Leia matéria de Miriam Leitão sobre a Amazônia, com depoimento do Acadêmico Carlos Nobre, publicada no jornal O Globo, em 28 de agosto:0

O cientista Carlos Nobre parece um viajante no tempo, mas seus pés ficam bem fincados na Amazônia, esteja onde estiver. Naquele momento, o carro atravessava pela Via Dutra a distância entre São Paulo e São José dos Campos, no começo de uma noite de agosto. Mas, na nossa conversa, estávamos na floresta. Do passado e do futuro.

— Antes de falar dos próximos 20 anos da Amazônia, vamos fazer um breve olhar para trás e pensar nos últimos 200 anos. Poderia ter sido tudo diferente. José Bonifácio era contra o desmatamento, a favor de incorporar o conhecimento dos povos indígenas, preservar as línguas indígenas e queria que o Brasil fosse o primeiro país a abolir a escravatura. Defendia um modelo de agricultura diferente daquele expansionista que estava destruindo a Mata Atlântica — diz Carlos Nobre.

Um breve lamento sobre o que o Brasil poderia ter sido e que não foi e, em seguida, pulou, ágil, para os próximos anos, pauta que eu havia proposto para a nossa conversa. Para um climatologista, 20 anos não é nada, porque os tempos dilatados, as projeções de décadas, chegam facilmente a meados ou ao fim do século.

Nesse tempo curtíssimo, de duas décadas, o Brasil escolherá seu futuro. E o do mundo. Sim, é grave assim. Temos errado tanto, por tão longos anos, que chegamos aqui, na porta dessa escolha fatal entre vida e morte. Os caminhos se estreitaram. Estamos na encruzilhada.

— Vinte anos é um tempo marcante. Estamos tão próximos do ponto de não retorno que, se a gente não conseguir zerar o desmatamento, a degradação e o fogo a jato, o mais rápido possível, não conseguiremos deter o processo. Temos de dar uma oportunidade para todo o Sul da Amazônia. O que eu falo agora não é previsão ou projeção, como eu fiz em vários artigos científicos. São observações. A estação seca está cinco semanas mais longa se comparada à de 1979. Aumentou uma semana por década. Então a estação seca está agora com quatro ou cinco meses. Se aumentar mais duas semanas, ela chega a seis meses. Aí não tem mais volta. Já é clima de savana tropical. Mas uma savana pobre, e não rica como o nosso cerrado. Vários estudos mostram que entre 30 e 50 anos a floresta pode desaparecer, porque as árvores da Amazônia não evoluíram milhões e milhões de anos para a estação seca longa. As árvores vão morrendo. E isso começa no Sul da Amazônia.

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Há uma relação direta entre o que fala o cientista Carlos Nobre sobre os sinais de mudança climática e o que todas as pessoas da agricultura familiar com quem eu conversei relatam do seu cotidiano. O próprio Edro e sua família, e o casal Joaquim e Helenira. Eles viram a mudança do tempo, sobre a qual o cientista alerta.

— A gente lembra quando mudou para cá, era mata até a beira do rio. Hoje, você olha, não vê mais isso, e tá muito calor — me contou Helenira, na sua varanda espaçosa que nascia na cozinha e era voltada para as áreas de plantio e mata.

— Quando eu vim para cá, do São Felix aqui você não via dois alqueires de abertura. Hoje você não vê dois alqueires de mata, para você ficar na sombra — me disse Edro.

— A região aqui mudou muito, de quando eu mudei pra cá. Eu morava em Xinguara e, quando a gente mudou pra cá, aqui chovia demais. Aqui era semanas e semanas chovendo sem parar e hoje a gente vê ai, né, teve essa mudança no clima. Tá totalmente diferente. Você anda nessas estradas aí, você vê só poeira — disse Maria Helena, uma jovem produtora e integrante de um movimento de agricultoras do sistema agroflorestal.

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Um MIT na Amazônia

Uma encruzilhada tem o caminho alternativo. E é para ele que Carlos Nobre gosta mais de olhar com seus projetos concretos que ligam floresta, economia, ciência. Ele tem muitas ideias e as coloca em prática, com sua mente treinada no Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) e no MIT. Por isso, um dos seus sonhos é fazer um MIT na Amazônia. O estudo ainda preliminar foi lançado na USP em julho.

— É o meu sonho. Demos o nome de AMIT, Instituto de Tecnologia da Amazônia. Mas em italiano podemos falar como se fosse amigo, “amicci” da Amazônia. Estamos buscando apoio, mas a ideia é transformá-lo em realidade nos próximos anos. Não seria universidade, mas cursos de graduação, mestrado e doutorado específicos voltados para a bioeconomia — diz Nobre.

Há outros institutos, organizações e movimentos trabalhando por um futuro sustentável da Amazônia. Todos precisam de reforços porque o crime avançou muito.

— Há duas trajetórias. O desmatamento, a degradação e o fogo continuarem a aumentar. Aí a gente chegaria ao fim dos 20 anos tendo já passado do ponto de não retorno. Outro cenário oposto é o da redução rápida do desmatamento e da degradação. Como 95% de todo o desmatamento é ilegal, é preciso haver uma ação muito efetiva dos governos para acabar com o crime. E crime ambiental, hoje, o satélite vê a árvore cortada. Os satélites avançaram muito, não são aqueles de 20 anos atrás — diz Carlos Nobre.

Vinte anos atrás, acabava o governo Fernando Henrique numa escalada de aumento do desmatamento. Durante seu primeiro mandato, ele enfrentara o recorde histórico de destruição, elevando a reserva legal e aprovando a lei de crimes ambientais. No começo do governo Lula, os criminosos voltaram a testar os limites. Em 2004, o Brasil teve o segundo pior número de desmatamento da história, 27 mil km2. Dali em diante, medidas fortes de combate ao crime reduziram em mais de 80% a taxa de desmatamento, até 2012. Depois a taxa começou a subir nos governos Dilma e Temer e, agora, nos anos Bolsonaro, a alta já foi de 73%. As previsões de 2022 não são boas. Mas, reverter é possível.

— É tão fácil, o satélite vê, você vai e destrói tudo, começa a dar prejuízo tão grande para o crime que os financiadores fogem. Foi o que aconteceu quando a gente derrubou o desmatamento — diz Nobre.

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Carlos Nobre conta que na COP 27, no Egito, o Painel Científico da Amazônia vai lançar um Policy Brief, um estudo propondo o “arco da restauração florestal”.

— Para combater o arco do desmatamento, nós vamos propor um projeto global que precisa de muito apoio internacional para restaurar mais de um milhão de km² na Amazônia, principalmente no sul da Amazônia — diz Nobre.