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A angústia do matemático Ludwig Boltzmann – 3ª parte

Antonio Galves é matemático, Professor Titular da Universidade de S.Paulo, membro titular da Academia Brasileira de Ciências e coordenador do Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão em Neuromatemática (CEPID NeuroMat), financiado pela FAPESP. As atividades do CEPID NeuroMat podem ser acompanhadas através das páginas www.neuromat.numec.prp.usp.br e www.facebook.com/neuromathematics

boltzmann

* Resumo dos episódios anteriores: No final do século XIX, Boltzmann propôs derivar as leis da Termodinâmica a partir do estudo da evolução de sistemas de moléculas como as da água. Esse projeto inovador foi violentamente atacado pelas autoridades científicas da época. Os detratores de Boltzmann diziam que o projeto era logicamente incoerente, porque ele propunha derivar leis irreversíveis, como as da Termodinâmica, a partir do estudo de sistemas de moléculas que são reversíveis, por seguirem as leis da Mecânica. Dois jovens matemáticos, Paulo e Tatiana Ehrenfest encontraram uma maneira muito simples de mostrar que não havia nenhuma impossibilidade lógica no projeto de Boltzmann. Fizeram isso estudando um modelo matemático descrevendo de maneira simplificada a evolução de um gás entre dois compartimentos conectados.

3ª Parte: Reversibilidade e irreversibilidade são dois aspectos da mesma história
No modelo de Ehrenfest dois compartimentos conectados são representados por duas urnas. O gás contido nos compartimentos é representado por um conjunto de bolas numeradas de 1 até um número fixado representando o número total de bolas. A evolução no tempo das posições das moléculas do gás é modelada da seguinte maneira. Em cada etapa da evolução, sorteamos uma bola, usando uma roleta. A bola cujo número foi sorteado é “candidata” a mudar de urna. Para decidir se a mudança de urna ocorrerá ou não, uma moeda honesta é lançada. Se a moeda cair em cara, a bola sorteada muda de urna. Já se sair coroa, a bola sorteada permanece na urna em que estava. Ao longo dos sorteios sucessivos, as bolas irão mudando ou não de urna. Exatamente como ocorre com as moléculas do gás.

Alguns leitores mais céticos protestam:

– E qual é o interesse disso? Qual o interesse de estudar o que acontece com um conjunto de bolas que passam de uma urna para outra, seguindo os sorteios de uma roleta e de uma moeda?

O interesse do Modelo de Ehrenfest é que sua evolução pode ser simultaneamente descrita como sendo reversível e irreversível. Reversível como previsto pelas leis da Mecânica que descreve a evolução de um sistema de moléculas. E irreversível como previsto pelas leis da Termodinâmica que controlam a evolução do gás.

Os protestos aumentam:

– Que absurdo é esse?! Como pode uma mesma evolução ter duas descrições contraditórias?!

A chave do mistério é simples. Os aspectos reversível e irreversível da evolução das posições das bolas aparecem em níveis distintos de descrição do sistema.

O aspecto irreversível da evolução

Suponhamos que no início da experiência todas as bolas se encontrassem numa das urnas, digamos na urna A. Assim, no início da experiência a probabilidade de encontrar uma bola qualquer fixada, por exemplo a bola de número 1, na urna A é 1. Em outras palavras, com certeza a bola 1 está na urna A no início da experiência.

Fazemos um primeiro sorteio da roleta e lançamos a moeda para decidir se a bola cujo número foi sorteado troca ou não de urna. Qual é a probabilidade da bola de número 1 continuar na urna A? Essa probabilidade é muito alta, mas não é mais 1. Com efeito, se por acaso a roleta sortear precisamente o número 1 e a moeda cair em cara, então a bola de número 1 passará da urna A para a urna B. A probabilidade disso acontecer é igual a 1/2 vezes 1 sobre o número total de bolas.

Os leitores protestam:

– De onde vem esse valor: “1/2 vezes 1 sobre o número total de bolas”?!

Explico: 1/2 é a probabilidade da moeda cair na face cara. Como a moeda é honesta, a probabilidade dela cair na face cara é igual à probabilidade dela cair na face coroa. E a fração 1 sobre o número total de bolas é a probabilidade da roleta parar precisamente no número

1. Ouço rumores de concordância na audiência.

Continuamos a fazer esse cálculo para as etapas sucessivas da evolução do sistema. À medida que os sorteios da roleta e da moeda se sucedem, a probabilidade de encontrarmos a bola de número 1 na urna A converge para o valor 1/2. Ou seja, depois de um número muito grande de sorteios.

Um leitor concorda:

– É bem intuitivo que após muitos sorteios a bola de número 1 terá praticamente a mesma probabilidade de se encontrar na urna A ou na urna B.

Podemos ir mais longe na descrição. Podemos nos interessar pela evolução simultânea de um subconjunto qualquer de bolas. Um cálculo um pouco mais complicado mostra que a probabilidade de cada uma dessas bolas estar na urna A converge para 1/2 e que a posição de cada bola é independente da posição das outras bolas. Isto é, saber que a bola de numero 1 está, por exemplo, na urna A, não nos ajuda a prever onde estará uma outra bola qualquer.

