Em seu terceiro e último dia, o Pint of Science do Rio de Janeiro fechou com um tema instigante: novas tecnologias reconfigurando o nosso cérebro. Os cientistas convidados a falar sobre o assunto foram Stevens Rehen, professor titular do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ICB-UFRJ) e coordenador de pesquisa do Instituto DOr de Pesquisa e Ensino (IDOR); Fernanda Tovar-Moll, professora adjunta da UFRJ, vice-diretora do CENABIO-UFRJ e vice-presidente do IDOR; e Rogerio Panizzutti, professor associado do ICB e do Instituto de Psiquiatria da UFRJ (IPUB).

Rogerio Panizzutti, Fernanda Tovar-Moll e Stevens Rehen

O encontro aconteceu no Espaço Olho da Rua, em Botafogo, que ficou lotado de pessoas interessadas em conversar – e beber – com os pesquisadores, chegando a formar uma fila na porta. O Pint of Science é um festival internacional de divulgação científica que nasceu na Inglaterra, em 2013, e se expandiu pelo mundo. A ideia é promover um bate papo informal sobre temas variados entre cientistas e público, enquanto bebem cerveja (ou o que mais quiserem) no ambiente despojado de um bar, tirando a ciência das universidades. Em 2016, o Pint of Science aconteceu simultaneamente em 12 países, 100 cidades.
No Brasil, aconteceram sete edições, e esta foi primeira vez do Pint of Science no Rio de Janeiro. A versão carioca foi organizada pelo Laboratório Em Formação, do Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo De Meis da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IBqM-UFRJ) e teve o apoio da Euraxess e da Academia Brasileira de Ciências.

O que é um pint?

Pint é uma unidade de volume muito usada nos Estados Unidos e Reino Unido para medir quantidade de bebida. Se você for aos Estados Unidos e pedir um pint, receberá pouco menos que meio litro de sua bebida predileta – 473 ml. Mas se estiver em um pub inglês, seu copo terá 553 ml de cerveja, limonada ou do que mais você quiser beber! Saiba mais assistindo ao vídeo “Você sabe o que é um pint?”
Cérebro e gamificação

Por conta da superlotação do evento, os cientistas convidados fizeram um esquema diferente dos outros dias. Cada um deles ficou em um ponto do bar e Stevens Rehen, coordenando o debate, “provocava” os outros pesquisadores com perguntas, de modo a dinamizar a conversa. Ele começou afirmando que, há 200 anos, as coisas começaram a mudar muito por causa da “tal” revolução científica. “Viramos homo sapiens cibernéticos, com a tecnologia influenciando a nossa cabeça.” Ele citou como exemplo a gamificação, tema que foi aprofundado por Rogério Panizzutti (foto ao lado).
Gamificação é o processo de aplicar técnicas de engajamento dos jogos em situações e contextos não relacionados a eles, tirando proveito da atração que as pessoas têm por games. “Em três dias, nos Estados Unidos, o GTA [jogo de computador e videogame sobre roubo de automóveis] bateu recordes de lucro, faturando um bilhão de dólares – mais do que filmes de Hollywood”, destacou Panizzutti. “A realidade é que o impacto dos games está ultrapassando o do cinema.” Os jogos ativam a parte de recompensa do nosso cérebro, por exemplo, quando passamos de fase ou fazemos um gol.
Atualmente, convivemos com crianças de três anos que sabem mexer em smartphones e entendem de tecnologia melhor do que os adultos. Há quem veja isso com preocupação, mas Panizzutti tem um olhar positivo. “Isso mostra como as crianças estão se desenvolvendo mais.” Para o pesquisador, a questão é impor limites. Da mesma forma que jovens passam o dia inteiro jogando videogame, isso também acontecia na era pré-gamificação: “Eu jogava bola sem parar. O videogame está mudando o cérebro das pessoas. Pesquisas mostram que ele melhora nossa capacidade de prestar atenção e de fazer multitarefas.” Por isso, Panizzutti se interessa em transformar o videogame em uma ferramenta de melhora do cérebro em situações problemáticas.
É possível ler pensamentos?

