Em sessão dedicada às ciências sociais, a Acadêmica Elisa Reis discorreu sobre “o poder das ideias” para um auditório lotado, no primeiro dia da Reunião Magna 2015 da Academia Brasileira de Ciências. Ela abriu a palestra com uma observação feita pelo notável economista britânico John Keynes:
“As ideias dos economistas e filósofos políticos, tanto quando estão certas como quando estão erradas, são mais poderosas do que normalmente acreditamos… Estou convencido que o poder dos interesses estabelecidos tende a ser exagerado comparativamente ao impacto do avanço gradual das ideias.”
Para Elisa, cientista social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Keynes pode ter exagerado ao dizer que, a longo prazo, o peso dos interesses era supervalorizado, e que as ideias tinham um impacto mais importante que os interesses. “Sem interesses, as ideias não avançam. Mas, como as ciências sociais lidam sempre com cultura e ideologias, é importante frisar que as ideias têm um papel fundamental”, acrescentou.
A Acadêmica salientou que as ciências sociais surgiram, enquanto uma disciplina específica, para refletir e interpretar o que estava acontecendo na era moderna. Antes, a reflexão sobre a vida social era objeto da filosofia e da religião.
“O descolamento das ciências sociais em relação à filosofia foi gradual”, comentou Elisa. “Marx, por exemplo, um dos fundadores das ciências sociais, dizia que tinha descoberto a ciência da história, como se ela estivesse latente, como se se tratasse apenas de uma questão de descobri-la, e não de propor uma maneira nova de apreender a realidade histórico social. Em Marx, filosofia e ciência ainda não estavam inteiramente separadas.”
As ciências sociais, produtos da era moderna, estão sempre em diálogo com seu momento histórico. Desde o começo houve sempre alguma tensão quanto à natureza do papel central que as ciências sociais devem desempenhar: interpretação ou explicação. A tendência contemporânea é admitir que interpretação e explicação estão sempre presentes em maior ou menor grau.
“As ciências sociais são teóricas e práticas, e é muito difícil separar uma coisa da outra”, afirmou a Acadêmica. “Se considerarmos, por exemplo, como as ciências sociais nascentes lidaram com as grandes mudanças que inauguraram a era moderna, veremos que ao buscar explicar o que estava acontecendo elas forneciam, simultaneamente, elementos interpretativos que influenciavam a maneira como a sociedade percebia os acontecimentos do período.”
Elisa apresentou outro exemplo de grande desafio histórico, esse já no século 20, quando o papel das ciências sociais foi bastante claro: lembrou que o New Deal, conjunto de medidas criado no governo Franklin Roosevelt para lidar com a grande depressão que teve início em 1929, nos Estados Unidos, contou vitalmente com a contribuição de cientistas sociais. O valor das ciências sociais para superar a grande depressão transparece nas políticas que orientaram o New Deal.
“O mesmo aconteceu no caso do Plano Marshall para a reconstrução dos países aliados europeus após a Segunda Guerra Mundial”, acrescentou. “No contexto do Terceiro Mundo, as ciências sociais influenciaram profundamente o processo de descolonização e a construção de Estados Nacionais.”
Elisa ressaltou ainda que o esforço para superar o subdesenvolvimento foi uma das marcas importantes das ciências sociais em meados do século 20.
Globalização: modernidade tardia
A ideia segundo a qual o desenvolvimento persistente é possível é uma ideia moderna. A humanidade viveu durante séculos sem a noção de progresso ou crescimento contínuo como algo natural. Na antiguidade o mundo era percebido como sujeito a processos cíclicos: em função de acidentes e mudanças naturais, a sociedade passava por fases de maior ou menor prosperidade, fome ou abundância. Acreditava-se que ciclos naturais determinavam a vida da sociedade.
“A grande transformação da era moderna foi conceber que o mundo não é cíclico e que, em vez de nos protegermos contra as intempéries e processos incontroláveis, podemos conquistar a natureza através da razão, e da tecnologia. A primeira modernidade apostou no avanço permanente através da conquista da natureza”, afirmou a pesquisadora.