Ouço gritos de entusiasmo na audiência:

– Quer dizer que após um grande número de sorteios, as posições das bolas se distribuirão como os resultados de uma sequência de lançamentos de uma moeda honesta tendo uma face marcada com a letra A e a outra marcada com a letra B!!! Ou seja, a evolução do sistema embaralha totalmente as posições das bolas!

É isso mesmo. E esse é precisamente o aspecto irreversível da evolução do sistema.

Murmúrios de apreensão e de surpresa na audiência. – Como assim: irreversível?!

Respondo: a evolução é irreversível porque ela “tende” a embaralhar cada vez as posições das bolas entre as duas urnas. Começamos com uma situação totalmente ordenada: todas as bolas na urna A. E terminamos com todas as bolas distribuídas da maneira a mais aleatória possível. Ao longo dos sorteios, o sistema evoluiu para uma distribuição de máxima desordem, aquela em que cada bola está com igual probabilidade numa urna ou na outra e isso independentemente das posições das outras bolas.

Um leitor conhecedor das leis da Termodinâmica grita subitamente: – Mas isso é o que prevê a Segunda Lei da Termodinâmica! O sistema converge ao longo do tempo para uma situação de “entropia” máxima!!!

Satisfeito, eu confirmo: sim, o sistema converge para uma situação de “entropia” máxima, isto é de desordem máxima. No artigo em que o modelo foi apresentado, Paulo e Tatiana mostraram que a evolução das posições das bolas entre as duas urnas satisfazia a Segunda Lei da Termodinâmica. Mas falaremos disso com mais vagar numa outra ocasião.

A convergência que acabo de descrever é um teorema, isto é, um resultado matemático demonstrado rigorosamente, usando sucessivas deduções lógicas. A bem da verdade, trata-se de um teorema cuja demonstração é bastante simples e pode ser apresentada num curso introdutório de Processos Estocásticos.

Os leitores perguntam:

– O que é um Processo Estocástico?!

Processos Estocásticos são modelos matemáticos. Eles descrevem “histórias” que dependem do acaso. No modelo de Ehrenfest a história é a da evolução das posições da bolas entre as duas urnas. E o acaso é representado pelos sorteios sucessivos da roleta e da moeda governando essa evolução.

O aspecto reversível da evolução

Os leitores convencidos pelas linhas acima me perguntam:

– E como se manifesta o aspecto reversível da evolução das posições das bolas? E como podemos ver isso experimentalmente?

Isso pode ser visto mais facilmente, mudando a forma gráfica de representar a evolução do sistema. Notem que não estamos mudando as regras do jogo. Temos sempre duas urnas, um conjunto de bolas numeradas, uma roleta sorteando o número da bola candidata a mudar de urna a cada passo e uma moeda que dirá se a mudança ocorrerá ou não. Vamos simplesmente utilizar uma outra representação gráfica para indicar as posições das bolas a cada passo do jogo.

Vamos indicar as posições em cada passo, através de uma tabela com duas linhas. Na primeira linha indicamos os números das bolas: 1, 2,….. Essa linha não será alterada ao longo da experiência. Na segunda linha nós indicamos a urna, A ou B, em que está cada bola naquela etapa da seqüência de sorteios.

Ao longo dos sorteios as indicações nas cédulas da segunda linha irão sendo alteradas, indicando as posições sucessivas ocupadas pelas bolas. Aquelas que estão na urna A, terão a letra A marcada nas cédulas da segunda linha correspondendo a seus números, e as demais terão a letra B, marcada nas suas cédulas.

Vamos fazer um filme mostrando como as posições das bolas evolui ao longo dos sorteios. Nesse filme, os fotogramas sucessivos mostrarão as tabelas sucessivas representando as posições sucessivas das bolas nas urnas em função dos sorteios sucessivos.

Desta vez vamos iniciar a experiência, sorteando ao acaso com igual probabilidade em que urna ficará cada bola. Faremos um sorteio para cada bola independentemente das outras. Ou seja, vamos agora iniciar a experiência, colocando o sistema na situação em que a convergência das probabilidades de ocupação o colocaria ao cabo de uma sequência muito longa de sorteios.

Passamos o filme mostrando como as posições das bolas evoluem no decorrer dos sorteios sucessivos. Fazemos isso mostrando o filme ora na sequência em que foi filmado originalmente, ora de “trás para a frente”.

E aí vem a surpresa. É impossível para um espectador identificar qual é a sequência original de filmagem e qual é a sequência invertida, quando o filme passa de trás para a frente. Num sentido ou no outro o filme mostra o mesmo tipo de evolução. Não há nada na evolução de imagens assistidas que nos permita identificar a ordem original de filmagem! No Modelo de Ehrenfest essa é a forma pela qual a reversibilidade se manifesta.

O sucesso do programa de Boltzmann e seu desespero pessoal

Os resultados demonstrados rigorosamente para o Modelo de Ehrenfest mostram cabalmente que não havia nenhuma impossibilidade lógica, nenhuma incoerência básica no projeto de Boltzmann.

O que havia era a dificuldade que uma boa parte dos mais importantes cientistas de sua época teve para entender as idéias inovadoras que norteavam seu programa de pesquisa.

Um leitor me pergunta:

– Mas afinal essa história tem um final feliz ou não? Do ponto de vista da vida pessoal de Boltzmann a história terminou em tragédia. Em 1905 ele se suicidou. É impossível saber o que o levou a esse gesto de desespero, mas podemos imaginar que a violenta campanha de descrédito movida contra ele tenha contribuído para isso.

Do ponto de vista científico essa história não terminou ainda. O projeto de Boltzmann deu origem a uma nova área de pesquisa chamada Mecânica Estatística que continua a se desenvolver com grande ímpeto. Não é exagero afirmar que a Mecânica Estatística teve e continua tendo uma influência gigantesca sobre nossa maneira de entender fenômenos naturais. Do ponto de vista da Matemática, o projeto de Boltzmann motivou a criação de novos modelos e resultados, influenciando de maneira duradoura a Teoria das Probabilidades e motivando a criação da Teoria Ergódica.

Então, do ponto de vista da ciência a resposta é: sim! Essa história levou a uma feliz mudança de paradigmas e à criação de novas áreas da Física e da Matemática. Tudo isso nascido do projeto inovador de um cientista que enxergou além do horizonte da ciência de sua época.

Confira aqui os artigos anteriores da série:

A angústia do matemático Ludwig Boltzmann – 1ª parte

A angústia do matemático Ludwig Boltzmann – 2ª parte

A angústia do matemático Ludwig Boltzmann – 2ª parte

Antonio Galves é matemático, Professor Titular da Universidade de S.Paulo, membro titular da Academia Brasileira de Ciências e coordenador do Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão em Neuromatemática (CEPID NeuroMat), financiado pela FAPESP. As atividades do CEPID NeuroMat podem ser acompanhadas através das páginas www.neuromat.numec.prp.usp.br e www.facebook.com/ neuromathematics.

Resumo da 1ª parte: No final do século XIX, Boltzmann propôs derivar as leis da Termodinâmica a partir do estudo da evolução de sistemas de moléculas como as da água. Esse projeto inovador foi violentamente atacado pelas autoridades científicas da sua época. Os detratores de Boltzmann diziam que o projeto era logicamente incoerente, porque ele propunha derivar leis irreversíveis, como as da Termodinâmica, a partir do estudo de sistemas de moléculas que são reversíveis, por seguirem as leis da Mecânica. Um casal de jovens matemáticos, Paulo e Tatiana Ehrenfest entendeu a idéia central de Boltzmann. Eles iam mostrar ao mundo científico que reversibilidade e irreversibilidade podiam coexistir no mesmo sistema.

2a. Parte: O modelo de Ehrenfest.

Paulo e Tatiana encontraram uma maneira muito simples de mostrar que não havia nenhuma impossibilidade lógica no projeto proposto por Boltzmann. Na verdade, reversibilidade e irreversibilidade são dois aspectos da mesma história. E eles iam mostrar isso através de um modelo matemático simples.

Esse modelo descreve de maneira esquemática um sistema composto de dois compartimentos iguais, um deles contendo um certo volume de gás, o outro estando vazio. Se os dois compartimentos forem conectados por um tubo, o gás fluirá de um compartimento para outro.

No modelo proposto por Paulo e Tatiana os dois recipientes são representados por duas urnas. Vamos chamá-las de urnas A e B. O gás, ou melhor o conjunto de moléculas que o constituem serão representados por um conjunto de bolas iguais e numeradas de 1 até um número fixado muito grande.

Paul Ehrenfest
A evolução no tempo das posições das moléculas do gás será representada por uma sequência de sorteios de bolas da seguinte forma. Vamos imaginar que temos à nossa disposição uma roleta perfeitamente honesta dividida em espaços iguais numerados de 1 até o número total de bolas. Ou seja, se usarmos 100 bolas, a roleta terá 100 divisões iguais, numeradas de 1 até 100.Usamos essa roleta para alterar ao longo do tempo as posições das bolas. Isso é feito da seguinte forma. Sorteamos um número usando a roleta. A bola cujo número foi sorteada é “candidata” a mudar de urna. Para decidir se a mudança de urna ocorrerá ou não, uma moeda honesta é lançada. Se sair cara, a bola cujo número havia sido sorteado na roleta muda de urna. Se a bola estava na urna A, ela muda para a urna B. Já se sair coroa, a bola cujo número foi sorteado permanecerá na urna em que estava. Fazemos isso sucessivamente.A evolução das posições das bolas representará a evolução das moléculas do gás, passando de um outro para o outro recipiente. No início, todas as bolas estão na urna A. Representamos assim o fato que inicialmente um compartimento continha todo o gás e o outro estava vazio. Ao longo dos sorteios sucessivos da roleta e da moeda, as bolas irão mudando ou não de urna. Exatamente como ocorre com as moléculas do gás.
Tatiana Ehrenfest
Uma objeção possível dos leitores.Ouço já alguns leitores protestando:- Um modelo baseado em duas urnas e um conjunto de bolas numeradas é algo muito simplista. Isso não leva em consideração todos os detalhes complicados da evolução real de um gás entre dois compartimentos conectados.De fato, trata-se de um modelo extremamente simples. Na verdade, modelos matemáticos tem que ser simples, para que suas propriedades possam ser estudadas de forma profunda e rigorosa e enunciadas através de teoremas.

Os leitores me interrogam de novo.

