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Afiliadas da ABC apresentam survey para traçar perfil do jovem cientista brasileiro

A afiliada Jaqueline Mesquita, que mediou o painel

Durante o último dia de atividades da 74ª Reunião Anual da SBPC foi realizado um importante painel sobre os desafios e perspectivas dos jovens cientistas brasileiros. O encontro teve a presença das membras afiliadas da Academia Brasileira de Ciências (ABC) Jaqueline Mesquita e Raquel Minardi, que representaram o grupo de trabalho de afiliados da ABC que vem desenvolvendo um survey para mapear o perfil do jovem pesquisador brasileiro. O trabalho contou com o apoio fundamental da presidente da Academia Brasileira de Ciências, Helena B. Nader. Também participou da mesa o pesquisador Alessandro Freire, do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), que colaborou na elaboração do survey.

Completaram o debate o ex-presidente da SBPC Ildeu Moreira; a pesquisadora do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE) Sofia Aranha; e o presidente-eleito da Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG), Vinicius Soares.

Histórico dos pós-graduados brasileiros

Nas últimas três décadas o Brasil viu um aumento exponencial na titulação de mestres e doutores. De acordo com dados da Plataforma Sucupira, o país passou de 10 mil mestres formados ao ano em 1996 para 70 mil em 2019, e de menos de 4 mil doutores para quase 25 mil no mesmo período. Mas a tendência de crescimento se reverteu com a pandemia. “Torcemos para que seja apenas um represamento”, disse Sofia Aranha.

A pesquisa realizada pelo CGEE mostrou também uma resiliência maior de mestres e doutores no mercado de trabalho. Estes foram menos demitidos que a média nacional durante a recessão que atingiu o país entre 2014 e 2017. Entretanto, a situação vem se deteriorando rapidamente. A tendência é de queda nas remunerações e nas contratações, sobretudo de doutores recém-formados. Some a isso o valor completamente defasado das bolsas de pós-graduação federais – que não são reajustadas desde 2013 – e temos um cenário de fuga da pós graduação. “O Brasil ainda não formou gente suficiente”, alertou Aranha, lembrando que a relação de doutores por habitantes do país ainda está muito aquém dos países desenvolvidos.

Na mesma linha, Vinicius Soares defendeu o reajuste urgente das bolsas de pós-graduação para valores compatíveis com a inflação acumulada, e a contagem dos anos de pós-graduação para o tempo previdenciário. Ele lembrou também que o país vem perdendo mão-de-obra qualificada para o subemprego ou para o exterior. “Estamos desperdiçando uma janela demográfica única. A maior parte da população está em idade economicamente ativa, mas acaba em postos de menor qualificação ou trabalhando para o desenvolvimento de outros países”, argumentou.

Dentre os problemas listados, o presidente-eleito da ANPG criticou a falta de um plano de desenvolvimento científico que valorize o pesquisador, e o modelo acadêmico atualmente praticado no Brasil, muito voltado para dentro. “Precisamos de um país onde cada pessoa seja introduzida à CT&I desde a escola, e onde os ambientes acadêmico e econômico interajam de forma que mestres e doutores sejam melhor absorvidos pelo mercado de trabalho”.

Ainda de acordo com a pesquisa do CGEE, em 2017, 75% dos pós-graduados empregados no Brasil estavam no setor da educação, e, destes, 83% se encontravam alocados no ensino superior. “Óbvio que professores são imprescindíveis, mas temos um contingente grande de mestres e doutores que poderia contribuir também com as necessidades que o mercado atual vem impondo”, concluiu.

Ildeu Moreira lembrou de uma pesquisa feita em 2019 pelo INCT em Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia (INCT-CPCT), que revelou que dois terços dos jovens entre 15 e 24 anos têm interesse por ciência, mas a ampla maioria não sabe citar o nome de um pesquisador ou instituição científica brasileira. “Temos a necessidade de aumentar o número de pessoas trabalhando na área, e temos de onde tirar”, afirmou o ex-presidente da SBPC.

A afiliada Raquel Minardi durante apresentação no painel virtual

Perfil do Cientista Brasileiro

Raquel Minardi e Alessandro Freire apresentaram um pouco do survey que o grupo de trabalho criou para entender melhor quem é o jovem cientista brasileiro. A pesquisa é fruto do trabalho voluntário de 87 pessoas de todas as regiões do país, visando englobar a imensa diversidade nacional e as várias áreas da ciência. “Nosso público-alvo são pessoas que terminaram o doutorado a partir de 2006 e que possuem vínculo formal com instituições de ensino e pesquisa, públicas ou privadas, no Brasil ou no exterior”, explicou Minardi.

O formulário aborda diversas questões como: perfil socioeconômico, diversidade de gênero e raça, liderança científica, realização profissional, trajetória, maternidade/paternidade na academia, parcerias com o exterior, fuga de cérebros, dentre outros aspectos. “Esperamos ter resultados elucidativos que sirvam de base para comparações e análises mais aprofundadas; mas, para isso, precisamos da colaboração de todos”, disse Freire.

Participe do survey Perfil do Cientista Brasileiro até 15 de setembro.

Aldo Zarbin: a questão de gênero no Brasil sob as perspectivas dos ODS 2030

Por muitos anos, mulheres foram colocadas em posição de vulnerabilidade por conta do estigma de que  seriam incapazes e menos fortes do que os homens. Desde o final do século XX, mulheres se unem na luta para ocupar novos espaços e mostrar que tais crenças não se justificam.

Aumentar a representação feminina em setores diversos da economia – desde os altos cargos políticos às chefias de laboratórios científicos – é uma questão urgente não apenas no Brasil, mas no mundo. Essa questão tão premente nos dias atuais é, inclusive, o quinto Objetivo para o Desenvolvimento Sustentável (ODS 2030) da ONU, que lista uma série de boas práticas para alcançar a igualdade de gênero e empoderar mulheres e meninas

Para debater “A questão de gênero no Brasil sob as perspectivas dos ODS 2030”, foram convidados o Acadêmico Aldo Zarbin (UFPR), a socióloga Lia Zanotta Machado (UnB) e a cientista política Flávia Biroli (UnB). As apresentações foram mediadas por Laila Salmen Espindola (UnB). 

