No dia 23 de maio de 2025, data em que completaria 78 anos, a Academia Brasileira de Ciências (ABC) e o Laboratório de Avaliação e Síntese de Substâncias Bioativas (Lassbio) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) realizaram um seminário em homenagem ao professor Eliezer Jesus de Lacerda Barreiro (1947–2024), figura central da química medicinal brasileira. O evento reuniu colegas, ex-alunos e admiradores para relembrar sua trajetória e refletir sobre o futuro da pesquisa de fármacos no Brasil.
A mesa de abertura contou com o Acadêmico Vitor Francisco Ferreira, presidente da comissão organizadora; Débora Foguel, diretora da ABC; e Fernando de Carvalho da Silva, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Química (SBQ). O encontro — repleto de emoção, depoimentos e memória — celebrou um legado múltiplo: o cientista, o educador, o militante da ciência nacional.

Do diretório acadêmico à luta pela ciência nacional
Eliezer Barreiro iniciou sua trajetória na UFRJ nos anos 1960, em meio à efervescência política e cultural. Presidiu o diretório acadêmico e participou ativamente da Passeata dos Cem Mil. Segundo relato exibido no documentário sobre sua vida, “ele era o primeiro em tudo: o primeiro a entrar na Faculdade de Farmácia, o primeiro a ir ao exterior fazer doutorado, o primeiro a liderar.” Esse impulso pioneiro o acompanhou durante toda a carreira.
Após o doutorado em Química Médica na Universidade Joseph Fourier, na França, Eliezer atuou por quatro anos na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), onde ajudou a estruturar o programa de pós-graduação em química e orientou sua primeira dissertação. O professor Romeu Cardoso Rocha Filho, ex-presidente da SBQ, destacou: “Ele nos ajudou a aprovar um projeto com a Finep que viabilizou nosso parque de equipamentos e lançou as bases da pós-graduação da UFSCar.”
Liderança na SBQ e construção de redes científicas
Eliezer foi eleito presidente da SBQ em 2000, após décadas de participação ativa na entidade, passando por diversos conselhos diretivos desde os anos 1980. Fernando de Carvalho lembrou de sua paixão pela SBQ e de sua liderança inclusiva: “Mesmo depois de deixar os cargos, Eliezer permaneceu colaborando com a sociedade por mais de uma década, recusando indicações para permitir a renovação.” Foi também cofundador da Revista Virtual de Química e autor de mais de 50 artigos na Química Nova.
Com uma visão estratégica para a ciência em rede, Eliezer liderou dois grandes projetos colaborativos: o Instituto do Milênio (2001) e o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Fármacos e Medicamentos (INCT Inofar), a partir de 2009. Este último reuniu mais de 100 pesquisadores de 34 grupos distribuídos pelo país. Segundo a presidente da ABC, Profa. Helena Nader, “ele trouxe uma visão integradora à química medicinal, com um compromisso inabalável com a ciência e a ética.”
Lassbio, ensino e fármacos que falem português
De volta ao Rio de Janeiro, Eliezer fundou, em 1994, o LASSBio, laboratório referência em química medicinal no Brasil. Nele, foram desenvolvidas mais de 2.000 substâncias bioativas, com dezenas de patentes nacionais e internacionais. Sua obsessão por medicamentos “que falem português” era expressão de sua defesa pela soberania científica e pelo acesso da população aos frutos da ciência brasileira.
Esse pensamento ecoa em sua frase emblemática: “Se a saúde é um direito de todos, é preciso desenvolver medicamentos aqui, com identidade nacional.” A Profa. Débora Foguel lembrou: “Ele sempre dizia que o Brasil precisava de moléculas verde-amarelas, que fossem acessíveis e traduzissem nosso compromisso com o bem-estar da população.”
Escolas de Verão e a paixão pela formação
Um dos marcos mais duradouros da atuação de Eliezer foi a criação da Escola de Verão em Química Farmacêutica e Medicinal, iniciada em 1994. O evento anual reunia jovens de todas as regiões do Brasil com grandes nomes da ciência internacional. O Prof. Paulo Roberto R. Costa destacou: “A escola está na 31ª edição e virou um ponto de encontro entre gerações, com palestrantes de altíssimo nível.” Desde 2020, o evento leva o nome de seu criador.