– E qual é o interesse disso? Qual o interesse de estudar o que acontece com um conjunto de bolas que passam de urna para o outro, seguindo os sorteios de uma roleta e de uma moeda?

O interesse do Modelo de Ehrenfest é que sua evolução pode ser simultaneamente descrita como sendo reversível e irreversível. Reversível como previsto pelas leis da mecânica que descreve a evolução de um sistema de moléculas. E irreversível como previsto pelas leis de termodinâmica que controla a evolução de um gás.

Já ouço manifestações de protesto dos leitores que gritam em coro:

– Estamos confusos! Se o gás nunca volta inteiramente para o primeiro compartimento, como é possível que o modelo de Ehrenfest seja ao mesmo tempo reversível e irreversível?! Você quer dizer que em algum momento da evolução, ao acaso dos sorteios da roleta e da moeda, veremos todas as bolas voltarem para a primeira urna? E se assim for, porque não vemos isso experimentalmente? E se isso acontecer, como pode esse modelo ter também um comportamento irreversível?!

Todos exigem em altos brados:

– Que absurdo é esse?! Como pode uma mesma evolução ter duas descrições contraditórias?!

Essa pergunta será respondida daqui a uma semana, na 3ª parte desta história.

Confira os outros artigos da série:

A angústia do matemático Ludwig Boltzmann – 1ª parte

A angústia do matemático Ludwig Boltzmann – 3ª parte

 

A angústia do matemático Ludwig Boltzmann – 1ª parte

Antonio Galves é matemático, Professor Titular da Universidade de S.Paulo e coordenador do Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão em Neuromatemática (CEPID NeuroMat), financiado pela FAPESP. As atividades do CEPID NeuroMat podem ser acompanhadas através das páginas www.neuromat.numec.prp.usp.br e www.facebook.com/ neuromathematics.

1a. parte: Um projeto científico desprezado.

Vou-lhes contar uma história ocorrida há pouco mais de cem anos. Nela um projeto científico de grande originalidade se choca com a incompreensão da maioria das autoridades científicas da época. Essa história começa com ofensas e chacotas.

– Projeto absurdo, ilógico, imbecil, maluco!

A quem se dirigiam esses insultos? Ao projeto científico do físico e matemático Ludwig Boltzmann.

Ludwig Boltzmann

Por que tanta agressividade? Ouçamos o que diziam os detratores de Boltzmann.

– Como os senhores bem sabem, graças ao trabalho de jovens brilhantes como Clausius, a Física foi recentemente enriquecida por uma nova área de pesquisa que recebeu o nome de Termodinâmica. A Termodinâmica foi criada para descrever o funcionamento das máquinas a vapor.

Murmúrios de aprovação na assistência.

– Pois bem, vem agora nosso “colega” Boltzmann com um projeto estapafúrdio: derivar as leis da Termodinâmica a partir do estudo de sistemas de
moléculas como as da água que, ao ser aquecida e evaporar, aciona turbinas e faz funcionar as máquinas a vapor.

Gritos de espanto e incredulidade na assistência.

– Mas isso meus senhores é um absurdo, uma impossibilidade lógica! Só mesmo um maluco ou um idiota poderia propor um tal projeto de pesquisa.

Talvez algum pesquisador mais jovem e ousado levantasse o dedo e pedisse explicações sobre aquele julgamento. E a resposta já estava na ponta da língua dos detratores de Boltzmann.

⁃ Esse projeto é absurdo, porque Boltzmann quer derivar as leis da Termodinâmica a partir do estudo da evolução de sistemas de moléculas. Ora, as moléculas que compõem, por exemplo, a água estão sujeitas às leis da Mecânica derivadas no século XVII por nosso eminente colega Isaac Newton.

O jovem pesquisador atrevido pergunta, espantado.
– E que mal há nisso?!
O grande professor, do alto de sua cátedra responde.

⁃ Isso é absurdo, porque os movimentos descritos pela Mecânica são por sua própria natureza reversíveis. Todo movimento mecânico pode ser invertido no tempo. Essa é a reversibilidade característica das leis
da Mecânica.
E daí? parece perguntar o olhar do jovem atrevido.

⁃ Já os fenômenos descritos pela Termodinâmica são irreversíveis. Irreversíveis! Irreversível, por exemplo, é o processo de evaporação da água ao ser aquecida, transformando-se em vapor que servirá para empurrar os pistões de uma máquina a vapor. Logo o projeto científico de nosso “colega” Boltzmann é absurdo, porque ignora essa contradição básica.

De novo algum jovem talvez levantasse o dedo e pedisse mais explicações sobre essa suposta contradição. Já irritado, o grande professor, autoridade científica incontestável, responderia condescendente.

– Meu jovem, vou lhe dar um exemplo simples para ilustrar o que estou afirmando.

Dois botijões de gás ligados por uma mangueira.

– Meu jovem, imagine o seguinte experimento. Dois compartimentos iguais estão conectados por um tubo no qual foi instalado um registro. No início da experiência um dos dois compartimentos contém um certo volume de gás e o outro está vazio. E o registro instalado no tubo está fechado, impedindo o gás de passar de um compartimento para o outro. O jovem consegue imaginar esse dispositivo experimental?

O jovem, intimidado, balança a cabeça, afirmativamente.

