A Academia Brasileira de Ciências lançou em 9 de novembro o documento “Recomendações para o Avanço da Inteligência Artificial no Brasil”. A publicação foi feita por um grupo de trabalho formado por 16 pesquisadores de diversas áreas do conhecimento. O objetivo foi mapear os desafios para o desenvolvimento de Inteligências Artificiais (IA) nacionais e apontar caminhos para seu uso responsável em todos os setores da sociedade onde elas possam ser aplicadas.
O coordenador do grupo foi o Acadêmico Virgilio Almeida, professor emérito de Ciência da Computação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisador do Berkman Klein Center for Internet & Society da Universidade de Harvard. Ele enfatizou que o mundo passa por um novo período de disrupção tecnológica, no qual o Brasil tem somente uma pequena janela de oportunidade para se inserir. “O Brasil não pode ser apenas um consumidor de IA estrangeira. É questão de soberania nacional”, disse.
Fazem parte do GT, junto com Almeida, os cientistas Adalberto Fazzio (USP), Altigran Soares da Silva (UFAM), Anderson da Silva Soares (UFG), André Carlos Ponce de Leon Ferreira de Carvalho (USP), Edmundo Albuquerque de Souza e Silva (UFRJ), Elisa Reis (UFRJ), Fabio Gagliardi Cozman (USP), Helder Nakaya (Hospital Israelita Albert Einstein), José Roberto Boisson de Marca (PUC-Rio), Luís Lamb (UFRGS), Mário Veiga Ferraz Pereira (PSR), Nivio Ziviani (UFMG), Soraia Raupp Musse (PUC-RS), Teresa Bernarda Ludermir (UFPE) e Wagner Meira Júnior (UFMG).
A IA está presente em tecnologias recentes e revolucionárias como o ChatGPT e o DALL-E, que geram, respectivamente, textos e imagens complexas a partir de comandos simples escritos em linguagem comum. Mas a IA também estápr esente em plataformas mais antigas, como aplicativos para geolocalização e seleção de conteúdo em redes sociais. “Já é algo que está em nosso dia a dia e causando alterações profundas. Um exemplo é a nova classe dos trabalhadores de aplicativos e todas as questões sociais oriundas disso”, refletiu Virgilio Almeida.
Para se desenvolver nessa fronteira tecnológica, existem três pontos principais para o país: formação de pessoal qualificado, geração e armazenamento de dados de qualidade e criação de uma infraestrutura computacional adequada. O Brasil atualmente peca no primeiro e terceiro ponto, mas tem uma vantagem comparativa no segundo.
Isso porque o Brasil gera muitos dados, seja através do Sistema Único de Saúde (SUS) para a área da Sáude, através do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) para a Educação, através do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) para monitoramento ambiental dos biomas ou através do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para dados sociais. Os pesquisadores avaliam que o país precisa aprimorar o armazenamento de dados, com a criação de bancos de dados melhores, mais interligados e que sejam de fácil acesso e navegação.
Quanto à formação de recursos humanos qualificados, o país sofre por ser um país em desenvolvimento. O Brasil atualmente perde muitos talentos na área, uma vez que a remuneração na academia não consegue competir com empresas e instituições estrangeiras. Atrair imigrantes qualificados está, inclusive, nas diretrizes sobre IA dos Estados Unidos e de países da União Europeia. “Quando há o salto tecnológico é hora de acompanharmos, senão correremos sempre atrás. É o momento ideal para focarmos investimentos em IA mais do que em tecnologias já estacionárias”, avaliou o Acadêmico José Roberto Boisson, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e conselheiro do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI).
Nesse sentido, os pesquisadores defendem a urgência de uma política de fixação de talentos, através do pagamento de bolsas e salários competitivos internacionalmente. Mas para isso, além do investimento estatal, é preciso criar incentivos para investimentos privados. A alta demanda por serviços mediados por IA torna essa área naturalmente atrativa para o setor privado.
Quanto à criação de uma infraestrutura computacional adequada à pesquisa e desenvolvimento em IA, o documento defende a criação de Centros Multidisciplinares com a capacidade necessária para atender a academia e o setor empresarial. “Poderíamos criar centros de IA próximos às universidades, mas com burocracias próprias, que ofereçam maior liberdade profissional aos pesquisadores”, sugeriu o Acadêmico Adalberto Fazzio, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador da Ilum Escola de Ciência.
“Temos vantagens estratégicas dentro do Brasil”, apontou o professor Altigran Soares da Silva, do Instituto de Computação da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). “Temos um mercado consumidor ávido por tecnologia, uma onda de investimento em startups e de capital de risco interessado em IA. Isso nos permite gerar oportunidades e investir nos nossos institutos de pesquisa. Mas precisamos fazê-lo antes que essa demanda vá procurar o exterior”.
A formação de pessoal qualificado, no entanto, não começa no ensino superior. Esse processo precisa começar já na infância, uma vez que as novas gerações serão adultas num mundo muito mais imerso em IA do que hoje. O uso de IA no ensino básico é controverso e foi tema de muito debate. Sobretudo, é preciso entender que a tecnologia jamais substituirá a interação com o professor em sala de aula, mas pode servir como ferramenta de ensino. Para isso, capacitar os docentes é o primeiro passo.
Em suma, o documento recomenda que o fundamental na formação dos jovens é que eles compreendam problemas inovadores em IA, tenham espírito crítico e consigam desenvolver soluções na fronteira tecnológica voltadas aos desafios nacionais.
Para além de educação e pesquisa, tecnologias de IA estão presentes em diversas outras áreas. Na saúde, já é usada para diagnóstico e tratamento personalizado; no setor energético, na tomada de decisão baseada em previsões climáticas e de demanda; no setor financeiro, para decidir investimentos e aprimorar segurança; no setor de serviços, já é muito utilizada em atendimento a clientes e na otimização de processos. Entretanto, Virgílio Almeida faz um alerta: “Utilizar IA apenas para substituir pessoas não é o que o país precisa. Devemos focar no aprimoramento das capacidades humanas, e não em sua substituição”.
O impacto dessa tecnologia no mundo do trabalho é um dos principais pontos quando se fala nos riscos e questões éticas relacionadas à IA. Além do impacto que a excessiva automação tem nos empregos, cada vez mais surgem questões envolvendo discriminação algorítmica, manipulação de comportamento e violação de privacidade.
A discriminação algorítmica acontece quando as IA reproduzem vieses racistas, de gênero ou de local de nascimento, por exemplo. Essas questões fazem com que o uso de IA para segurança pública ou para acelerar processos na Justiça seja controverso. “Nos Estados Unidos, já tivemos exemplo de IA tomando decisões sobre probabilidade de reincidência de detentos baseadas na cor da pele”, alertou Soraia Raupp Musse, professora de ciências da computação na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).
Os problemas de manipulação de comportamento são mais visíveis nas redes sociais e já trouxeram sérios riscos ao regime democrático no Brasil e no mundo. Os algoritmos das redes sociais tendem a amplificar vozes extremistas e foram muito utilizados na difusão de fake news – poder que se torna ainda maior com o advento de imagens feitas inteiramente por IA. “Todo conhecimento é uma faca de dois gumes. Podemos viver uma nova era de renascimento ou de obscurantismo. Corrigir vícios que não são só da tecnologia, mas da sociedade circundante é fundamental para um avanço democrático genuíno”, analisou a Acadêmica Elisa Reis, professora emérita do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
No tema da violação de privacidade, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), de 2018, foi bastante discutida, com posicionamentos divergentes. A professora Soraia Musse defendeu que a lei é demasiadamente restritiva, o que impõe sérios impedimentos tanto à pesquisa quanto ao uso para segurança e monitoramento. Altigran Soares, por sua vez, defendeu que o acesso aos dados precisa ser bem controlado, enfatizando a questão da privacidade.
É crucial que essas preocupações orientem a criação de princípios, regras e legislações que minimizem riscos sem paralisar o desenvolvimento tecnológico. Para isso, é fundamental que a discussão não seja restrita ao setor acadêmico e empresarial, mas englobe também os trabalhadores, o consumidor final e o mundo político como um todo, pois influencia na vida de cada um de nós.
“Esse debate será intenso na discussão sobre regulamentação de IA que está no Senado. A LGPD é anterior ao boom das IA, portanto precisa ser pensada para abranger também tecnologias que vieram depois. No momento, há pouca interação do governo nessa área, mas o Brasil terá de formular uma posição mais concreta, já que assume a presidência do G20 em 2024. Esperamos que o documento da ABC seja uma contribuição nesse sentido”, concluiu o coordenador do grupo, Virgilio Almeida.
Assista à cerimônia de lançamento: