Confira a entrevista com o vice-presidente da ABC para Região Norte Adalberto Luis Val para a Agência Pública, divulgada no dia 24/8. Na reportagem, Val comenta o impacto das ações humanas — incluindo desmatamento, poluição e construção de hidrelétricas — na Amazônia.

“Duzentos quilos de peixe era na hora. Hoje em dia você leva 2 mil metros de rede, e você não arranja pra comer. Tem caboclo que não traz 3 quilos para pagar a gasolina”, desabafa o pescador Antônio Bispo do Rosário, morador da comunidade do Tamatateua — uma das 43 comunidades que constituem a Reserva Extrativista (Resex) Marítima Caeté-Taperaçu, no nordeste paraense.

A pesca é uma atividade central na região, uma Amazônia marítima cuja paisagem de manguezais, igarapés e praias de água salgada não é exatamente a imagem que se tem em mente quando se pensa na floresta. “Fala-se na Amazônia como se fosse só uma floresta de terra firme”, diz Célia Regina Nunes das Neves. Ela é pescadora, marisqueira, líder comunitária e uma importante articuladora nacional na defesa das práticas tradicionais das comunidades pesqueiras. Célia é moradora da comunidade Umarizal, situada na Resex Marinha Mãe Grande de Curuçá — junto à Resex Marítima Caeté-Taperaçu, os dois territórios fazem parte das 12 reservas extrativistas marinhas do Pará, divididas entre a região do Salgado paraense e Caetés.

A explicação para a falta de peixe, segundo os moradores, é a pesca industrial, que impediria a tradicional de ser desenvolvida como antes. Os pescadores relatam que os barcos de maior porte praticam a pesca de arrasto, com redes de até 30 quilômetros de comprimento que impedem que os peixes cheguem mais próximos à costa. 

“A causa disso são esses arrastões, porque eles pescam só lá no criador do peixe. Só em abril que eles param porque o Ibama cancela o arrastão. Aí começou de novo em maio e vai até não ter mais nada”, conta Antônio. “Aqueles peixinhos miúdos, assim, morrem tudo. Eles levam só os peixes que servem mesmo para as firmas. O que não serve, eles jogam fora. Isso aí era pra ser proibido, proibido!”, diz. Ou seja, peixes menores ou de espécies com baixo valor comercial, que poderiam servir à alimentação das populações locais, ou mesmo filhotes em fase de crescimento, são simplesmente descartados mortos no mar.

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Mudanças climáticas e alimentação

Adalberto Luís Val é biólogo e pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Ele é coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Centro de Estudos de Adaptações Aquáticas da Amazônia (INCT-Adapta), com enfoque nas mudanças ambientais e climáticas e a sua relação com importantes aspectos sociais, tais como saúde e segurança alimentar. Não poderia ser diferente, já que, segundo estimativas do pesquisador, “90% da população [amazônica] tem o peixe como fonte de proteína nessa região”.

Val explica o modo como ações do homem na Amazônia (desmatamento, poluição e construção de hidrelétricas) interagem com os efeitos globais das mudanças climáticas devido à emissão de gases como o dióxido de carbono (CO2).

Por conta das movimentações atmosféricas mundiais, o dióxido de carbono lançado em determinado local “é socializado no mundo”, impedindo a dissipação de calor e aumentando a temperatura da superfície terrestre”, afirma o cientista.

“A gente tem um segundo efeito que é o efeito local […] a abertura de estrada, ações antrópicas [humanas] de uma maneira geral, construção de barragens, enfim. Uma série de ações que são locais que acabam ampliando os efeitos já constatados dessas mudanças globais.”

Para investigar o que se espera de impacto em termos de mudanças climáticas, Val e a equipe do INCT-Adapta construíram salas climáticas que reproduzem distintos cenários ambientais de 2100. Peixes, tartarugas, plantas, insetos, fungos e outros seres são ali incubados. O objetivo é simular o que acontece, principalmente com a população de peixes, diante destes três cenários de mudança climática: o cenário brando (aumento de temperatura por volta de um 1,5 grau centígrado); o cenário intermediário (aumento de temperatura por volta de 2,8 graus); e o cenário drástico (aumento de temperatura em até 3,4 graus).

Nesses experimentos em laboratório, Val e sua equipe entenderam que, para enfrentarem os desafios impostos pelas mudanças climáticas, os peixes amazônicos fazem uma tentativa de se adaptar: “Uma parte perece. Tem uma alta taxa de mortalidade. Tem mudanças muito profundas no esqueleto, principalmente nos cenários mais drásticos”.

No caso específico dos tambaquis, um dos peixes mais apreciados e consumidos na Amazônia, “até 40% dos animais apresentam alguma deformação esquelética quando expostos aos cenários mais drásticos”, de aumento de 3,4 graus, afirma Val. Em paper publicado na revista Ecology and Evolution, o estudo aponta que as principais deformações esqueléticas foram escoliose, cifose e mudanças na mandíbula, entre outras. O que significa que “esses animais no ambiente natural não conseguem enfrentar os seus predadores; portanto, essa parcela da população vai desaparecer”.

Na floresta, fora do ambiente controlado de cenários de mudança climática, os efeitos de mudanças climáticas observados por Val e sua equipe são também alarmantes: aumento da temperatura, diminuição do pH da água e diminuição do percentual de oxigênio impõem desafios consideráveis para as espécies. Entre as mais suscetíveis estão aquelas da ordem Characiformes, na qual se encontram as principais espécies utilizadas na alimentação amazônica, como o tambaqui: “Essas espécies já estão vivendo muito próximas dos seus limites máximos de temperatura”, afirma Val.

O pesquisador cita como exemplo algumas espécies da ordem Characiformes do rio Negro, que corta a parte noroeste do estado do Amazonas. Alguns desses peixes têm como temperatura crítica máxima 31 e 32oC. “Se você pegar a média das máximas do rio Negro, a média é 33oC. Ou seja, se a gente tiver um pequeno aumento de temperatura do sistema como um todo hoje, essas espécies estarão enfrentando um problema extremamente sério com adaptação ao aumento da temperatura.”

Em paralelo ao aumento da temperatura, está a diminuição dos pHs da água — ou seja, algumas águas ácidas da Amazônia, como o rio Negro, tendem a ficar ainda mais ácidas, já que o aumento do CO2 na atmosfera se dilui na água, formando ácido carbônico. “Você vai trazer um desafio monumental pras espécies que vivem nessas regiões.”

Por fim, Val diz que as mudanças climáticas tendem a acarretar águas com menos oxigênio: “Toda vez que você dissolver um gás novo na água, você desloca os outros. E o que mais é propício para se deslocar rapidamente é o oxigênio”.  

O cientista salienta ainda que nenhuma dessas alterações ocorre isoladamente, havendo certa interação entre essas mudanças nas características dos rios, com os efeitos das ações humanas locais, como construção de hidrelétricas e desmatamento, descritas anteriormente por Victoria Isaac. 

“É um desafio muito grande você mexer com essa fonte de proteína. Porque isso ameaça a segurança alimentar dessas pessoas, que vivem aqui. Do lado brasileiro […] são quase 25 milhões de pessoas”, afirma Val.

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