– Muito bem. Agora a experiência vai começar. Abrimos o registro no tubo que conecta os dois compartimentos. Diga-me, meu jovem ouvinte, o que acontece quando abrimos o registro.

Timidamente o jovem responde:

– O gás flui pelo tubo de conexão indo de um recipiente ao outro.

Paternal, o grande professor aprova.

– Muito bem, meu jovem! Diga-nos agora o que acontecerá ao cabo de um certo tempo.

– O gás se distribuirá nos dois recipientes. Ao cabo de um certo tempo, os dois recipientes conterão quantidades aproximadamente iguais do gás.

Satisfeito, o professor prossegue.

– Muito bem, meu jovem pesquisador, você descreveu perfeitamente o que se observa experimentalmente. Deixe-me fazer-lhe uma última pergunta.

O jovem se prepara para a pergunta.

– Você já observou alguma vez o gás refluir do segundo para o primeiro compartimento, de forma que o segundo compartimento fique de novo totalmente vazio e o primeiro volte a conter todo o gás, como acontecia no início da experiência?

E a resposta saiu como esperada.

– Não, nunca observei essa evolução levando todo o gás de volta ao primeiro compartimento.
Do alto da sua cátedra o grande professor confirma.

– Você nunca observou isso, e não só você. Na verdade, ninguém nunca observou o gás que tinha ido para o segundo compartimento, refluir em seguida totalmente de volta para o primeiro compartimento. Sua observação confirma que estamos diante de um fenômeno irreversível. As coisas acontecem ao longo do tempo numa certa direção e não na direção inversa. O gás flui de um compartimento para o outro, ocupando os dois compartimentos uniformemente. E o fluxo oposto nunca foi observado.

Rumores de concordância na assistência.

– Ora, se o programa de Boltzmann fizesse algum sentido, esse fluxo contrário deveria poder ser observado experimentalmente. Como isso nunca aconteceu é claro que essa reversão é impossível. E consequentemente o programa proposto pelo nosso “colega” é absurdo e ilógico. Tenho dito!

Uma salva de palmas coroou a conclusão do grande professor que agradeceu satisfeito. Mas um observador
atento teria notado que nem todos aplaudiram. Num canto da sala um jovem casal assistia consternado a cena. Esses jovens se chamavam Paulo e Tatiana Ehrenfest. Os dois eram matemáticos e tinham entendido o que Boltzmann estava propondo. E iam mostrar ao mundo científico que reversibilidade e irreversibilidade podiam coexistir.

Como isso se deu é a história que vou lhes contar na semana que vem.

Confira os outros artigos da série:

A angústia do matemático Ludwig Boltzmann – 2ª parte

A angústia do matemático Ludwig Boltzmann – 3ª parte

Confirmado: Ciro Gomes na ABC

Dando continuidade à iniciativa da Academia Brasileira de Ciências (ABC) de promover o diálogo entre a comunidade científica e os candidatos à Presidência do Brasil em 2018, a Academia receberá o candidato pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), Ciro Gomes. O encontro ocorrerá no dia 13 de setembro de 2018, quinta-feira, na sede da Academia Brasileira de Ciências, no Centro do Rio, das 10h às 12h.

Na ocasião, o candidato receberá em mãos o documento elaborado pela ABC aos presidenciáveis, que contém propostas para as áreas de ciência, tecnologia e inovação, e debaterá ideias para o desenvolvimento do país no setor.

Em vista dos altos cortes que o setor de ciência e tecnologia vem recebendo já há diversos anos e também da recente tragédia ocorrida no Museu Nacional, é de suma importância que temas como estes sejam debatidos. Os setores da sociedade precisam contribuir para a construção dos programas políticos para o país e cobrar os compromissos assumidos em campanha após a eleição. Por esta razão, a ABC conta com o interesse e participação dos membros da Academia, da comunidade científica e dos jornalistas para repercutir e valorizar esta iniciativa.

O evento é restrito a representantes cadastrados de veículos de comunicação, membros da ABC, da comunidade científica e convidados da Diretoria, mas haverá transmissão ao vivo através da nossa página no Facebook.

É importante ressaltar que o convite para o encontro foi enviado pela ABC a todos os presidenciáveis e Ciro será o quarto candidato a visitar nossa sede. Em 18 de junho deste ano, Manuela D’ávila, então pré-candidata pelo PCdoB, foi a primeira a aceitar o convite. João Vicente Goulart, atual candidato pelo PPL, e Christian Lohbauer, candidato à vice-presidência pelo Partido Novo, vieram em seguida, ambos no dia 30 de julho de 2018.

 


SERVIÇO

Data e hora: 13 de setembro de 2018, quinta-feira, das 10h às 12h.
Local: Sede da ABC – Rua Anfilófio de Carvalho, 29, 3º andar – próximo ao metrô Cinelândia.
Inscrições para jornalistas até 11 de setembro: E-mail para ascom@abc.org.br com nome, e-mail, veículo de comunicação, função e CPF.
Confirmação de presença de Acadêmicos e pesquisadores até 12 de setembro: R.S.V.P. virtual
Mais informações: 21 3907-8141 – Fernando Verissimo

Presidente da ABC recebe visitantes para tratar de CT&I no país e cooperação internacional

No dia 27 de agosto, o presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC) Luiz Davidovich recebeu o deputado federal e candidato à reeleição Otavio Leite (PSDB-RJ) e Ricardo Rangel (Partido Novo), também candidato a deputado federal pelo Rio de Janeiro.

