Leia artigo do Acadêmico Rodrigo Toniol, professor de antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), para a Folha de S. Paulo, publicado em 12 de fevereiro:
Na semana passada, a psicanalista Maria Rita Kehl foi alvo de um linchamento virtual, após críticas ao que chamou de “movimento identitário”. A reação à fala dela incluiu um argumento que lembra os piores crimes da humanidade: a ideia de que ela deveria se calar por conta de uma “herança moral” transmitida geneticamente.
Os acusadores se referiam ao fato de o avô de Kehl ter sido um eugenista no início do século 20, sugerindo, portanto, que ela teria herdado, pelos genes, a “paleta moral” dele.
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A crítica feita pela psicanalista que motivou o ataque virtual foi que o movimento identitarista é um “nicho narcísico”. Segundo ela, na dinâmica deste movimento, apenas quem pertence ao grupo pode falar sobre ele. Eles têm o “lugar de fala”. Para todos os outros, resta apenas o “lugar de cale-se”, conforme Kehl propôs.
Maria Rita Kehl é uma das maiores psicanalistas do Brasil e atuou junto ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra por décadas. Convidada por Dilma Rousseff, compôs a Comissão Nacional da Verdade, que apurou os crimes contra os direitos humanos durante a ditadura. Na semana passada, porém, sua biografia foi reduzida à “neta do pai da eugenia brasileira”.
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Na mitologia grega, a qual Kehl fez referência, Narciso era um jovem muito belo que fora amaldiçoado pela deusa Nêmesis. Seu castigo foi que nunca se apaixonasse por ninguém além de seu próprio reflexo e sempre desprezasse os outros por não serem tão belos quanto ele.
Esse é o paradoxo do identitarismo, embora tenha surgido como um movimento para tratar da diferença, ele mesmo não consegue lidar com o diferente. Tal e qual Narciso.
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Narciso, apaixonado por si mesmo, se afogou ao ver seu reflexo nas águas e tentar agarrá-lo. [A ninfa] Eco terminou a vida isolada em uma caverna, sem nunca poder conversar com ninguém.
Assim como Maria Rita Kehl, temo pelo risco que o campo progressista democrático corre ao ser capturado por movimentos que nos levarão para o fundo do rio ou para as profundezas da solidão em uma caverna.