Fernanda Tovar-Moll afirmou que, atualmente, temos boas técnicas para enxergar o cérebro. “Ele continua sendo uma caixa preta, mas a evolução dos últimos 30 anos das tecnologias para estudar o cérebro in vivo foi sensacional.” A ressonância magnética revolucionou o estudo desse órgão, do ponto de vista de entender a estrutura e como ela se altera. “Ela consegue extrair informação do tecido, saber a morfologia e pesquisar a função do cérebro. Hoje, há interesse em entender o cérebro por áreas como economia e psicologia.”
Fernanda respondeu a uma pergunta instigante: já é possível ler pensamentos? “Claro que não conseguimos ler tudo que se passa pela mente, mas experimentos recentes mostraram que, com essas técnicas mais avançadas de ressonância, algumas leituras são possíveis.” Por exemplo: se a pessoa está vendo a figura de uma casa, a leitura da função do seu cérebro com a ressonância magnética permite descobrir no que essa pessoa estava pensando. “Não conseguimos ler com tanta clareza, mas estamos caminhando para isso.”
A pesquisadora também comentou sobre a técnica de estimulação magnética transcraniana, forma não invasiva de estimular o cérebro. “Com ela, conseguimos trabalhar com deficiências motoras em pacientes e problemas como depressão sem invadir o cérebro. Há várias aplicações – indivíduos saudáveis, por exemplo, podem otimizar sua capacidade de memória por meio dessa estimulação consecutiva por cinco dias.”
Apagar memórias

Ainda dentro do tema “memória”, Rogério Panizzutti comentou a possibilidade de implantar e apagar memórias em seres humanos, como no filme “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”, de 2004. “É algo que mexe com as relações humanas, então temos que ter sempre um pé atrás. O entendimento do processo de formação de memória é cada vez maior – o médico [e Acadêmico] Ivan Izquierdo vem contribuindo muito para isso.”
O palestrante informou que técnicas para apagar determinadas memórias (aquelas prejudiciais, como fobias e situações traumáticas) vem sendo trabalhadas. “Quando entramos em contato com a memória, ela se torna passível de ser apagada. Isso tem sido estudado nos Estados Unidos com pessoas que voltam da guerra com transtorno pós-traumático. Há, por exemplo, videogames que as pessoas jogam para diminuir as memórias traumáticas.”
E hackear o cérebro, é possível? Stevens Rehen respondeu que é preciso, primeiramente, entender este órgão e o que é consciência e inteligência. “Como muito explorado na ficção científica, trabalha-se com a ideia de transferir, um dia, pensamentos para uma máquina que poderia, então, vir, a se tornar um ser consciente. E
ssa alegoria deposita na ciência a responsabilidade e prerrogativas que sempre foram atribuídas a um deus.” Rehen concluiu que, apesar de ser um assunto bastante abordado pelo cinema, ainda está longe de acontecer.
Ciência e felicidade

À última pergunta, sobre se é possível associar ciência, tecnologia e felicidade, Stevens Rehen afirmou que “é claro que sim”, e ressaltou que pode-se criar uma interação da ciência com todas as áreas, inclusive arte. “A tecnologia torna a arte melhor e vice-versa, e sou otimista, acredito que a tecnologia vai nos subverter para o bem.”
Nesse sentido, o organizador do Pint of Science no Rio de Janeiro, João Silveira, acrescentou que, no Laboratório Em Formação, o grupo trabalha cada vez mais misturando arte e ciência. “Essas barreiras entre arte, ciência e tecnologia estão cada vez menores e fazem cada vez menos sentido.”
Para Rehen, falta dedicação ao chamado ócio criativo, principalmente para crianças. “Muitos dos insights e da criatividade vêm desses momentos em que não fazemos nada. Precisamos abrir a cabeça.”
Sobre o futuro, os pesquisadores são otimistas. Panizzutti ressaltou que as pessoas caminham para ser multitarefas, interagindo cada vez mais com o mundo digital e, consequentemente, com outras culturas. Fernanda Tovar-Moll considera a neurologia uma das áreas mais promissoras e desafiadoras, pois ainda há muito a conhecer. Stevens Rehen fez uma homenagem à ciência: “A ciência brasileira está viva. Estamos vivendo um momento econômico difícil, mas que não vai acabar com essa área. Pessoas saindo do Brasil ou vindo para cá faz parte da ciência internacional.”