Nos encontros, foi debatida a situação da ciência e da tecnologia no Brasil. O deputado Otavio Leite apresentou o Inova Simples, projeto de lei de sua autoria. Ambos os deputados receberam o documento elaborado pela ABC para os candidatos à Presidência da República, Projeto de Ciência para o Brasil.

 

No dia 28, Davidovich recebeu o embaixador da República de Belarus no Brasil, Aleksandr Tserkovsky. Ele destacou o desenvolvimento do país do Leste Europeu nas áreas de ciência e tecnologia e entregou uma carta do presidente da Academia de Ciências de Belarus, Vladimir Gusakov, na qual é proposta uma colaboração entre as duas Academias.

 

A vida e a morte da ciência e da memória nacionais

Leia o manifesto das principais entidades científicas do país em apoio ao Museu Nacional e à conservação do patrimônio científico e histórico do Brasil:

A VIDA E A MORTE DA CIÊNCIA E DA MEMÓRIA NACIONAIS

Diante do espetáculo dramático das chamas engolindo o Museu Nacional e, com ele, uma parte importante da ciência e da memória nacionais, a Academia Brasileira de Ciências, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, bem como as sociedades científicas abaixo mencionadas, manifestam tristeza e indignação e conclamam a sociedade brasileira a participar ativamente da defesa do patrimônio cultural e científico da nação brasileira.

Como se já não bastasse a ameaça para o futuro da nação associada aos severos cortes orçamentários, que têm afetado o desenvolvimento científico e tecnológico do país, agora esvai-se a memória do passado, matéria prima essencial para a construção da identidade nacional.

A morte do Museu Nacional tem um significado simbólico que vai além dessa imensa perda para a cultura brasileira. Pois outros ativos também estão perecendo: com muita preocupação acompanhamos a desindustrialização do país, a precariedade da educação científica no Ensino Médio, o sucateamento de laboratórios de pesquisa de universidades e de outras instituições de ciência e tecnologia e o êxodo de jovens pesquisadores, fruto de uma política econômica que ignora o papel essencial da ciência, da educação, da cultura e da inovação no desenvolvimento de um país. Que trata recursos para C&T como gastos, e não como investimentos com alto poder de retorno, que contribuem para aumentar o PIB e o protagonismo dos países no mundo contemporâneo.

Neste momento de luto, no qual nossas entidades se solidarizam com os colegas pesquisadores, servidores e estudantes do Museu Nacional, impõe-se um esforço concentrado para reconstruir o Museu Nacional. O objetivo não será certamente a impossível reconstrução das coleções perdidas ou dos irrecuperáveis tesouros históricos e científicos que têm alimentado a pesquisa nessa instituição. Será, sim, a reconstrução de uma ideia que o fogo não devora, de um Museu que sirva de referência para as futuras gerações, repetindo a fórmula que esteve presente na sua história, de um acervo histórico e científico apoiado na pesquisa científica, reunindo, assim, indissoluvelmente, a memória e a investigação, o passado e o futuro.

É preciso, com urgência, liberar recursos emergenciais para o Museu Nacional, garantir a segurança do imóvel atual, estabelecer locais de trabalho adequados para os pesquisadores, e possibilitar a ampliação do espaço do museu, adjudicando o terreno próximo já reivindicado pela direção do Museu, deslocando assim do Palácio as atividades administrativas, de pesquisa, de guarda de coleções e de ensino de pós-graduação. Isso, aliado a dotações orçamentárias adequadas para o futuro, permitiria a continuidade da instituição, com suas atividades de ensino e pesquisa, a realização de exposições públicas, com os serviços vinculados de museologia, divulgação científica e de assistência ao ensino.

As chamas que devoraram o Museu Nacional enviaram uma mensagem de alerta para a sociedade brasileira. Para salvar o patrimônio histórico, cultural e científico do país são necessárias medidas concretas e o estabelecimento efetivo de políticas públicas, como aquelas propostas no Livro Azul da IV Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação. É fundamental que sejam tomadas ações adequadas e urgentes para salvar a ciência, a tecnologia e a inovação no País. Urge impedir que essas chamas se alastrem e consumam o futuro do Brasil.

Academia Brasileira de Ciências (ABC)

Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)

Assoc. Nac. de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (ANPUR)

Associação Brasileira de Centros e Museus de Ciência (ABCMC)

Associação Brasileira de Ciência Ecológica e Conservação (ABECO)

Associação Brasileira de Estatística (ABE)

Associação Brasileira de Linguística (ABRALIN)

Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE)

Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO)

Associação Brasileira de Química (ABQ)

Associação Nacional de Pós Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED)

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação (Compós)

Sociedade Astronômica Brasileira (SAB)

Sociedade Botânica do Brasil (SBB)

Sociedade Brasileira de Biofísica (SBBf)

Sociedade Brasileira de Bioquímica e Biologia Molecular (SBBq)

Sociedade Brasileira de Ciência do Solo (SBCS)

Sociedade Brasileira de Computação (SBC)

Sociedade Brasileira de Economia Ecológica (ECOECO)

