é um ativo que está perdido, atualmente. Temos que convencer o mundo a investir na África, para seu próprio bem.  Se resolvermos o problema da África, vamos resolver o problema do mundo.”

 

Confira outras palestras do evento: