O Acadêmico Paulo Saldiva, médico patologista, fez sua apresentação “Diálogos entre os mundos real e o imaginário: da mesa de autópsia às redes sociais” na terça-feira, 26 de julho, no segundo dia da 74ª Reunião Anual da SBPC. O cientista falou sobre sua experiência de quase dois anos dentro dos laboratórios da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), realizando autópsias em vítimas da covid-19. 

Conclusões clínicas pós-mortem 

Segundo Saldiva, dados coletados no estado de São Paulo mostraram que os índices de mortalidade por covid-19 deixam clara a relação entre a doença e a desigualdade: o número de óbitos aumenta à medida em que as condições socioeconômicas diminuem. “São Paulo começou a vacinar prioritariamente a zona central, que já era privilegiada, enquanto as pessoas na periferia sofriam com o avanço da doença. A taxa de mortalidade entre pessoas negras é 16 vezes maior do que entre pessoas brancas. ”, apontou o pesquisador.  

Seis anos antes de a pandemia ter início no Brasil, um grupo da FM-USP, sob coordenação de Saldiva, havia desenvolvido uma série de técnicas de autópsia minimamente invasivas, baseadas em diagnóstico por imagem e intervenção percutânea, em que se faz uma punção na pele para o acesso aos órgãos internos e tecidos. Essas técnicas foram utilizadas nas vítimas de covid-19, dado o alto risco de espalhamento do vírus não permitir o uso da técnica tradicional, com a abertura do corpo.

Os resultados trouxeram à tona aspectos inusitados da doença: os pulmões das vítimas de covid estavam rígidos, uma vez que suas lesões cicatrizavam de forma errada. A “geografia pós-mortem”, segundo o Acadêmico, apontou para tromboses em grandes vasos e pequenas tromboses venosas sob o córtex cerebral, que geravam micro acidentes vasculares cerebrais (AVCs). Com isso, surgiam pequenos edemas cerebrais em áreas fragmentadas, causando isquemia neuronal e múltiplos infartos sistêmicos. Nos organismos de crianças imunossuprimidas, a autópsia apontava para lesões pulmonares menos intensas e alterações cerebrais mais expressivas, além de complicações nos tecidos e músculos cardíacos. 

A presença prévia de comorbidades e o uso indiscriminado de corticoides também aumentavam o risco de pacientes desenvolverem uma inflamação secundária, a rara mucormicose, também conhecida como doença do fungo preto. O quadro avançava junto com a covid-19, com os fungos atingindo os vasos sanguíneos, levando à necrose dos tecidos, principalmente na região facial. 

Um depoimento pessoal 

Questionado sobre seus sentimentos ao realizar autópsias,  o Acadêmico afirmou que o primeiro sentimento é o de culpa, ao pensar no que poderia ter sido feito para salvar aquele paciente. “Não é fácil, mas é uma atividade que traz muito retorno para a ciência.”

Nas circunstâncias da covid-19, uma das coisas que mais entristeceu Saldiva foi lidar com mortes como as de moradores das regiões periféricas da cidade, que não puderam se isolar por completo durante o período de alta propagação do vírus ou não tiveram condições de comprar equipamentos básicos de proteção, como máscaras e álcool em gel. “Eram mortos invisíveis para a sociedade, uma vez que os números diários tão altos não provocavam tanta comoção como um atropelamento ou outro incidente isolado. Mas nós, médicos, tínhamos que conversar com os familiares e nos colocávamos no lugar desses pacientes todos os dias.” 

Desinformação e ética

A valorização da ciência durante a pandemia também trouxe uma deturpação das informações científicas, um modo de divulgação de fake news muito utilizado, de acordo com os interesses de diferentes setores da sociedade. Por exemplo: medidas como a manutenção da distância de 40cm entre passageiros no transporte público, ou a redução de 30% na capacidade dos restaurantes são irrelevantes, de acordo com o médico, não têm respaldo científico.

Saldiva apresentou um mapa que indicava os países que mais espalharam desinformação sobre a covid-19 no ano de 2020: na América Latina, Brasil e Argentina ocupavam as principais posições. “A desinformação sempre existiu, só que agora ela tem capacidade de ser produzida numa quantidade e difundida num ritmo muito mais rápido, que é epidêmico”, apontou o patologista. Ele considera que a “vacina” para enfrentar a situação envolve a produção de informação confiável, mas em linguagem coloquial, e cita o exemplo da China, que conta com influencers para produzir conteúdo científico numa linguagem mais moderna.  

As questões éticas – que estão, afinal, por trás de todos os tipos de desinformação – aparecem nos mais diversos aspectos de abordagem da doença. “Não podemos esquecer dos países ricos que ingressaram no Consórcio Covax e compraram duas ou três vezes mais quantidade de vacina do que precisavam, prejudicando países com menor poder aquisitivo”, apontou Saldiva. “No futuro, vamos ter que encarar esse problema. Os avanços da ciência serão destinados àqueles que precisam ou àqueles que podem pagar por ela?”


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