Zarbin cursou a graduação, o mestrado e o doutorado em química na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Suas pesquisas envolvem a preparação de diferentes materiais em escala nanométrica, com destaque para nanoestruturas de carbono (nanotubos e grafeno), materiais bidimensionais e nanopartículas metálicas. 

Homens na luta 

Único participante homem da mesa, Zarbin foi convidado pela organizadora, a Acadêmica Vanderlan Bolzani (que não pode comparecer ao evento), para compartilhar seu ponto de vista sobre a relação entre inclusão feminina, ciência e os ODS 2030. Zarbin é casado com a também Acadêmica Elisa Orth, que realiza pesquisas sobre divulgação científica e ações para paridade de gênero, a quem referenciou durante sua apresentação. 

Zarbin relatou que desde quando ingressou na graduação, em 1986, a participação feminina no curso de química é predominante – uma tendência que começa na iniciação científica e se mantém até o doutorado. No entanto, conforme os anos de pesquisa avançam, em especial a partir do pós-doutorado, há uma queda drástica no número de mulheres que permanecem na carreira científica. Segundo o professor, apenas 12% dos pesquisadores das ciências químicas com bolsa de produtividade nível 1A do CNPq são mulheres – e todas são residentes na região Sudeste.  

Em relação aos cargos de liderança científica, o professor da UFPR enalteceu a eleição de Helena B. Nader como a 49ª presidente da ABC, sendo a primeira mulher na posição. Nader foi também uma das duas mulheres que ocupou a vice-presidência da ABC e uma das seis mulheres presidentes da SBPC.

Ter mulheres ocupando as mais altas posições nas entidades científicas é, para o químico, uma questão que vai além dos números: “É uma questão de representatividade, de referência. É fazer com que meninas da idade da minha filha se sintam inspiradas e vejam que é possível chegar lá”, comentou. Ele é pai de Sofia, de 13 anos. 

De acordo com pesquisas, um dos principais motivos que provocam a evasão de mulheres da carreira científica é a maternidade. Ainda hoje, há poucos editais que levem em conta a licença maternidade e a queda na produção científica durante os primeiros anos de vida da criança. “Temos que trazer os homens para a luta”, afirmou Zarbin, que acredita na contribuição masculina em ações que podem auxiliar a expansão da carreira das mulheres. Segundo ele, é necessário esclarecer as crianças sobre a importância da ciência e da igualdade de gênero, além de mostrar que homens e mulheres podem dividir igualmente as tarefas domésticas e o cuidado com os filhos. 

Ainda hoje, a realidade feminina dentro da academia é cruel: uma parcela de acadêmicos conservadores insiste em acreditar nos laboratórios de gêneros únicos e na falta de capacidade de mulheres em orientar e conduzir pesquisas. Para mudar essa realidade, Zarbin aponta para a criação de políticas inclusivas, como considerar o período de gravidez e licença maternidade ao analisar a produção científica, oferecer prazos estendidos e adequação para mulheres em editais, criar creches e espaços-família em grandes congressos científicos. Atualmente, pesquisadoras já começaram a se reunir e promover a criação de redes de apoio a mulheres e mães dentro das instituições de ensino superior, como a iniciativa Parent In Science, surgida em 2018, que luta pela igualdade parental dentro do ambiente acadêmico. 

Desigualdades para além da questão de gênero 

A crise econômica e orçamentária enfrentada pelo Brasil desde o início da pandemia acentuou as dificuldades e hostilidades relativas à participação das mulheres como pares nas esferas públicas. Durante a pandemia, o motivo principal pelo qual as mulheres – especialmente as negras – estiveram impossibilitadas de conseguir emprego era a necessidade de cuidar. O Brasil foi o país que passou mais tempo sem acompanhamento educacional ou com escolas fechadas entre os anos de 2020 e 2022, fazendo com que cerca de 25% das mulheres brasileiras ficassem afastadas do mercado de trabalho para cuidar dos filhos durante o período. Apenas 3% dos homens citou esse fato. “A divisão sexualizada do trabalho coloca mulheres em situação vulnerável, que mistura as relações de cuidado e as condições de cuidado”, apontou Flavia Biroli, professora associada do Instituto de Ciência Política da UnB. Segundo ela, as “relações” de cuidado dizem respeito a quem ou o que deve ser cuidado, como idosos, filhos ou a casa); as “condições” estão relacionadas à forma como isso é feito – os horários, as tarefas externas associadas à essa atividade e do que as mulheres precisam abrir mão para executar essas tarefas.

De modo geral, mulheres negras são mais invisibilizadas e sofrem mais com a falta de qualificação e o desemprego. Muitas vezes, sua única alternativa é trabalhar em serviços domésticos ou como cuidadoras. “A questão de gênero não vem sozinha; ela atua em conjunto com outros contextos, como violência e educação. E no Brasil, em específico, o principal agravante é o racismo.” 

Biroli apontou que o momento por que passam o mundo e, especialmente, o Brasil, é de fragilização das democracias e perseguição aberta às mulheres e a diversidade, o que vêm impondo um retrocesso na luta por direitos igualitários. “Uma democracia de fato envolve representação que conecte o sistema político à complexidade da sociedade”, afirmou. “No regime democrático, brigamos por isso, mas no regime autoritário, lutar por isso envolve uma série de humilhações pelas quais, muitas vezes, não estamos dispostas a passar.”  

Para que essa realidade seja alterada, é preciso que as mudanças comecem nos cargos políticos. Atualmente, a participação parlamentar feminina no país é irrisória: em um ranking que analisa os parlamentos de 193 países, o Brasil ocupa a 143ª posição, com apenas 17,3% de mulheres exercendo cargos políticos. No continente americano, o país está à frente apenas de Antígua e Barbuda, Bahamas, Belize e Haiti. Os indicadores preocupam a pesquisadora: “Nós precisamos de uma agenda concreta, com estruturas políticas que atendam e incorporem mulheres na sociedade brasileira. No entanto, como estabeleceremos esse compromisso civil, para além dos documentos, se não temos representatividade política?” 

A cientista política espera que, no futuro, haja políticas pública capazes de permitir que mulheres possam construir suas próprias carreiras e suas trajetórias, sem precisar optar entre família e trabalho, e enumera: “O que precisamos, de fato, é de infraestrutura, responsabilidade pública e marcos legais comprometidos com o conhecimento científico que está sendo produzido nas universidades.” 

Religiosidade, gênero e feminicídio  

Para além das questões de inclusão no mercado de trabalho e da paridade de gênero dentro do ambiente científico, há questões de saúde pública e de acesso a políticas que preocupam a socióloga Lia Zanotta Machado. “O problema do Brasil não é só a legalização do aborto, mas também a distribuição gratuita dos métodos contraceptivos”, disse a pesquisadora, que defende a legalização do aborto seguro até as 16-20 semanas de gestação. Segundo a pesquisadora, os estereótipos de gênero estão sendo ainda mais reforçados pela fonte onda de neoconservadorismo que atingiu o Brasil nos últimos anos. “Associada à forte presença de religiosidade, essa onda confronta o Estado laico em decisões judiciais que deveriam ser neutras”, afirmou Zanotta, citando o exemplo da interferência da igreja no julgamento de casos de estupro de menores, ou quando juízes utilizam suas convicções religiosas para tomar decisões em casos similares.  

A falta de comprometimento orçamentário com as questões de segurança coloca a vida das mulheres em segundo plano. Dados de 2017 apontam que dos 10.433 juizados contra a violência, apenas 137 eram específicos para mulheres. Estes espaços, além de insuficientes para atender a demanda da população, ainda tendem a limitar a Lei Maria da Penha, dificultando a imposição de medidas restritivas contra agressores.

No Brasil, a cada 100 mil mortes de mulheres, 4,3% são categorizadas como feminicídio – mas estima-se que o número seja bem maior. “Há uma certa dificuldade da mulher que está sofrendo abusos se entender como vítima. Saber que há feminicídio no país faz com que mulheres fiquem mais cuidadosas. É importante noticiar esse número, e não mascará-lo”, disse a pesquisadora.


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Vanderlei Bagnato: inovação nas universidades brasileiras

0Na sexta-feira feira, 29 de julho, durante a  74ª Reunião Anual da SBPC, na Universidade de Brasília (UnB), a mesa redonda “O papel da inovação nas universidades brasileiras” reuniu o membro titular da ABC Vanderlei Salvador Bagnato (USP); o cofundador do Tecnopuc, eleito o melhor parque científico e tecnológico do Brasil, Jorge Audy (PUC-RS); e a diretora da Escola de Engenharia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Carla Ten Caten, sob moderação de Sanderson César Macêdo Barbalho (UnB). A palestra fez parte da categoria especial SBPC Inovação. 

Carla ten Caten (UFRGS), Sanderson Barbalho (UnB), Jorge Audy (PUC-RS) e Vanderlei Bagnato (USP-S.Carlos)

Vanderlei Salvador Bagnato concluiu simultaneamente bacharelado em física na Universidade de São Paulo (USP) e engenharia de materiais (UFSCar) em 1981 e realizou o doutorado na mesma área pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Atualmente é professor titular da USP São Carlos e conta com mais de 700 artigos publicados em periódicos especializados.

Universidade do século XXI

Os três palestrantes concordaram que o modelo atual de universidade deve ser expandido para incluir a inovação às tradicionais missões de ensino e pesquisa. Isso deve ser feito pela implementação de núcleos de inovação e interação com empresas, estimulando desde a graduação que seus alunos busquem parcerias com o setor privado, além de desburocratizar a criação de startups.

Mas o conceito de inovação vai além do desenvolvimento de novos produtos para o mercado. Ele perpassa a transformação do conhecimento construído nas universidades em melhorias não apenas para materiais, mas também para serviços e políticas públicas. “Não é só luzinha piscando”, brincou Audy, lembrando de um grupo de estudantes de Serviço Social que conseguiu aumentar o IDH de uma das regiões mais carentes de Porto Alegre através de intervenções planejadas na universidade. “O fundamental é conhecimento, criatividade e vontade de transformar”, resumiu.

Vanderlei Bagnato é coordenador da Unidade Embrapii de Biofotônica e Instrumentação, que reúne 15 laboratórios e desenvolve inovações com aplicação industrial e médica. O Acadêmico defende o modelo Embrapii de financiamento tripartite, orçamento e metas claras e celeridade no encaminhamento dos projetos. “Diziam que seria um fracasso, que empresário brasileiro não quer colocar dinheiro, e hoje eles estão batendo na porta”, afirmou. “Uma vez aprovada uma iniciativa, em dois meses ela já está a todo vapor. É muito melhor para o setor privado terceirizar a parte laboratorial para a infraestrutura universitária”.

Patenteamento precisa evoluir

Bagnato discutiu ainda o problema do superpatenteamento das universidades brasileiras, que pode indicar uma falta de clareza da comunidade acadêmica sobre o processo. “Precisamos de pessoal especializado em propriedade intelectual. Patente boa é a que tem interesse e visa gerar um produto lá na frente, errar nessa hora é travar a inovação”, disse o Acadêmico.

Para Carla Ten Caten, o patenteamento é um dos principais problemas da UFRGS, que produz conhecimento disruptivo há 125 anos no seu núcleo de engenharia, sendo este um dos melhores do país. Com grande capacidade empreendedora e forte parceria com as Embrapiis, a Escola de Engenharia da UFRGS tornou-se uma vitrine tecnológica a partir do licenciamento de tecnológicas desenvolvidas e seu projeto de transferência de tecnologia garantiu o sustento da universidade durante a pandemia.

A pesquisadora defendeu também a importância dos projetos de extensão, um dos três principais pilares de produção de conhecimento dentro das universidades latino-americanas: “Ainda hoje, muitos não conseguem enxergar a produção de tecnologia como um dos principais objetivos dos projetos de extensão”, afirma. Ela destaca o papel das unidades Embrapii no desenvolvimento de tecnologia de ponta e na ajuda a superação do “vale da morte”, como é chamado o período entre a geração do produto e sua inserção no mercado. No Rio Grande do Sul, elas desenvolvem um papel essencial no financiamento das pesquisas concebidas nos laboratórios.


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Grandes Projetos de Cooperação Internacional II

Ministro de Ciência, Tecnologia e Inovação entre os anos de 2005 e 2010, o Acadêmico Sergio Machado Rezende falou um pouco sobre os marcos históricos da ciência e tecnologia no Brasil e apresentou um resumo das iniciativas em seu mandato, que deu continuidade e ampliou o trabalho feito por seu antecessor, Eduardo Campos, falecido precocemente em 2014.

Na linha do tempo, referiu-se à fundação da SBPC (1948), do CNPq e da Capes (1951), do Funtec/BNDES (1963), à reforma universitária de 1968, a criação do FNDCT em 1971 e do MCTI em 1985. Relatou que o fim dos anos 80 e quase toda a década de 90 foram muito ruins para a área da ciência, e que a mudança veio no segundo ano do governo eleito em 2003, quando após o ano de mandato de Roberto Amaral, Campos assumiu a pasta, reuniu todos os órgãos da área e definiu uma política nacional em CT&I com quatro prioridades: expansão e consolidação do sistema, apoio à inovação nas empresas, pesquisa e desenvolvimento em 13 áreas estratégicas e ciência tecnologia e inovação para o desenvolvimento social.

Em 2007, com muito debate com a comunidade científica, foi implantado o Plano de Ação em CT&I 2007-2010, contendo 87 programas, cada um com objetivos claros, metas, justificativas e orçamentos. Um desses programas levou à criação dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs), costurados pelo Acadêmico Marco Antônio Zago, atualmente presidente da Fapesp, com as fundações estaduais.

O programa Ciência sem Fronteiras

Ele falou sobre o maior projeto de cooperação internacional realizado pelo Brasil, que beneficiou em torno de 100 mil jovens brasileiros e brasileiras: o programa Ciência sem Fronteiras, implantado em 2011, que deu oportunidade para estudantes de graduação passarem um ano em qualquer país do mundo, além de oferecer bolsas de mestrado e doutorado fora do Brasil.

De acordo com artigo do então presidente do CNPq, o Acadêmico Glaucius Oliva, responsável pela gestão do programa, publicado na REVISTAq, comemorativa dos 70 anos do CNPq, publicada em julho de 2022, a ideia inicial era simples, com distribuição de 4.000 bolsas entre as universidades, priorizando estudantes de iniciação científica, envolvidos no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica e Tecnológica (Pibic). As universidades identificariam seus melhores alunos, que buscariam as melhores colaborações e o CNPq e a Capes financiariam. Na pós-graduação o sistema existente seria mantido, sendo apenas ampliado, abrindo mais oportunidades para quem quisesse bolsa de doutorado-sanduíche, pós-doutorado no exterior, doutorado integral no exterior.

Foi também criado um programa de Professor Visitante do Exterior para atrair pesquisadores seniores e jovens pesquisadores estrangeiros em programas de maior duração, de três anos. O convidado tinha que passar três meses por ano no Brasil, por três anos consecutivos, ganhava recursos para a pesquisa realizada aqui e bolsas de pós-doutorado e doutorado-sanduiche. Esse item do programa teve resultados muito relevantes, de acordo com o artigo.

No entanto, o programa sofreu mudanças de ordem superior e foi ampliado para 100 mil bolsas, sem uma estrutura adequada para esse porte. Com muito empenho e esforço do então presidente da Capes, o Acadêmico Jorge Guimarães, e do Acadêmico então diretor do CNPq Manoel Barral Neto, o programa Ciência sem Fronteiras foi colocado de pé e, apesar das limitações estruturais, foi uma experiência muito bem-sucedida, que deveria passar por ajustes antes de uma segunda edição. Porém, foi extinto em 2017.

Sobre as dificuldades encontradas e que requereriam um ajuste, o artigo destaca a falta de domínio de qualquer língua estrangeira por parte dos alunos de pós-graduação e falta de estrutura das universidades na área das relações internacionais. Nesse último tópico, o próprio programa deu solução, mudando a cara das universidades brasileiras. Hoje todas têm relação com o exterior, têm seus departamentos de relações internacionais, têm convênios próprios. Passaram a receber representantes de universidades estrangeiras interessadas em receber alunos brasileiros. Foi um programa transformador, inclusive, na reputação brasileira internacional.

Certamente, os maiores beneficiados foram os estudantes de graduação e o artigo aponta resultados perceptíveis na área de inovação, por exemplo. Desde o fim do programa, 60% das pessoas que são selecionadas em processos seletivos de trainees e contratados nas empresas participaram do Ciência sem Fronteiras. O mesmo tem acontecido com jovens empreendedores, que estão saindo das universidades e criando start-ups inovadoras.

Assim, o programa Ciência sem Fronteiras pode ser considerado um grande projeto de cooperação internacional na formação de recursos humanos para ciência. E Sergio Rezende apontou que em 2012, logo após o final do seu mandato, o Brasil esteve no mapa da ciência internacional publicado no vol. 490 da revista Nature

Ainda assim, Rezende ressaltou que, até hoje, ouve o mesmo comentário: “ciência é coisa para os países ricos”, ideia de que discorda frontalmente e da qual outros cientistas muito antes dele também discordavam. “Em 1900, Oswaldo Cruz já dizia: ‘Meditai se só as nações fortes podem fazer ciência, ou se é a ciência que as torna fortes’”.

Para o próximo governo, o físico listou algumas propostas: remontar o Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (SNCTI); recompor e ampliar o fomento à CT&I; retomar o apoio à pesquisa, desenvolvimento & inovação em áreas e projetos estratégicos; ampliar as iniciativas de formação, qualificação, atração e retenção de recursos humanos; induzir a inovação no ambiente empresarial; criar e consolidar empresas intensivas em tecnologia; recuperar o apoio às ações de C&T para o desenvolvimento social; desenvolver a bioeconomia na Amazônia; e ampliar a cooperação internacional em ciência e tecnologia.

“Para aprovar tudo isso, o novo governo vai precisar de apoio do Congresso. Para tanto, estão sendo lançadas candidaturas de cientistas, com vistas à formação de uma bancada da educação, ciência, tecnologia e inovação.

Sobre o manto cinzento de abatimento que vem envolvendo a comunidade científica, Rezende foi enfático: “O MCTI tem apenas 37 anos e já foi extinto ou renomeado diversas vezes. Os altos e baixos na política de CT&I, com a descontinuidade dos recursos, já ocorreram anteriormente. A crise atual será superada. É importante não desanimar: reagir, resistir e continuar trabalhando para reconstruir o Brasil.”

Leia a proposta da Academia Brasileira de Ciências para os candidatos à Presidência do Brasil


Leia a matéria “Grandes Projetos de Cooperação Internacional I”


Confira todas as matérias da ABC sobre a 74ª Reunião Anual da SBPC

Grandes Projetos de Cooperação Internacional da Ciência Brasileira I

O desenvolvimento da ciência para a solução de problemas globais requer colaboração global. E o Brasil não pode ficar fora da ciência mundial: pelo contrário, precisa ampliar sua participação. Essa foi a premissa básica da sessão “Grandes Projetos de Cooperação Internacional da Ciência Brasileira”, no segundo dia da 74ª Reunião Anual da SBPC, na Universidade de Brasília (UnB).

Os palestrantes foram o físico Luiz Davidovich, ex-presidente da ABC e professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),  o biólogo Aldo Malavasi, professor titular aposentado do Departamento de Genética da Universidade de São Paulo (USP) e o Acadêmico e ex-ministro de Ciência e Tecnologia, Sergio Machado Rezende. A apresentação de Rezende estará detalhada em outra matéria no site da ABC

Aldo Malavasi, Paulo Artaxo, Luiz Davidovich e Sergio Rezende

Atuação internacional de longo prazo de instituições brasileiras: agricultura e saúde

Luiz Davidovich ressaltou a atuação internacional de longo prazo de instituições brasileiras em áreas diversas. Na agricultura, citou a Embrapa, empresa voltada para a inovação, que foca na geração de conhecimentos e tecnologias para a agropecuária brasileira e tropical de modo geral, fundada em 1973.

Mantendo permanente diálogo com produtores, organizações científicas e lideranças do Estado e da sociedade civil, a Embrapa se pauta por excelência científica em pesquisa agropecuária, qualidade e eficiência produtiva em cultivos e criações, sustentabilidade ambiental, cuidado com aspectos sociais e parcerias com o setor produtivo. Conta com Unidades Mistas de Pesquisa e Inovação em todo o país e com 43 unidades descentralizadas, dedicadas áreas específicas. Conheça todas aqui.

Hoje a Embrapa está no mundo, com 78 acordos bilaterais com 89 instituições em 56 países, acordos multilaterais com 20 organizações internacionais, assim como redes de pesquisa.

Na área da saúde – que seria apresentada pelo Acadêmico Carlos Morel, impedido de comparecer – Davidovich destacou a atuação do Instituto Butantan e da Fiocruz. Esta última, “casa” de Morel, mantém intercâmbio com instituições de saúde e de ciência e tecnologia em diversos países. Essa atividade é coordenada pelo Centro de Relações Internacionais em Saúde (Cris), que mantém um boletim internacional de notícias. “Quem imaginaria que aquelas duas instituições fundadas no início do século XX dariam origem ao maior sistema de saúde do mundo, o SUS, que está sendo atacado constantemente por negacionistas contra ciência. A saúde é um direito de todos e dever do Estado, de acordo com a Constituição brasileira”.

Referiu-se também ao INCT BioSyn, um consórcio formado por cerca de 200 cientistas de 100 instituições e empresas em 15 países diferentes. Este projeto tem participação da Embrapa, da Fiocruz e do Instituto Tecnológico Vale. Seu objetivo é o desenvolvimento de plataformas tecnológicas para geração de ativos e agregação de valor à biodiversidade, por meio da biologia sintética, a qual demanda integração multidisciplinar, com vistas a projetar e desenvolver a engenharia de componentes bionanomoleculares, rotas e sistemas biológicos e reprogramar organismos. A engenharia de organismos e sistemas biológicos deverá ter implicações importantes socioeconômicas e ambientais. A engenharia de circuitos genéticos, biológicos e módulos de vias sintéticas está começando a solucionar alguns dos desafios cruciais e sendo usado em aplicações práticas em diferentes setores de produção.

Davidovich apontou ainda o trabalho do Centro Brasil-China de Genômica, liderado por Morel, colaboração envolvendo o Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz com o Projeto Viroma Global, a Fundação para Novos Diagnósticos Inovadores (FIND, na sigla em inglês), a Academia Chinesa de Ciências (CAS, na sigla em inglês) e o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês) da China.

Atuação internacional de longo prazo de instituições brasileiras: física

Na área da física, Davidovich destacou alguns grandes centros brasileiros produtores de conhecimento de nível internacional, como o Sirius, equipamento de grande porte usa aceleradores de partículas para produzir um tipo especial de luz, chamada, luz sincrotron. Essa luz é utilizada para investigar a composição e a estrutura da matéria em suas mais variadas formas, com aplicações em praticamente todas as áreas do conhecimento.

O Sirius permite que centenas de pesquisas acadêmicas e industriais sejam realizadas anualmente, por milhares de pesquisadores, contribuindo para a solução de grandes desafios científicos e tecnológicos, como novos medicamentos e tratamentos para doenças, novos fertilizantes, espécies vegetais mais resistentes e adaptáveis e novas tecnologias para agricultura, fontes renováveis de energia, entre muitas outras potenciais aplicações, com fortes impactos econômicos e sociais.

Satélites e grandes telescópios: parcerias internacionais

O Brasil faz parte de diversas iniciativas em satélites e grandes telescópios. As pesquisas nessas áreas envolvem a busca de planetas extra-solares, pesquisa em química e população estelar, entendimento do processo de construção de galáxias, estudo do crescimento dos buracos negros e a física cosmológica, entre outros.

Davidovich citou o projeto China-Brasil de Satélites de Pesquisa da Terra (CBERS, na sigla em inglês), coordenado por Ricardo Galvão; o projeto Plato, da Agência Espacial Europeia, uma parceria entre o Brasil e mais 13 países europeus para promover a descoberta de exoplanetas; a Rede Nacional de Física de Altas Energias (Renafae), que envolve projetos em parceria com diversas agências e centros internacionais de pesquisa; quatro experimentos do Grande Colisor de Hádrons (LHC, na sigla em inglês), que é o maior e mais poderoso acelerador de partículas do mundo;  o Observatório Auger, que é a maior instalação do mundo voltada para a detecção e o estudo de raios cósmicos de altíssima energia; o Telescópio Bingo, colaboração que envolve Brasil, Arábia Saudita, Reino Unido, Suíça e Uruguai e tem como motivação científica a detecção de oscilações acústicas que permitem medir a expansão do Universo; o Deep Underground Neutrino Experiment (DUNE, sigla em inglês): estudo da física de oscilação de neutrinos, relacionado à estrutura da matéria e à evolução do Universo, que conta com mais de 1000 colaboradores de 175 instituições e 32 nações diferentes; o Grande Arranjo Milimétrico Latino-Americano (Llama, na sigla em inglês), radiotelescópio construído em parceria do Brasil com a Argentina, entre outros.

CBERS, LHC, Auger e Bingo
DUNE

Por fim, Davidovich destacou que, apesar de tudo a que a ciência brasileira vem sendo submetida, o país tem pesquisadores engajados em diversas pesquisas internacionais, como demonstrou. Porém, é preciso apoiar e desenvolver essas parcerias. “Sinto falta de redes de pequenos projetos integradas aos grandes projetos. Sinto falta de projetos em outras áreas e com países latino-americanos. “Uma colaboração maior com esses países nas áreas de ciências sociais, por exemplo, seria muito importante, dadas as afinidades que temos”, concluiu Davidovich.

Energia nuclear

Doutor em genética pela Universidade de São Paulo (USP), onde atuou como professor titular de Genética e Biologia Evolutiva até 2005, Aldo Malavasi é vice-diretor geral e chefe do Departamento de Ciências Nucleares e Aplicações da Agência Internacional de Energia Atômica (IAEA, sigla em inglês), sediada em Viena, na Áustria. A agência é responsável por grandes projetos de cooperação técnica internacional em energia atômica

De acordo com Malavasi, as aplicações nucleares fazem parte da vida de vários países. Dentre elas, podem ser destacadas a utilização em produtos de consumo que usam pequenas quantidades de radiação – desde detectores de fumaça até fotocopiadoras e relógios; o uso de radiação para ajudar a preservar diferentes variedades de alimentos e erradicar espécies de insetos de pragas; uso industrial de materiais radioativos em processos e produtos de empresas do setor automotivo, aéreo, de mineração, petróleo e construção civil; em medicina nuclear; na exploração espacial, pois as naves não tripuladas usam calor do plutônio para gerar eletricidade; e na dessalinização da água, que extrai o sal da água do mar para produzir água potável, usando energia nuclear.

As aplicações nucleares são embasadas em três pilares: segurança, ciência e tecnologia.  Um produto de muito interesse para o Brasil são os pequenos e os micro reatores modulares (SMR, sigla em inglês), que por meio de fissão nuclear produzem eletricidade suficiente para abastecer pequenas cidades de modo sustentável e não poluente. “São fáceis de construir, transportar e instalar em locais de pouca acessibilidade, e podem conectar a Amazônia”, explicou o palestrante.

Com relação aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), a energia nuclear, a energia nuclear conversaa com o ODS 7 (energia limpa e acessível), com o ODS 9 (indústria, inovação e infraestrutura) e com o ODS 10 (ação climática).

Em 2020, a IAEA estabeleceu parceria com 24 países em projeto que vai até 2024. Os países parceiros são Argentina, Austrália, Bélgica, Brasil, Bulgária, Canadá, China, Croácia, Estados Unidos, Espanha, Finlândia, França, Gana, Indonésia, Japão, Jordânia, Marrocos, Paquistão, Polônia, Reino Unido, República da Coreia, República Tcheca, Sri Lanka e Turquia.


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Alexander Kellner e Taissa Rodrigues: descolonizando a paleontologia brasileira

Nesta quinta-feira, 28 de julho, aconteceu o penúltimo dia da 74ª Reunião Anual da SBPC, sediada na Universidade de Brasília (UnB). O membro titular da Academia Brasileira de Ciências Alexander Kellner esteve junto à membra afiliada Taissa Rodrigues e ao professor Antonio Alamo Feitosa Saraiva, da Universidade Regional do Cariri (Urca), para uma importante mesa-redonda sobre Descolonização da Paleontologia Brasileira

O Brasil possuí um patrimônio riquíssimo em fósseis e aqui foram feitas algumas das mais importantes descobertas de seres vivos que habitavam a Terra há muitos milhares de anos. Esse registro é inestimável para o estudo da evolução biológica e até geológica do planeta, além de gerar um fascínio ímpar no público em geral. “Não é preciso lembrar do gosto que as crianças têm por dinossauros e outros animais de grande porte. Isso é porta de entrada para os estudos, principalmente em regiões carentes”, disse Kellner. 

Tráfico de fósseis 

Mas não são apenas crianças que são atraídas por fósseis. A demanda de colecionadores e até mesmo instituições de pesquisa do exterior, aliada à fraca fiscalização, criam um tráfico intenso desse patrimônio para fora do país. Para se ter uma ideia, em 2022 a França está trabalhando na devolução de 999 fósseis brasileiros do período Cretáceo que foram encontrados em uma loja particular. Outro exemplo foi um colecionador que pediu para ser enterrado com um fóssil de Archaeopteryx, um patrimônio valiosíssimo que poderia ajudar a ciência a entender mais sobre a ligação entre os dinossauros antigos e as aves modernas. “Sem dúvida as coleções particulares são os casos mais graves, pois esses materiais simplesmente somem”, alertou Taissa Rodrigues. 

 

 

O professor Antonio Alamo Feitosa trazendo um questionamento crucial para o debate

Os três palestrantes foram unânimes em condenar o comércio de fósseis e os pesquisadores brasileiros que facilitam essa prática. Também foram tecidas duras críticas à Agência Nacional de Mineração (ANM), que é o órgão responsável pelo controle desse patrimônio brasileiro. Para os cientistas, é um erro ter uma agência responsável apenas pela extração, sem maiores preocupações com defesa e fiscalização quando o fóssil sai da rocha. “Hoje a ANM tem apenas três paleontólogos contratados e não é como se faltasse mão-de-obra qualificada no Brasil”, resumiu Rodrigues. 

Regulação ainda deficiente 

O fluxo de patrimônio paleontológico para o exterior é histórico e remete ao Brasil Colônia e Império. O dinamarquês Peter Lund, considerado pai da paleontologia brasileira, enviou uma coleção inestimável de ossadas para o Museu de Copenhague na década de 1820, que foi inclusive citada por Charles Darwin no livro “A Origem das Espécies”. Naquela época, essa era uma preocupação compreensível, dada a falta de condições adequadas para armazenamento no Brasil. O problema é quando esse fluxo continua, mesmo quando o Brasil passa a formar seus próprios paleontólogos e instituições de pesquisa. “Precisamos urgentemente descolonizar a paleontologia brasileira e nos comportarmos como país soberano”, afirmou Alamo Feitosa. 

A primeira regulação brasileira sobre o tema data de 1942. Trata-se de um Decreto-Lei assinado por Getúlio Vargas, que determina que depósitos fossilíferos são propriedade nacional e outorga o controle da extração de fósseis ao Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), atual ANM. Em 1973 o país ratificou a Convenção da Unesco para o combate do tráfico de bens culturais e, em 1988, com a nova Constituição, definiu sítios paleontológicos como patrimônios culturais brasileiros. Entretanto, Taissa Rodrigues afirma que a definição legal de vários termos ainda é vaga, e que faltam normas que regulem melhor coleções privadas e o transporte de fósseis. 

Alexander Kellner defendeu a liberdade que a legislação atual confere aos cientistas nacionais e concordou que ainda faltam, principalmente, punições mais rígidas para quem facilita o tráfico de fósseis. “Por sua posição privilegiada, os pesquisadores devem ser mais rigorosamente punidos quando auxiliam na retirada desses materiais do Brasil”, enfatizou. 

Papel dos periódicos 

O tráfico de fósseis vem ganhando visibilidade desde os anos 2000 e são vários os casos que apareceram na mídia gerando algum tipo de comoção. Alamo enfatizou a necessidade de paleontólogos se engajarem nesse debate, denunciando práticas antiéticas de pesquisadores estrangeiros e periódicos científicos, e trazendo o debate para além da comunidade científica.  

Para Kellner, o mais eficaz é retirar do ar as publicações feitas com material traficado. “Isso dói no cientista”, afirmou. “É muito constrangedor ter um artigo retraído, ainda mais por questões éticas e legais”, lembrou, citando casos de fósseis que só foram recuperados mediante ameaça de despublicação. 

A mensagem que ficou da mesa-redonda foi que defender a paleontologia brasileira é lutar por mais investimento na exploração dos riquíssimos sítios que possuímos, combatendo o tráfico e repatriando fósseis brasileiros no exterior. Só assim aumentaremos as coleções nacionais e tornaremos nossos museus ainda mais atrativos, fazendo rodar economias locais baseadas no turismo e na cultura e estimulando crianças e jovens a escolherem a ciência e a educação como motores de transformação do futuro. 


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Paulo Saldiva: impactos da covid-19 no corpo humano e na desinformação

O Acadêmico Paulo Saldiva, médico patologista, fez sua apresentação “Diálogos entre os mundos real e o imaginário: da mesa de autópsia às redes sociais” na terça-feira, 26 de julho, no segundo dia da 74ª Reunião Anual da SBPC. O cientista falou sobre sua experiência de quase dois anos dentro dos laboratórios da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), realizando autópsias em vítimas da covid-19. 

Conclusões clínicas pós-mortem 

Segundo Saldiva, dados coletados no estado de São Paulo mostraram que os índices de mortalidade por covid-19 deixam clara a relação entre a doença e a desigualdade: o número de óbitos aumenta à medida em que as condições socioeconômicas diminuem. “São Paulo começou a vacinar prioritariamente a zona central, que já era privilegiada, enquanto as pessoas na periferia sofriam com o avanço da doença. A taxa de mortalidade entre pessoas negras é 16 vezes maior do que entre pessoas brancas. ”, apontou o pesquisador.  

Seis anos antes de a pandemia ter início no Brasil, um grupo da FM-USP, sob coordenação de Saldiva, havia desenvolvido uma série de técnicas de autópsia minimamente invasivas, baseadas em diagnóstico por imagem e intervenção percutânea, em que se faz uma punção na pele para o acesso aos órgãos internos e tecidos. Essas técnicas foram utilizadas nas vítimas de covid-19, dado o alto risco de espalhamento do vírus não permitir o uso da técnica tradicional, com a abertura do corpo.

Os resultados trouxeram à tona aspectos inusitados da doença: os pulmões das vítimas de covid estavam rígidos, uma vez que suas lesões cicatrizavam de forma errada. A “geografia pós-mortem”, segundo o Acadêmico, apontou para tromboses em grandes vasos e pequenas tromboses venosas sob o córtex cerebral, que geravam micro acidentes vasculares cerebrais (AVCs). Com isso, surgiam pequenos edemas cerebrais em áreas fragmentadas, causando isquemia neuronal e múltiplos infartos sistêmicos. Nos organismos de crianças imunossuprimidas, a autópsia apontava para lesões pulmonares menos intensas e alterações cerebrais mais expressivas, além de complicações nos tecidos e músculos cardíacos. 

A presença prévia de comorbidades e o uso indiscriminado de corticoides também aumentavam o risco de pacientes desenvolverem uma inflamação secundária, a rara mucormicose, também conhecida como doença do fungo preto. O quadro avançava junto com a covid-19, com os fungos atingindo os vasos sanguíneos, levando à necrose dos tecidos, principalmente na região facial. 

Um depoimento pessoal 

Questionado sobre seus sentimentos ao realizar autópsias,  o Acadêmico afirmou que o primeiro sentimento é o de culpa, ao pensar no que poderia ter sido feito para salvar aquele paciente. “Não é fácil, mas é uma atividade que traz muito retorno para a ciência.”

Nas circunstâncias da covid-19, uma das coisas que mais entristeceu Saldiva foi lidar com mortes como as de moradores das regiões periféricas da cidade, que não puderam se isolar por completo durante o período de alta propagação do vírus ou não tiveram condições de comprar equipamentos básicos de proteção, como máscaras e álcool em gel. “Eram mortos invisíveis para a sociedade, uma vez que os números diários tão altos não provocavam tanta comoção como um atropelamento ou outro incidente isolado. Mas nós, médicos, tínhamos que conversar com os familiares e nos colocávamos no lugar desses pacientes todos os dias.” 

