No dia 16 de dezembro, o Supremo Tribunal Federal (STF) realizou uma audiência de conciliação com representantes de sociedades científicas, entre elas a Academia Brasileira de Ciências (ABC), para debater a tese do Marco Temporal para a demarcação de terras indígenas. De acordo com essa interpretação, os povos indígenas brasileiros só teriam direito às terras que ocupavam na data da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988, ignorando processos históricos de exclusão e expulsão infligidos a esses povos pré-1988.

Em setembro de 2023, o STF declarou, por maioria, a inconstitucionalidade da tese. Mesmo assim, em outubro daquele ano, foi aprovada uma lei sobre a demarcação de terras indígenas, a Lei nº 14.701, com a adoção do Marco Temporal. Os artigos que introduzem o marco chegaram a ser vetados pelo presidente da República, mas os vetos foram derrubados e a lei entrou em vigor. Após a aprovação, alguns senadores foram além e tentaram emplacar uma Proposta de Emenda à Constituição, a PEC 48/2023, para incluir o marco temporal ao artigo 231 da própria Carta Magna, uma cláusula pétrea que reconhece os direitos originários dos povos indígenas às terras e estabelece a demarcação como um dever do Estado.

Desde então, partidos e organizações apoiadoras da causa indígenas apresentaram quatro ações diretas de inconstitucionalidade no STF – ADIs 7582, 7583, 7586 e ADO 86 – contra a Lei 14.701/2023. Em meio a todo esse imbróglio, o ministro Gilmar Mendes determinou as audiências de conciliação com representantes de todas as partes envolvidas. A audiência em questão faz parte dessas discussões.

Três membros titulares da ABC participaram da reunião. Os antropólogos Maria Manuela Ligeti Carneiro e Ruben George Oliven, ambos ex-presidentes da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e, este último, vice-presidente da ABC para a região Sul; e a ecóloga Mercedes Maria da Cunha Bustamante.

Os participantes da audiência. Da esquerda para a direita: Paulo José Brando Santilli (Unesp); Bruna Franchetto (UFRJ); Ruben Oliven (ABC); Andréa Luisa Laschefski (ABA); Mercedes Bustamante (ABC); Fernanda Sobral (SBPC); Manuela Carneiro (ABC) e Maria Janete Albuquerque (Funai)

Em defesa dos antropólogos brasileiros

Em suas falas, Ruben Oliven e Maria Manuela Carneiro defenderam o papel dos antropólogos no assessoramento científico ao judiciário em questões indígenas. Esse movimento é importante pois parte da estratégia de setores favoráveis ao Marco Temporal tem sido tentar descredibilizar esses cientistas, sob o argumento de que o convívio com os indígenas nos trabalhos de campo tira a imparcialidade necessária para cumprir o papel.

“A antropologia moderna, nascida no final do século 19 na Alemanha, se baseia no contato direto. A novidade trazida por essas primeiras gerações foi justamente o trabalho de campo, já que anteriormente os antropólogos trabalhavam a partir de relatos de viajantes não especializados. Foi a Escola de Göttingen que colocou a pesquisa de campo como método”, explicou a Acadêmica Manuela Carneiro. “O Marco Temporal se tornou uma queda de braço e um pretexto para que o Congresso atual desafie o STF. O ataque aos antropólogos foi incorporado à própria Lei 14.701. A situação toda é péssima”, resumiu.

Ruben Oliven lembrou que durante sua gestão na ABA foi assinado um convênio com a Procuradoria-Geral da União estipulando que, sempre que o órgão precisasse de laudos técnicos, a ABA indicaria os especialistas. “Os laudos são elaborados com base em critérios estritamente científicos e já tivemos diversos marcos importantes que atestam isso. Nos anos 2000, a Carta de Ponta das Canas trouxe recomendações e parâmetros para balizar a elaboração de laudos. Em 2015, o Protocolo de Brasília da ABA aprofundou ainda mais as orientações para o trabalho do antropólogo em perícias. Tudo isso para que possamos fornecer laudos técnicos que permitam ao Judiciário tomar decisões com base em evidências”, explicou Oliven.

“O que está acontecendo agora – e isso apareceu na fala do senador autor da PEC 48/2023 – é que os ruralistas estão questionando a isenção dos antropólogos por terem trabalhado junto aos indígenas. Isso é uma grande bobagem, é como questionar a capacidade de um médico para tratar de uma doença pelo fato de ele ter estudado a vida inteira sobre ela”, argumentou o Acadêmico.

Maria Manuela Carneiro e Ruben Oliven

Territórios indígenas são os que mais preservam a Amazônia

Em sua fala, a ecóloga Mercedes Bustamante lembrou da estreita relação entre os territórios indígenas e a conservação, chamando atenção para a crescente literatura científica, nacional e internacional, que atesta a significativa diminuição do desmatamento dentro das regiões legalmente reconhecidas. Segundo a pesquisadora, portanto, a demarcação de terras indígenas é uma forma eficiente, barata e justa de o país avançar em direção ao cumprimento de suas metas ambientais e climáticas.

“Entre 2001 e 2021, áreas da Amazônia administradas por povos indígenas removeram um total líquido de 340 milhões de toneladas métricas de CO2 da atmosfera – equivalente às emissões anuais de combustíveis fósseis do Reino Unido. Esses territórios também mostraram um crescimento 23% maior na restauração do que terras adjacentes. Outro estudo inovador mostrou que 80% das lavouras e pastagens no Brasil dependem das chuvas geradas pelas florestas mantidas de pé nas terras indígenas da Amazônia”, exemplificou a Acadêmica.

Bustamante lembrou também da conexão fundamental entre a preservação do território e da cultura desses povos, cujos conhecimentos guardam aplicações preciosas da biodiversidade.

“Um trabalho recente mapeou os usos de plantas medicinais e as línguas indígenas em três regiões: América do Norte, noroeste da Amazônia e Nova Guiné. O estudo encontrou cerca de 12 mil usos medicinais para mais de 3 mil plantas, conhecidos por pessoas que falam 230 idiomas indígenas nessas regiões. Porém, mais de 75% desse conhecimento está em apenas um desses idiomas. Ou seja, a maior parte desse conhecimento é única. Idiomas indígenas e seus territórios são inseparáveis e, por esse motivo, é importante que o aprendizado e a transmissão ocorram no território, na comunidade de origem”, defendeu a pesquisadora.

Próximos passos

Originalmente previstas para terminar em dezembro, as audiências de conciliação no STF foram prorrogadas até fevereiro. Considerada a mais importante representação indígena do país, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) se retirou da mesa de negociações em agosto, alegando não haver conciliação possível que colocasse em cheque direitos estabelecidos pela Constituição. Em resposta, o Ministério dos Povos Indígenas indicou outros representantes para ocupar o lugar, o que não foi bem recebido pela Apib. A expectativa é de que as discussões sirvam de base para que o STF tome uma decisão final sobre o tema em 2025.