A Academia Brasileira de Ciências (ABC) e a Secretaria Municipal de Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro organizaram, no dia 21 de março, a Conferência de Ciência, Tecnologia e Inovação sobre Cidades, como parte da preparação para a 5ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (5ª CNCTI). “Este evento é uma oportunidade de pensarmos a interação entre a ciência e os problemas das cidades. É sobre como fazer as recomendações da ciência chegarem nos gestores”, afirmou a secretária de C&T do Rio de Janeiro, Tatiana Roque. A parte da tarde do encontro focou nas questões envolvendo mobilidade urbana, segurança pública e saúde.

Mobilidade urbana

Para falar sobre como inovações tecnológicas devem andar lado a lado com políticas sobre mobilidade foram convidados o professor de ciências da computação da Universidade Federal Fluminense (UFF) Luiz Satoru Ochi e a secretária municipal de transportes do Rio de Janeiro, Maína Celidônio. Ambos trouxeram exemplos da integração entre tecnologias de ponta e planejamento de transportes.

Satoru defendeu que os drones são uma alternativa viável para o futuro de diversas atividades, não só em mobilidade, mas também em outras áreas, como o monitoramento de desastres naturais. Eles podem, por exemplo, substituir as câmeras de monitoramento de escoamento, que ficam expostas e são furtadas com facilidade.

Mas o impacto maior da tecnologia é sem dúvida no transporte. O uso de drones para entregas e até mesmo para emergências médicas já é realidade em países ricos, ajudando a desafogar o trânsito. “Drones chegam mais rápido que ambulâncias, podendo levar aparelhos médicos em casos de mal súbito. Também já são muito utilizados para levar órgãos para transplante”, exemplificou.

Por sua vez, Maína Celidônio falou sobre a importância do GPS e das tecnologias de georreferenciamento na integração das linhas e pontos de ônibus da cidade, o que permitiu à prefeitura reativar 160 linhas e 650 pontos que haviam sido abandonados. “Sem nossos programadores jamais conseguiríamos fazer isso”, afirmou.

Segurança Pública

O tema, que é um problema crônico do Rio de Janeiro, foi abordado pelo professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ Michel Misse, autor de diversos livros sobre segurança pública. Ele enfatizou que a introdução de tecnologias na segurança é bem-vinda, mas não pode ser vista como um substituto à presença ativa do policial. Outra preocupação é o viés que certas tecnologias carregam, como a os softwares reconhecimento facial. “É um método que não pode nunca ser usado como prova única, precisa vir acompanhado de testemunhos”.

Outras tecnologias se mostram muito mais efetivas, mas sofrem resistência dentro das próprias corporações. É o caso da câmera corporal. “É um mecanismo fundamental e foi o principal responsável pela queda na letalidade policial em São Paulo. Foi uma experiência absolutamente bem-sucedida e, mesmo assim, estão conseguindo acabar com ela”, avaliou Misse.

O especialista destacou também que operações com alta letalidade em favelas são absolutamente inócuas e que a proibição de produtos com alta demanda, como drogas ou jogos de azar, são o principal motor do crime organizado. Essas visões já estão difundidas entre estudiosos do tema, mas estão longe de chegar na prática. “As polícias e demais forças de segurança estão entre os setores da administração pública que menos dialogam com a ciência”, concluiu.

Gulnar Azevedo (moderadora), Luna Arouca, Luiz Satoru, Maína Celidonio, Eduardo Marques, Michel Misse, Izabel Cristina dos Reis e Ana Maria Caetano (Foto: Ana Beatriz Macedo)

 

Urbanismo e acesso à cidadania em favelas

O professor do Departamento de Ciência Política da USP, Eduardo Leão Marques, diretor do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), enfatizou que as principais soluções em urbanismo não estão associadas à tecnologias de ponta, mas à “tecnologias públicas”, ou seja, instituições e políticas que funcionam.

Uma característica de quase todas as capitais brasileiras são as favelas. Essas comunidades sofrem com a precariedade habitacional, um problema muito heterogêneo que varia de lugar para lugar. Apesar disso, e ao contrário do senso comum, o Brasil é referência internacional em urbanização de favelas, com uma vasta experiência acumulada nas últimas décadas. “O Brasil conseguiu aplicar políticas de urbanização in situ, ou seja, levou infraestrutura para esses lugares deslocando o mínimo de moradores. Também tivemos sucesso na regularização do loteamento, assegurando o direito à propriedade dessas pessoas”.

De acordo com o IBGE, o Brasil tem atualmente 11.400 favelas onde vivem 16 milhões de pessoas. Para garantir cidadania à essa população, os sucessos precisam ser continuados e, para isso, o investimento precisa ser contínuo. “É uma obra que nunca acaba, pois se parar a tendência é regredir. O problema do Brasil é que nossas políticas são muito instáveis e descontinuadas. Eu defendo programas nacionais de capacitação técnica e disseminação de informação e, em alguns casos, combate à quem promove a precariedade”, salientou.

O Complexo de Favelas da Maré, no Rio de Janeiro, oferece alguns exemplos de sucesso no acesso aos serviços públicos. Esses resultados advêm de uma luta histórica da Rede de Desenvolvimento da Maré, que foi formada quando moradores das favelas começaram a acessar o ensino superior e atuar para mudar a realidade local. A cientista política Luna Arouca, coordenadora do Espaço Normal, núcleo de referência sobre drogas da Rede Maré, falou sobre esse trabalho. “Durante a pandemia, o trabalho da Rede Maré promoveu redes de apoio para que os moradores pudessem cumprir com o distanciamento social, isso fez com que o complexo tivesse uma mortalidade 48% menor do que outras favelas do Rio de Janeiro”, relatou. Posteriormente, a rede também promoveu uma campanha de imunização que vacinou 99% da população com a primeira dose, e 80% com a segunda. “Tem inovação, tem ciência e tem conhecimento sendo produzido junto à pessoas que, muitas vezes, não tiveram a oportunidade de fazer um ensino superior. A comunidade científica precisa reconhecer e valorizar isso”, concluiu Arouca.

Epidemias do presente e do futuro

O Brasil enfrenta atualmente uma epidemia de dengue. A bióloga Izabel Cristina dos Reis, especializada em entomologia médica pela Fiocruz, lembrou que doenças vetoriais tendem a crescer conforme os espaços urbanos substituem de forma descontrolada as áreas verdes. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), 80% da população global vive exposta a algum tipo de zoonose vetorial, que causam a morte de 700 mil pessoas todos os anos ao redor do mundo;

A especialista destacou que, desde 2016, o Brasil já enfrentou pelo menos dez grandes epidemias vetoriais, principalmente de dengue, zika e chikungunya. Outro problema é a malária, que afeta principalmente populações vulneráveis e com pouco acesso à informação sobre manejo de vetores. “Minha experiência de campo mostrou que, quando a população entende porque e como controlar os mosquitos, as ações têm efeito”, destacou Izabel.

Na mesma linha, a pesquisadora Ana Maria Caetano de Faria, diretora de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde, lembrou que a pandemia serviu de alerta para as zoonoses emergentes e que, com o atual ritmo de degradação ambiental, a tendência é que o surgimento de epidemias seja algo comum nas próximas décadas.

Para se preparar, o Brasil precisa deixar de ser dependente da importação de insumos e vacinas, gargalos absolutamente trágicos durante a crise sanitária. Para isso, o ministério está investindo no fortalecimento do complexo industrial da saúde e em redes de monitoramento genômico. “O acesso à saúde tem que ser uma prioridade do Estado, do contrário inovações médicas se tornam mais um fator de aumento na desigualdade social”, concluiu Faria.

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