A Academia Brasileira de Ciências (ABC), sediada no Rio de Janeiro, anunciou em maio um centro de memória, que deverá organizar, preservar e divulgar sua história, iniciada oficialmente em 1916. Faculdades ou institutos das universidades de São Paulo (USP), estadual de Campinas (Unicamp), federal de Minas Gerais (UFMG) e outras já têm os seus. Muitos órgãos públicos e empresas também.
Motivados pela constatação da falta de organização de informações históricas ou pela demanda externa – impulsionada principalmente pela Lei de Acesso à Informação, de 2011 –, os centros de memória são mais amplos que os centros de documentação, por serem híbridos e acolherem vários tipos de documentos e objetos. Sua concretização geralmente é repleta de emoções – nem sempre de contentamento, como quando os organizadores encontram documentos em péssimas condições ou não acham o que desejavam. Mas há também descobertas inesperadas, que aprofundam a história institucional e trazem à tona tópicos que merecem ser mais bem pesquisados.
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Em janeiro deste ano, logo após ingressar na equipe de curadoria dos documentos do Centro de Memória da ABC, o historiador Paulo Cruz Terra, coordenador do Laboratório de História Oral e Imagem (Labhoi) da Universidade Federal Fluminense (UFF), entrou na sala em que estavam as caixas com os documentos que guardavam a história da instituição: “Quando vi, quase caí para trás. Era o caos. Não havia catálogo de quase nada”. Em outra sala, ele respirou aliviado ao encontrar, já organizados, os livros contábeis, as atas das reuniões e as pastas pessoais de boa parte dos 974 membros titulares ou afiliados. Algumas pastas contêm diários, históricos escolares e outros documentos doados pelas famílias.
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Especialistas do Laboratório de Conservação e Restauração de Documentos em Papel do Museu de Astronomia e Ciências Afins (Lapel/Mast) cuidarão da higienização, digitalização e guarda dos documentos do Centro de Memória da ABC. “Certamente, deveremos descobrir mais coisas do que pensamos”, anima-se Terra.
Uma das frentes de pesquisa, com a bióloga da UFRJ [e Acadêmica] Débora Foguel, já mostrou a baixa participação de mulheres na ABC – apenas 14%, desde a fundação. A matemática e engenheira Marília Chaves Peixoto (1921-1961) foi a primeira mulher eleita para a ABC, em 1951, e Helena Nader foi a primeira a se tornar presidente, somente em 2022. O número de negros ainda não foi identificado, mas não deve chegar a uma dezena, ainda que o segundo presidente tenha sido Juliano Moreira (1873-1933), psiquiatra negro baiano.
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*A reportagem acima foi publicada com o título “Desempoeirando o passado” na edição impressa nº 342, de agosto de 2024.
Tendo em vista os 108 anos de existência da ABC, muita documentação relativa à sua história, entrelaçada com a da ciência brasileira, está em seus arquivos, físicos e digitais. Considerando seu interesse para a sociedade, a Diretoria da Academia Brasileira de Ciências decidiu promover o Projeto Memória Histórica da ABC, realizado em colaboração com o Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST) e financiado por edital da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro Carlos Chagas Filho (Faperj).
O objetivo final do projeto é compor uma base de dados – o Centro de Memória Histórica da ABC “José Murilo de Carvalho” – que apresente a descrição dos documentos e que permita a realização de buscas e o acesso público à documentação digitalizada, de especial interesse para pesquisadores, cientistas, estudantes e comunidade, interessados na história da ABC e da ciência brasileira. A base de dados será hospedada no sítio da ABC. O modelo é a base de dados Zenith do Arquivo de História da Ciência (AHC) do MAST.
Histórico
Como parte das comemorações do centenário da Academia Brasileira de Ciências (ABC), em 2016, o historiador e membro titular José Murilo de Carvalho coordenou um projeto de pesquisa sobre o passado da instituição. Com colaboração do paleontólogo e Acadêmico Diógenes de Almeida Campos e do físico e historiador da ciência Ildeu de Castro Moreira, o resultado final foi materializado na exposição “100 Anos da Academia Brasileira de Ciências” – montada nas cidades de Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília e Porto Seguro – e na publicação de um livro comemorativo com o mesmo nome.
Outras publicações também foram lançadas, são elas: a revista de divulgação científica Academia Brasileira de Ciências e os Caminhos da Pesquisa Científica no Brasil – Uma História Entrelaçada, o gibi 18 Cientistas Brasileiros e suas Contribuições e o e-book100 Anos da ABC, estes dois últimos voltados ao público infanto-juvenil. Para além dos produtos finais, o projeto trouxe à tona o acervo riquíssimo da ABC, formado por documentos, correspondências, publicações e manuscritos de acadêmicos vivos e falecidos, além de gravações de entrevistas, conferências, palestras e atividades realizadas por personalidades célebres da ciência, tecnologia e educação do país e do mundo.
José Murilo de Carvalho faleceu em 2023, aos 84 anos, deixando um legado grandioso na forma como o Brasil compreende sua própria história. No que diz respeito à ABC, as descobertas trazidas por sua pesquisa serão agora eternizadas na forma de um acervo digital que levará seu nome. No mesmo ano, foi criada uma comissão organizadora sob coordenação dos membros titulares Patrícia Torres Bozza e Diógenes de Almeida Campos. A equipe científica conta ainda com os Acadêmicos Débora Foguel (UFRJ), Paulo Cruz Terra (UFF), Thaiane Moreira de Oliveira (UFF) e Rodrigo Toniol (UFF) e com os pesquisadores Luisa Massarani (Fiocruz) e Ildeu de Castro Moreira (UFRJ).
O termo de intenção para dar o pontapé inicial foi assinado durante a Reunião Magna de 2024, evento mais importante do calendário da ABC. O projeto prevê que a documentação dos Acadêmicos vivos e dos projetos em curso ficarão na sede da Academia, no Rio de Janeiro, enquanto documentos ligados aos acadêmicos já falecidos e aos projetos já concluídos irão juntar-se à Biblioteca Henrique Morize do MAST(clique no link e busque por “Biblioteca da ABC”) – onde já estão os livros e publicações da Biblioteca Aristides Pacheco Leão, da ABC, desde 2007.
Primeira etapa já começou
O trabalho envolve a recuperação, organização e catalogação e digitalização do acervo da ABC, composto de documentos em diversos formatos produzidos desde 1916.
A primeira etapa foi iniciada e envolve a higienização, recuperação e organização do acervo, com base nas diretrizes do Laboratório de Conservação e Restauração de Documentos em Papel (Lapel/MAST), e ocorre sob a supervisão de seus especialistas. Está etapa será seguida pela identificação, seleção e organização dos documentos, que terá curadoria dos historiadores Moema Rezende Vergara (MAST e Unirio) e Paulo Cruz Terra (ABC e UFF).
O acervo terá uma linha do tempo da história da ABC em paralelo com a da ciência brasileira; uma galeria de ex-presidentes; uma página especial sobre a criação da Rádio Sociedade, primeira emissora de rádio do país; destaques para cientistas históricos que se tornaram membros correspondentes, como Marie Curie e J. Robert Oppenheimer; visitantes ilustres; posicionamentos políticos históricos da ABC; colaborações com outras academias e instituições ligadas à ciência, tecnologia, inovação e educação nacionais e internacionais; eventos; prêmios, medalhas e muito mais. Como parte de seu compromisso com a pesquisa brasileira, a ABC acredita que o acervo será de valor inestimável para o campo de estudo em História da Ciência no Brasil.
Em um momento tão delicado para a ciência nacional, em que pesquisadores e instituições sofrem ataques e o negacionismo científico cresce, a ABC também se dispõe a pensar ações mais amplas para divulgação científica. Para valorizar o presente é preciso conhecer o passado, e, para isso, é preciso memória.