Sociedade Brasileira de Eletromagnetismo (SBMag)

Sociedade Brasileira de Entomologia (SBE)

Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos (SBEC)

Sociedade Brasileira de Etnobiologia e Etnoecologia (SBEE)

Sociedade Brasileira de Farmacognosia (SBFgnosia)

Sociedade Brasileira de Física (SBF)

Sociedade Brasileira de Genética (SBG)

Sociedade Brasileira de Geologia (SBG)

Sociedade Brasileira de História da Ciência (SBHC)

Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE)

Sociedade Brasileira de Ictiologia (SBI)

Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI)

Sociedade Brasileira de Melhoramento de Plantas (SBMP)

Sociedade Brasileira de Metrologia (SBM)

Sociedade Brasileira de Microbiologia (SBM)

Sociedade Brasileira de Microeletrônica (SBMICRO)

Sociedade Brasileira de Microondas e Optoeletrônica (SBMO)

Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia (SBOT)

Sociedade Brasileira de Química (SBQ)

Sociedade Brasileira de Recursos Genéticos (SBRG)

Sociedade Brasileira de Telecomunicações (SBrT)

Sociedade Brasileira de Toxinologia (SBTx)

Soc. Bras. dos Especialistas em Resíduos das Produções Agropecuária e Agroindustrial (SBERA)

Sociedade Cientifica de Estudos da Arte (CESA)

Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB)

Incêndio no Museu Nacional pode ter colocado fim às pesquisas na Antártida

Um das mais importantes e exclusivas pesquisas desenvolvidas no Museu Nacional/UFRJ — e que pode estar completamente perdida — é sobre a pré-história da Antártida. Há dez anos, um grupo de paleontólogos da instituição fazia visitas p.eriódicas ao continente gelado em busca de fósseis. E as incursões foram bem sucedidas. Entre as peças mais importantes achadas estava um fragmento de fóssil de pleisiossauro, um monstro marinho que viveu há 80 milhões de anos, além de troncos de árvores pré-históricas.

“Uma parte da última coleta que fizemos na Antártida, no ano passado, estava no laboratório de preparação de fósseis, que fica no prédio anexo e não foi atingido”, contou a paleontóloga Juliana Sayão, que coordenou as últimas três expedições à Antártida e passou a madrugada de segunda-feira praticamente em claro, vendo o museu arder em chamas. “Mas fora isso, tudo indica que perdemos boa parte do material, dez anos de pesquisa. Não tenho palavras.”

A pesquisa de fósseis pré-históricos na Antártida é especialmente complexa por conta das condições climáticas. “Só para chegar na Antártida já é uma dificuldade enorme, poucos grupos no mundo inteiro escavam lá, que é uma área muito rica em fósseis”, explicou a pesquisadora. “O material que nosso grupo coletou lá durante esses anos serviria de base não apenas para as nossas pesquisas, mas também de outros países sobre como era a Antártida no passado.”

Na primeira parte do projeto Paleoantar, a equipe do paleontólogo Alexander Kellner, atual diretor do museu, passou 37 dias acampada na ilha de James Ross. Embora a ilha fique na Península Antártida, ela é bem distante da ilha Rei George, onde ficava a Estação Brasileira que pegou fogo em 2014. Por isso, a logística da expedição era ainda mais complexa, uma vez que os pesquisadores tinham que ficar acampados.

Ainda assim, o grupo conseguiu escavar nada menos que uma tonelada e meia de troncos de árvores pré-históricas – um deles com mais de quatro metros de comprimento, que estava em exibição no Museu Nacional. Numa das últimas incursões ao continente, o grupo levou mais de sete toneladas de equipamentos e mantimentos para ficar acampado durante 45 dias.

As pesquisas brasileiras na Antártida foram cruciais para revelar que, sob a camada de, em média, três quilômetros de gelo que recobre o continente, estão preservadas as provas fósseis de que, no passado, a região já abrigou uma floresta tropical frondosa e animais gigantescos.

“Por conta das pesquisas, a gente sabe que a Antártida não era coberta de gelo como é hoje, pelo contrário, era uma vasta floresta tropical”, explicou Juliana. “E era banhada por um mar de extrema riqueza de animais.” Além disso, segundo a pesquisadora, os estudos ajudaram a estabelecer em que a Antártida se separou da América do Sul e a entender as mudanças climáticas em curso hoje no planeta.

Durante boa parte do Cretáceo (144 a 65 milhões de anos atrás), e até há 50 milhões de anos, um clima bem ameno predominou na Antártida e favoreceu o crescimento de grandes árvores, com folhas de até 10 centímetros, e portanto, de animais, entre eles dinossauros e répteis igualmente grandes, e, posteriormente, mamíferos marsupiais. Atualmente, a média de temperatura registrada no verão é de 35 graus Celsius negativos no continente e 0 grau Celsius na península, o que torna a região praticamente inabitável.

No passado, no entanto, não era assim. A Antártida era unida aos demais continentes, na chamada Gondwana, e, por isso, seu clima era temperado. A separação só se configurou há 32 milhões de anos, quando a corrente fria que se dispersava pelo Oceano Pacífico passou a circundar a Antártida, isolando-a e resfriando-a.