O professor Cláudio Viegas Júnior (Unifal) lembrou do impacto transformador da escola: “Ele colocava lado a lado alunos iniciantes e pesquisadores renomados, misturando todo mundo num caldo produtivo.” Eliezer acreditava na educação como motor da ciência e sentia orgulho dos seus alunos. Para ele, formar recursos humanos era garantir “que a roda continuasse girando.”

Um educador e um exemplo de humanidade
Diversos depoimentos ressaltaram o lado humano de Eliezer. Alcione Carvalho, representando os egressos do Lassbio, contou que ele frequentemente ajudava estudantes com recursos próprios, sem alarde. Sua frase “tudo o que merece ser feito, merece ser bem-feito” era quase um mantra, assim como “a sorte só ajuda quem trabalha.”
A Acadêmica Vanderlan da Silva Bolzani, da Unesp/Araraquara, recordou os tempos em que era a única mulher em um grupo de pesquisa liderado por Eliezer e Ângelo da Cunha Pinto: “Ele me dizia: ‘Baixinha, não desista’. Aquela convivência me formou como cientista.” Já o Prof. Antônio Carlos Carreira Freitas (UFF) lembrou o apoio durante seu doutorado: “Ele não era só meu orientador, virou meu amigo. Trocávamos ideias, experiências, e ele me abriu caminhos inclusive no exterior.”
Divulgação científica e diálogo com a sociedade
O documentário exibido durante o simpósio foi composto basicamente por imagens de arquivo, fruto do intenso investimento de Eliezer em divulgação científica. Segundo a roteirista Lucia Beatriz Torres, “sem esse trabalho prévio dele com vídeos, blogs e entrevistas, esse filme não teria sido possível.” Eliezer via a ciência como um bem público, que precisava ser compartilhado com escolas e comunidades.
Como ele próprio dizia, “desenvolver atividades de popularização da ciência é garantir que a sociedade compreenda seu direito à saúde e o papel da ciência nisso.” Ações educativas sobre o uso de medicamentos em escolas e comunidades do Rio de Janeiro marcaram sua atuação até os últimos anos de vida.
Universidade e empresa: uma parceria estratégica
Pioneiro na interação entre universidade e indústria, Eliezer firmou convênios com empresas como Eurofarma e Cristália. Para ele, não havia inovação sem uma base forte em ciência acadêmica. “Colocar a substância na prateleira exige essa trilogia: universidade, empresa e governo”, dizia.
Martha Penna, diretora de inovação da Eurofarma, afirmou: “O Lassbio oferecia ciência de excelência e formação intelectual sólida. Não há indústria inovadora sem apoio na universidade.” Essa ponte que ele construiu permanece como modelo para outros centros de pesquisa.
O cientista, o cidadão, o legado
A homenagem contou com mais de 40 depoimentos, presenciais e em vídeo, de colegas, colaboradores, amigos, dos mais variados pontos do Brasil e de diversos países do mundo, podendo ser assistida na íntegra aqui. Todos enfatizaram a generosidade, a determinação e a inspiração de Eliezer.
Seu filho, Matheus Barreiro, falou sobre o lado pessoal do pai: “Ele era polarizador, mas nos últimos anos se tornou mais sensível, mais amoroso, e buscou corrigir erros. Esse é o Eliezer que escolho lembrar.” Lidia Moreira Lima, esposa e colega de trabalho, falou sobre sua determinação: “Parou de fumar, enfrentou o alcoolismo com coragem e continuou trabalhando com entusiasmo, mesmo durante a doença.”
De acordo com ela, “Eliezer era um brasileiro singular, que tinha orgulho de ser carioca, botafoguense, de seu espírito revolucionário e de seu senso crítico apurado. Um amante da vida, um visionário, esteve sempre a frente de seu tempo. Quando olho pra trás, a certeza que tenho é que viveria tudo de novo ao seu lado.”
Um cientista que vive na memória da ciência brasileira
Com mais de 300 publicações, dezenas de patentes, inclusive no exterior, livros e centenas de orientações, Eliezer Barreiro deixa um legado material e imaterial. Foi membro da ABC, professor emérito da UFRJ, Comendador e Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico e Doutor Honoris Causa pela Univasf. Mas acima de tudo, foi um cientista apaixonado pelo Brasil, pela formação de pessoas e pelo poder transformador da ciência.
Como ele dizia: “Minha contribuição já foi dada. Deixo isso agora para as gerações futuras, que devem buscar suas próprias fronteiras.”