No dia 9 de maio, a Academia Brasileira de Ciências (ABC) recebeu, na Sessão Plenária V da Reunião Magna 2024, no Museu do Amanhã, a engenheira agrícola Gleyce Figueiredo, o cientista da computação Gilberto Câmara e o físico Silvio Crestana para um debate sobre aplicações de inteligência artificial e outras tecnologias na agricultura brasileira.

IA aplicada ao monitoramento de sistemas agrários integrados

A agricultura moderna enfrenta um duplo desafio no século 21. É preciso aumentar a produção de alimentos e, ao mesmo tempo, minimizar os impactos ambientais em meio à crise climática. Nesse cenário, a professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisadora em gestão agrícola Gleyce Figueiredo defende que sistemas integrados entre plantio, pecuária e floresta são fundamentais. “A integração diminui a pressão por novas áreas, melhora a ciclagem de nutrientes no solo e recupera áreas degradadas”, resumiu.

No Brasil são cerca de 17 milhões de hectares de áreas integradas, 83% apenas entre lavoura e pecuária. Desde 2010 o país tem o Plano Agricultura de Baixo Carbono (Plano ABC) que prevê um acréscimo de 9 milhões de hectares de sistemas integrados até 2030. Cumprir essa meta requer monitoramento contínuo para identificar se a ciclagem das áreas está sendo cumprida. É aí que entra o trabalho da palestrante com sensoriamento por satélite. “Sensores em satélites estão evoluindo muito, tanto públicos quanto privados. Não é qualquer satélite que serve para isso, precisamos de uma boa resolução visual para identificar a integração e também uma boa resolução temporal. A pergunta é: quanto tempo vai demorar pro sensor passar novamente por aquela área?”

Outro problema para o monitoramento é a cobertura de nuvens. Para resolver isso, existem alguns satélites que contam também com a prospecção por radar, que permite perpassar essa barreira. A situação comum em que os pesquisadores se encontram é a coleta de dados por vários equipamentos diferentes, cada qual com suas forças e fraquezas. Para condensar tudo isso e analisar um volume cada vez maior de dados, sistemas de inteligência artificial já começaram a ser usados.

“Alguns trabalhos usam dados com alta resolução espacial mas baixa temporal, e vice-versa. Outros perceberam que era possível juntar isso com mapas já prontos, como os do MapBiomas. Em 2022, eu e meu grupo aplicamos algoritimos de deep learning para fundir imagens de sensores diferentes extraindo o melhor de cada em imagem, tempo e espectro. O mais difícil é fazer o sistema compreender a dinâmica temporal do campo”, explicou Figueiredo.

Para o futuro, a palestrante avalia que será importante também juntar dados coletados em terra, fortalecendo a metodologia com as características físicas de cada bioma para poder expandir cada vez mais o monitoramento. “Para expandir é preciso entender se o modelo é transferível. Será que o que eu faço pro Mato Grosso é aplicável para São Paulo, por exemplo? São perguntas que precisamos nos fazer”, concluiu.

A tradição brasileira em monitoramento por satélite

Gilberto Câmara é cientista da computação especializado em geoinformática, reconhecido internacionalmente pela defesa de sistemas gratuitos de acesso a dados geoespaciais e por promover um monitoramento muito eficiente da Amazônia quando foi diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), entre 2005 e 2012. Ele destacou que o Brasil precisa se orgulhar de ser referência no uso de dados via satélite. “O satélite enxerga onde e quando teve desmatamento, e, aliado aos dados do cadastro rural de propriedades, quem desmatou. Até o Papa já usou os dados do Inpe”, brincou.

Os dados brasileiros são utilizados, por exemplo, pela Convenção de Clima da ONU para definir o financiamento de países que atuam para reduzir o desmatamento pelos programas REDD e REDD+. O Brasil também possui uma legislação bastante avançada na área. O Decreto 6666 de 2008 obriga a disseminação e o compartilhamento de dados espaciais. “Ter uma lei que deixe isso explícito é crucial, vários países não tem”, avaliou o palestrante.

A importância dessa obrigação se dá porque dados geoespaciais podem revelar muita coisa, inclusive fracassos que governos queiram esconder. Em outras palavras, geomonitoramento aberto é política de Estado e não de governo. Câmara conta que em 2004, quando tomou a decisão de abrir os dados do Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (PRODES), enfrentou resistências dentro do governo. Hoje, o sistema é um dos mais transparentes e consolidados no monitoramento ambiental brasileiro.

Mas os dados de satélite não substituem a análise dos pesquisadores e o Brasil tem bastante expertise na área. “Sempre trago o exemplo de um mapa da cobertura vegetal global elaborado em 2020 pela Agência Espacial Europeia. O mapa não diferenciava entre áreas de pastagens e o cerrado brasileiro, classificando tudo como ‘grassland’. Esse é um exemplo forte de que não há modelo que capture as especificidades de cada lugar. Ninguém vai resolver nosso problema por nós”, alertou Câmara.

Para o futuro, o palestrante defende plataformas cada vez mais abertas para governos, empresas, academia e o terceiro setor. Atualmente, está em desenvolvimento o Brazil Data Cube, que promete cumprir essa função, fornecendo dados integrados e prontos para análise de forma aberta. “Além da consolidação dos softwares, é preciso uma consolidação institucional. É diferente de criar um software específico para uma análise e para publicar um artigo. Éeum sistema colaborativo que permita a usuários diferentes adicionarem seus próprios algoritmos e contribuições”, finalizou.

Não há crescimento em agropecuária sem ciência

A agropecuária é responsável por mais de 20% do PIB brasileiro, garantindo um saldo positivo na balança comercial do país. O setor cresceu muito nas últimas décadas, refletindo investimentos públicos robustos em pesquisa que fizeram do país um líder científico no setor. “A contradição é que, enquanto os valores do agro e do PIB crescem, os investimentos em ciência diminuem ano após ano”, apontou Silvio Crestana, pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).

O palestrante alertou que a tendência contínua de crescimento no agro, constante por 30 anos, estagnou em 2016. Desde então, flutuações nas safras tem afetado a produtividade no campo e isso se reflete no preço da cesta básica. Em parte, essa estagnação se deve aos novos desafios climáticos, fator novo na equação, e enfrentá-los vai demandar inovações que só podem ser desenvolvidas com ciência. “Quando falamos em estresses térmicos não falamos apenas de temperatura, mas de umidade, de ventos e de radiação. Estresses hídricos e biológicos nós aprendemos a lidar, mas os térmicos ainda sabemos muito pouco o que fazer”, alertou.

A agricultura contemporânea é digital e cada vez mais orientada por dados. A coleta de informações robusta vai desde características biogeofísicas até análises de mercado. Para lidar com um volume crescente de dados, sistemas de inteligência artificial são fundamentais, mas fazê-los chegar nos agricultores não é uma tarefa trivial. “Não se faz mais agricultura apenas pela intuição”, resumiu Crestana.

O palestrante frisa que tecnologia nenhuma vai substituir o agricultor e que, para que essa transferência ocorra, alguns desafios precisam ser superados. Entre eles estão a baixa conectividade do campo, questões de privacidade de dados – fundamental para que muitos agricultores sintam-se seguros em adotar novas ferramentas – e a falta de suporte técnico especializado. Mas talvez o fator mais fundamental seja o preço, tecnologias de ponta ainda tem custos impeditivos, sobretudo para o pequeno e médio proprietário.

Todos esses desafios impõe riscos. Por exemplo, hubs de tecnologia e inovação estão concentrados nas regiões Sul e Sudeste. Quanto mais avançamos na fronteira agrícola, nas regiões Centro-Oeste e Norte, menos tecnológica a agricultura. “A desigualdade no acesso à tecnologia arrisca aumentar o abismo entre agricultores tecnificados e não-tecnificados. Seria fundamental fixar cientistas nessas regiões, isso é difícil e requer políticas públicas robustas. Nós temos dois agros, aquele organizado na forma de empresas e cooperativas, e aquele completamente desorganizado e que não usa as melhores práticas agrícolas”, avaliou Crestana.

Outro perigo é a perda de ocupação numa agricultura cada vez mais automatizada, com muitos agricultores tendo poucos horizontes de requalificação. O impulso pelas IA pode gerar também uma dependência do país em Big Techs estrangeiras, criando problemas de soberania para um dos setores mais importantes da economia brasileira. “Lembrando as palavras do querido professor Sérgio Mascarenhas, ‘só temos um caminho para o progresso: educação, ciência e humanismo’. Sem humanismo teremos tecnologias super-avançadas mas o resultado para nós não será bom”, concluiu.

Assista à sessão plenária a partir dos 33 minutos: