Por muitos anos, mulheres foram colocadas em posição de vulnerabilidade por conta do estigma de que seriam incapazes e menos fortes do que os homens. Desde o final do século XX, mulheres se unem na luta para ocupar novos espaços e mostrar que tais crenças não se justificam.
Aumentar a representação feminina em setores diversos da economia – desde os altos cargos políticos às chefias de laboratórios científicos – é uma questão urgente não apenas no Brasil, mas no mundo. Essa questão tão premente nos dias atuais é, inclusive, o quinto Objetivo para o Desenvolvimento Sustentável (ODS 2030) da ONU, que lista uma série de boas práticas para alcançar a igualdade de gênero e empoderar mulheres e meninas.
Para debater “A questão de gênero no Brasil sob as perspectivas dos ODS 2030”, foram convidados o Acadêmico Aldo Zarbin (UFPR), a socióloga Lia Zanotta Machado (UnB) e a cientista política Flávia Biroli (UnB). As apresentações foram mediadas por Laila Salmen Espindola (UnB).
Zarbin cursou a graduação, o mestrado e o doutorado em química na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Suas pesquisas envolvem a preparação de diferentes materiais em escala nanométrica, com destaque para nanoestruturas de carbono (nanotubos e grafeno), materiais bidimensionais e nanopartículas metálicas.
Homens na luta
Único participante homem da mesa, Zarbin foi convidado pela organizadora, a Acadêmica Vanderlan Bolzani (que não pode comparecer ao evento), para compartilhar seu ponto de vista sobre a relação entre inclusão feminina, ciência e os ODS 2030. Zarbin é casado com a também Acadêmica Elisa Orth, que realiza pesquisas sobre divulgação científica e ações para paridade de gênero, a quem referenciou durante sua apresentação.
Zarbin relatou que desde quando ingressou na graduação, em 1986, a participação feminina no curso de química é predominante – uma tendência que começa na iniciação científica e se mantém até o doutorado. No entanto, conforme os anos de pesquisa avançam, em especial a partir do pós-doutorado, há uma queda drástica no número de mulheres que permanecem na carreira científica. Segundo o professor, apenas 12% dos pesquisadores das ciências químicas com bolsa de produtividade nível 1A do CNPq são mulheres – e todas são residentes na região Sudeste.
Em relação aos cargos de liderança científica, o professor da UFPR enalteceu a eleição de Helena B. Nader como a 49ª presidente da ABC, sendo a primeira mulher na posição. Nader foi também uma das duas mulheres que ocupou a vice-presidência da ABC e uma das seis mulheres presidentes da SBPC.
Ter mulheres ocupando as mais altas posições nas entidades científicas é, para o químico, uma questão que vai além dos números: “É uma questão de representatividade, de referência. É fazer com que meninas da idade da minha filha se sintam inspiradas e vejam que é possível chegar lá”, comentou. Ele é pai de Sofia, de 13 anos.
De acordo com pesquisas, um dos principais motivos que provocam a evasão de mulheres da carreira científica é a maternidade. Ainda hoje, há poucos editais que levem em conta a licença maternidade e a queda na produção científica durante os primeiros anos de vida da criança. “Temos que trazer os homens para a luta”, afirmou Zarbin, que acredita na contribuição masculina em ações que podem auxiliar a expansão da carreira das mulheres. Segundo ele, é necessário esclarecer as crianças sobre a importância da ciência e da igualdade de gênero, além de mostrar que homens e mulheres podem dividir igualmente as tarefas domésticas e o cuidado com os filhos.
Ainda hoje, a realidade feminina dentro da academia é cruel: uma parcela de acadêmicos conservadores insiste em acreditar nos laboratórios de gêneros únicos e na falta de capacidade de mulheres em orientar e conduzir pesquisas. Para mudar essa realidade, Zarbin aponta para a criação de políticas inclusivas, como considerar o período de gravidez e licença maternidade ao analisar a produção científica, oferecer prazos estendidos e adequação para mulheres em editais, criar creches e espaços-família em grandes congressos científicos. Atualmente, pesquisadoras já começaram a se reunir e promover a criação de redes de apoio a mulheres e mães dentro das instituições de ensino superior, como a iniciativa Parent In Science, surgida em 2018, que luta pela igualdade parental dentro do ambiente acadêmico.
Desigualdades para além da questão de gênero
A crise econômica e orçamentária enfrentada pelo Brasil desde o início da pandemia acentuou as dificuldades e hostilidades relativas à participação das mulheres como pares nas esferas públicas. Durante a pandemia, o motivo principal pelo qual as mulheres – especialmente as negras – estiveram impossibilitadas de conseguir emprego era a necessidade de cuidar. O Brasil foi o país que passou mais tempo sem acompanhamento educacional ou com escolas fechadas entre os anos de 2020 e 2022, fazendo com que cerca de 25% das mulheres brasileiras ficassem afastadas do mercado de trabalho para cuidar dos filhos durante o período. Apenas 3% dos homens citou esse fato. “A divisão sexualizada do trabalho coloca mulheres em situação vulnerável, que mistura as relações de cuidado e as condições de cuidado”, apontou Flavia Biroli, professora associada do Instituto de Ciência Política da UnB. Segundo ela, as “relações” de cuidado dizem respeito a quem ou o que deve ser cuidado, como idosos, filhos ou a casa); as “condições” estão relacionadas à forma como isso é feito – os horários, as tarefas externas associadas à essa atividade e do que as mulheres precisam abrir mão para executar essas tarefas.
De modo geral, mulheres negras são mais invisibilizadas e sofrem mais com a falta de qualificação e o desemprego. Muitas vezes, sua única alternativa é trabalhar em serviços domésticos ou como cuidadoras. “A questão de gênero não vem sozinha; ela atua em conjunto com outros contextos, como violência e educação. E no Brasil, em específico, o principal agravante é o racismo.”
Biroli apontou que o momento por que passam o mundo e, especialmente, o Brasil, é de fragilização das democracias e perseguição aberta às mulheres e a diversidade, o que vêm impondo um retrocesso na luta por direitos igualitários. “Uma democracia de fato envolve representação que conecte o sistema político à complexidade da sociedade”, afirmou. “No regime democrático, brigamos por isso, mas no regime autoritário, lutar por isso envolve uma série de humilhações pelas quais, muitas vezes, não estamos dispostas a passar.”
Para que essa realidade seja alterada, é preciso que as mudanças comecem nos cargos políticos. Atualmente, a participação parlamentar feminina no país é irrisória: em um ranking que analisa os parlamentos de 193 países, o Brasil ocupa a 143ª posição, com apenas 17,3% de mulheres exercendo cargos políticos. No continente americano, o país está à frente apenas de Antígua e Barbuda, Bahamas, Belize e Haiti. Os indicadores preocupam a pesquisadora: “Nós precisamos de uma agenda concreta, com estruturas políticas que atendam e incorporem mulheres na sociedade brasileira. No entanto, como estabeleceremos esse compromisso civil, para além dos documentos, se não temos representatividade política?”
A cientista política espera que, no futuro, haja políticas pública capazes de permitir que mulheres possam construir suas próprias carreiras e suas trajetórias, sem precisar optar entre família e trabalho, e enumera: “O que precisamos, de fato, é de infraestrutura, responsabilidade pública e marcos legais comprometidos com o conhecimento científico que está sendo produzido nas universidades.”
Religiosidade, gênero e feminicídio
Para além das questões de inclusão no mercado de trabalho e da paridade de gênero dentro do ambiente científico, há questões de saúde pública e de acesso a políticas que preocupam a socióloga Lia Zanotta Machado. “O problema do Brasil não é só a legalização do aborto, mas também a distribuição gratuita dos métodos contraceptivos”, disse a pesquisadora, que defende a legalização do aborto seguro até as 16-20 semanas de gestação. Segundo a pesquisadora, os estereótipos de gênero estão sendo ainda mais reforçados pela fonte onda de neoconservadorismo que atingiu o Brasil nos últimos anos. “Associada à forte presença de religiosidade, essa onda confronta o Estado laico em decisões judiciais que deveriam ser neutras”, afirmou Zanotta, citando o exemplo da interferência da igreja no julgamento de casos de estupro de menores, ou quando juízes utilizam suas convicções religiosas para tomar decisões em casos similares.
A falta de comprometimento orçamentário com as questões de segurança coloca a vida das mulheres em segundo plano. Dados de 2017 apontam que dos 10.433 juizados contra a violência, apenas 137 eram específicos para mulheres. Estes espaços, além de insuficientes para atender a demanda da população, ainda tendem a limitar a Lei Maria da Penha, dificultando a imposição de medidas restritivas contra agressores.
No Brasil, a cada 100 mil mortes de mulheres, 4,3% são categorizadas como feminicídio – mas estima-se que o número seja bem maior. “Há uma certa dificuldade da mulher que está sofrendo abusos se entender como vítima. Saber que há feminicídio no país faz com que mulheres fiquem mais cuidadosas. É importante noticiar esse número, e não mascará-lo”, disse a pesquisadora.
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