No entanto, durante boa parte de sua existência, o continente era verde e cheio de espécies animais. As últimas árvores só desapareceram há 4,5 milhões de anos. O continente era habitado por dinossauros e outros animais gigantescos. No mar, viviam verdadeiros monstros marinhos, como ictiossauros, plesiossauros e mosassauros.

Os plesiossauros eram répteis gigantes e carnívoros de pescoço longo chegavam a ter, em média, 5 metros de comprimento. O mais antigo fóssil de plesiossauro já achado na Antártida foi descoberto pelo grupo de Kellner; tem 80 milhões de anos.

“Perdemos não apenas o material fóssil em si, mas o conhecimento de uma região sobre a qual ainda se sabe muito pouco.”

Incêndio no Museu Nacional expõe descaso dos Governos com a ciência

“Morreu, aos 200 anos de idade, o Museu Nacional do Rio de Janeiro. Com ele, uma parte importante da ciência e da memória do Brasil.”

Este epitáfio é de autoria do presidente da ABC, Luiz Davidovich, sobre a terrível tragédia que foi o incêndio do Museu Nacional, ocorrido na noite de 2 de setembro. “Uma tragédia para a ciência brasileira e para a ciência mundial. São 200 anos de conhecimento, de memória, de registros importantes que são perdidos nesse desastre, que reflete o descaso das autoridades com o conhecimento, com a ciência, com a história, com a memória do país. Foi mais um duro golpe para a sofrida ciência brasileira nesses últimos anos, vítima de sucessivos cortes orçamentários. Que esse seja um momento de reflexão sobre a importância do patrimônio histórico do nosso país”, destacou.

Davidovich ressalta que os cortes sucessivos que sofreu o Museu Nacional levaram ao que pode até ser considerada uma tragédia anunciada, em vista dos dados do gráfico abaixo.

Foto: Felipe Milanez/Wikipedia

De acordo com material enviado à ABC pelo Acadêmico Renato Cordeiro, de autoria do pesquisador do Departamento de Vertebrados do Museu Nacional da UFRJ, Paulo Buckup, “os prédios dos Departamentos de Vertebrados, Departamento de Botânica, Biblioteca Principal, Pavilhão de Salas de Aulas, Laboratório de Arqueologia na Casa de Pedra, Anexo Alipio de Miranda Ribeiro, e anexo da coleção do Serviço de Assistência ao Ensino não foram atingidos. A sobrevivência do Anexo Alípio de Miranda Ribeiro é importante, pois continha algumas coleções de invertebrados e dipterologia.

O prédio principal – Palácio da Quinta da Boa Vista – teve perda total, com a possível exceção da coleção de material tipo de moluscos que pude ajudar a salvar graças a um técnico da Coleção que nos guiou em meio à escuridão. Os funcionários que participaram do mutirão dos últimos momentos estão de parabéns pela coragem e dedicação, embora muito pouco tenhamos conseguido fazer.

As grandes perdas foram os materiais da exposição e as coleções situadas no prédio principal: arquivo e acervo histórico, maior parte das coleções entomológicas, antropológicas, coleções de aracnologia e crustáceos. O acervo de paleontologia e mineralogia talvez possa ser parcialmente resgatado, se for feito um trabalho cuidados após o rescaldo. Das coleções de vertebrados, perderam-se os exemplares das exposições antigas que seriam incorporados na nova exposição, mas a maior parte do acervo científico está preservada. Por enquanto é isto. Vou tomar um banho para lavar a fuligem e restos de carvão e este cheiro miserável de incêndio e destruição.”

Mas a esperança sobrevive. Um grupo de estudantes de museologia da UniRio está divulgando amplamente nas redes sociais uma campanha para que quem tenha fotos do Museu envie-as para que seja organizado um acervo de memórias pessoais, tornando-as coletivas. Vamos colaborar.

O especialista em tecnologia Ronaldo Lemos também se manifestou e criou, em forma de abaixo-assinado, uma carta em defesa do Museu Nacional: pela ciência, tecnologia, educação e cultura no Brasil. Para apoiar a iniciativa, clique aqui.

A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) no Brasil publicou em seu site uma nota lamentando “a perda incalculável para a cultura, a ciência e a história natural” resultante do incêndio que atingiu o Museu Nacional.

O presidente da ABC aponta para que as forças da nação se dirijam para a reconstrução do Museu Nacional. “Começar de novo. Vamos começar hoje, 2ª feira, 3 de setembro, a reconstrução do Museu Nacional. Porque um país sem memória vai ter dificuldade de construir seu futuro.”

Em depoimento para a ABC, o historiador e Acadêmico José Murilo de Carvalho declarou: “O ano de 2018 já tem sua marca. Não serão as eleições presidenciais, seja qual for seu resultado. Será o crime de lesa-pátria, cometido ao longo de anos por sucessivos governos, o crime de desinteresse e negligência em relação ao Museu Nacional que levou a sua extinção pelo fogo. Pela importância arquitetônica do prédio, pela riqueza fabulosa do acervo que registrava nosso percurso desde a pré-história, pelo que representou como uma de nossas mais importantes instituições de pesquisa, a morte do Museu é também a morte de parte de nossa história e de nossa cultura. Qual pode ser o destino de uma nação que comete tais crimes?”

Foto Felipe Milanez para Wikipedia
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