Desinformação e ética

A valorização da ciência durante a pandemia também trouxe uma deturpação das informações científicas, um modo de divulgação de fake news muito utilizado, de acordo com os interesses de diferentes setores da sociedade. Por exemplo: medidas como a manutenção da distância de 40cm entre passageiros no transporte público, ou a redução de 30% na capacidade dos restaurantes são irrelevantes, de acordo com o médico, não têm respaldo científico.

Saldiva apresentou um mapa que indicava os países que mais espalharam desinformação sobre a covid-19 no ano de 2020: na América Latina, Brasil e Argentina ocupavam as principais posições. “A desinformação sempre existiu, só que agora ela tem capacidade de ser produzida numa quantidade e difundida num ritmo muito mais rápido, que é epidêmico”, apontou o patologista. Ele considera que a “vacina” para enfrentar a situação envolve a produção de informação confiável, mas em linguagem coloquial, e cita o exemplo da China, que conta com influencers para produzir conteúdo científico numa linguagem mais moderna.  

As questões éticas – que estão, afinal, por trás de todos os tipos de desinformação – aparecem nos mais diversos aspectos de abordagem da doença. “Não podemos esquecer dos países ricos que ingressaram no Consórcio Covax e compraram duas ou três vezes mais quantidade de vacina do que precisavam, prejudicando países com menor poder aquisitivo”, apontou Saldiva. “No futuro, vamos ter que encarar esse problema. Os avanços da ciência serão destinados àqueles que precisam ou àqueles que podem pagar por ela?”


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Glaucius Oliva: fronteiras da inovação

O Acadêmico Glaucius Oliva e a professora titular da UnB Laila Espindola durante o evento (Foto: Jardel Rodrigues/SBPC).

Na última terça-feira, 26 de julho, aconteceu a mesa-redonda Fronteiras da Inovação: Desafios para o Desenvolvimento de Novos Produtos, durante a 74ª Reunião Anual da SBPC em Brasília. A mesa contou com a participação do vice-presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC) para a região São Paulo, Glaucius Oliva, e de Cristiano Guimarães, representante da startup Nintx de inovação farmacêutica. A moderação ficou por conta da farmacêutica Laila Espindola, professora titular da Universidade de Brasília (UnB). 

Histórico da ciência brasileira 

“Todo o progresso humano está diretamente relacionado ao avanço do conhecimento”. Foi com essa frase que Glaucius Oliva abriu sua fala durante a mesa-redonda. O Acadêmico afirmou que informação e educação são as principais moedas do século XXI, e permitem que mesmo países com poucos recursos naturais se tornem ricos e incrementem a qualidade de vida de suas populações. “Nós vendemos matéria-prima em toneladas para comprarmos produtos de maior valor agregado em gramas”, sumarizou a situação do Brasil. 

O histórico da educação superior brasileira é curto, mesmo quando comparado a nossos vizinhos da América espanhola. As primeiras faculdades só foram surgir por aqui no início do século XIX, com a chegada da família real portuguesa, e as primeiras universidades só foram criadas no século XX. “Países como o Peru já possuíam universidades no século XVI”, lembrou o Acadêmico. 

O século XX marcou o início do processo de expansão da ciência brasileira. Organizações como a ABC, de 1916, e a SBPC, de 1948, foram fundamentais na luta pela criação de órgãos para financiar a pesquisa e educação nacional, como o CNPq e a Capes, ambos de 1951. Mas foi apenas na segunda metade do século que o setor deu um salto de produtividade, crescendo sua participação na produção científica mundial de 0,5% para 3,2% desde 1980. “Hoje em dia, temos cerca de 45 mil grupos de pesquisa atuando no Brasil, além de formarmos 65 mil mestres e 25 mil doutores por ano”, enumera. 

Mas ainda temos muito o que avançar. Atualmente, o país tem cerca de 25% das pessoas entre 25 e 34 anos com ensino superior, números muito abaixo de países que investem pesado em educação, como a Coreia do Sul (70%), e menores mesmo que países como Portugal (35%) e Colômbia (29%). “Estamos comprometendo nosso principal recurso, que são as pessoas”, resumiu Oliva. 

Patentes e inovação 

Uma das melhores formas da ciência contribuir com a sociedade é pela inovação. E inovar não significa apenas criar uma máquina revolucionária, mas qualquer forma de incorporação de conhecimento a um processo, visando torná-lo mais rápido, barato ou melhor. Isso vale tanto para produtos quanto para serviços ou políticas públicas, e as instituições de ensino e pesquisa têm papel central nesse desenvolvimento. 

Uma das formas mais testadas e comprovadas de incentivo à inovação é pelas patentes, que garantem uma janela temporal de exclusividade para que um inventor explore comercialmente sua criação. No Brasil, a concentração de patenteamentos pelas universidades é muito maior do que em países desenvolvidos, o que Oliva considera um erro. “Precisamos facilitar para que grupos de pesquisa criem startups e registrem patentes, isso ainda é raro por aqui”, afirmou. 

Na mesma linha, Cristiano Guimarães também criticou a forma como o Brasil lida com patentes. “Incomoda muito ver o superpatenteamento brasileiro, dá a impressão de que é feito apenas para ter números. Pelo menos na área farmacêutica, o patenteamento precoce, antes de ter algo robusto, é algo que mata a inovação”, criticou. 

Cristiano Guimarães durante a mesa-redonda (Foto: Jardel Rodrigues/SBPC)

Casos de sucesso brasileiros 

Glaucius Oliva citou ainda três exemplares casos de sucesso brasileiros: a Petrobras, uma das maiores especialistas do mundo em extração de petróleo profundo; a Embraer, terceira maior produtora de aviões do planeta; e Embrapa, cuja criação foi fundamental para a expansão vertiginosa da agropecuária brasileira nos últimos 50 anos. “Todas essas empresas têm algo em comum: recursos humanos altamente especializados e próximos aos centros de inovação, além de forte apoio estatal”, explicou o Acadêmico. 

Oliva também defendeu o modelo de financiamento tripartite feito pela Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii), no qual o financiamento de pesquisas é dividido entre empresas, governo e universidades. “É um caso de sucesso no apoio a empresas já constituídas, e no estímulo à inovação”, afirmou. O Acadêmico também criticou sistemas de avaliação focados excessivamente no impacto e produtividade científica. “É preciso também olhar para o impacto social”, finalizou. 


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