O mundo vive hoje uma nova fase da modernidade, que, para a pesquisadora, pode ser chamada de “modernidade tardia”. As transformações que ocorrem nessa época têm a ver com o que normalmente designamos como processos globais. “A própria noção atual de globalização é controversa, pois, de certo ponto de vista, o mundo está se globalizando desde a expansão marítima, desde as grandes descobertas do século 16”, comentou.
Contudo, a intensificação dos processos globais nas décadas recentes transformou nossa maneira de conceber o mundo. Entre esses processos estão o volume e ritmo dos fluxos de capital, a grande revolução nos meios de comunicação, as migrações internacionais, o cosmopolitanismo, e o ressurgimento das identidades primordiais.
Os fluxos de capital passam a dominar a lógica produtiva. Da mesma forma, as revoluções nas comunicações alteram padrões de comunicação e interação social, afetando profundamente relações sociais no âmbito do trabalho, do lazer, e da intimidade.
A questão das migrações internacionais também traz desafios urgentes para as ciências sociais. Quando vemos todos os dias, nos noticiários, o drama de milhares de pessoas que buscam entrar na Europa, é impossível negar que está ocorrendo uma transformação radical na forma de ver o mundo, de produzir, de distribuir benefícios.
A desigualdade social não é um problema novo, mas sua intensificação – que não é novidade para os cientistas sociais – vem sendo percebida mais recentemente com sinais de alerta pela sociedade. Para a Acadêmica, a sociedade está mais sensível a esse problema. Em suas pesquisas, ela vem constatando que há uma mudança significativa na elite brasileira, por exemplo. Hoje, muitos já pensam que distribuir melhor pode ser requisito para assegurar o crescimento econômico.
O cosmopolitanismo, termo cada vez mais difundido, revela o lado positivo do “encolhimento” do mundo na medida em que expressa uma nova maneira de perceber a realidade, uma visão dos indivíduos como membro de uma comunidade mundial. “Esse conceito ainda é mais identificado como uma utopia, como algo desejável, pois, ao mesmo tempo em que nos percebemos como membros de uma comunidade global, também temos a oportunidade de observar o reflorescimento das identidades primordiais”, explicou.
O avesso do cosmopolitanismo é o apego aos laços primordiais. Muitos estudiosos acreditam que o próprio movimento cosmopolita revitaliza elementos primordiais. Em alguns casos essa revitalização fomenta conflitos étnicos de consequencias terrivelmente perversas. Mas, mudanças ligadas às identidades particulares, também podem sinalizar novas conquistas sociais, tal como exemplificadas pelo movimento dos negros americanos, que reivindicam, simultaneamente, uma identidade afro e uma identidade americana. Esse e outros movimentos baseados em cor, gênero, religião são formas de lutar pelo reconhecimento de uma ide
ntidade particular, sem abrir mão da identidade universal que dá sentido aos direitos humanos.
A interação com a natureza é outra mudança da “modernidade tardia”. Durante a primeira modernidade, a sociedade acreditava que a natureza existia para ser conquistada. “Hoje, entendemos que a natureza deve ser protegida e que podemos fazer uso consciente dela”, argumentou. “A aposta no crescimento sustentável, essa nova maneira de conceber o mundo, é também uma revolução social, significativa, ainda que muito longe de ser concluída, mas que vai se tornando mais e mais difundida.”
Na atual modernidade, novos valores se cristalizam, uma nova maneira de conceber a natureza se expande, e novos desafios se impõem. Nesse contexto, o desafio de reduzir a desigualdade social é um dos que se destacam hoje na agenda de todas as ciências.
Todas as ciências são fundamentais para que cresçamos de forma igualitária e sustentável. “Conhecemos mais os riscos agora do que antes, por isso hoje temos mais oportunidades de planejar e promover mudanças do que ontem. Independentemente da área da ciência, nossa justificativa ética deve ser a mesma: todos nós temos compromisso com a sociedade, todos os ramos da ciência são nesse sentido sociais, pois esse é afinal o valor comum a todas elas”, concluiu.