No terceiro dia da 74ª Reunião Anual da SBPC (27/7), uma pergunta ecoava no anfiteatro 10 da Universidade de Brasília (UnB): “O Brasil está preparado para outra pandemia?“. Este foi o título da palestra do epidemiologista Pedro Hallal, que trouxe à tona os principais erros do governo no enfrentamento à covid-19 e o que esperar da ciência brasileira em futuras pandemias. A moderação foi da Acadêmica Ana Tereza Ribeiro de Vasconcelos, geneticista que atua no Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC).

Hallal foi membro afiliado da ABC durante o período de 2008 a 2013. É doutor em epidemiologia pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), onde atuou como reitor entre 2017 e 2020. Coordena o programa Epicovid-19, o maior estudo epidemiológico sobre coronavírus no Brasil.  

Conhecimento científico x vontade do governo 

Segundo Hallal, se depender das universidades, o Brasil está muito bem preparado para uma próxima pandemia. O país conta com 96 programas de pós-graduação em saúde coletiva, mais de 55 acadêmicos e 41 profissionais capacitados para produzir conhecimento específico na área. “A universidade não é lugar de balbúrdia e sim um espaço com ampla capacidade de produzir ciência, tecnologia e inovação”, apontou o pesquisador. Atualmente, as universidades públicas concentram mais de 90% da produção nacional de conhecimento. 

Embora tendo um amplo sistema de pesquisa, profissionais qualificados e instalações clínicas capazes de prestar uma boa assistência num primeiro estágio de infecção, o Brasil não soube lidar com a pandemia. As vantagens eram muitas, especialmente quando comparado com outros países. Hallal ressaltou que em grande parte do Brasil existe pelo menos uma Unidade Básica de Saúde (UBS) próxima da residência de cada brasileiro; já em alguns países da Europa, como a Itália, os centros de tratamento de covid-19 ficavam concentrados em determinadas regiões, levando a população a realizar longos deslocamentos e, consequentemente, aumentar a disseminação do vírus. 

O cientista apontou que o maior erro na condução da pandemia no Brasil foi escolher criar uma “fantasia coletiva”, sem embasamento nos conceitos da epidemiologia. “O governo tinha a inteligência epidemiológica a seu favor, mas não soube valorizar.”

Professor da UFPel, relaizando pesquisa em epidemiologia há mais de 40 anos, Hallal enumerou algumas das técnicas recomendadas, como por exemplo a testagem massiva da população e o rastreamento de contato – prática de vigilância viral na qual, após testar positivo, o paciente é entrevistado pelo médico e lista todas as pessoas com quem entrou em contato nos últimos dez dias. Essas pessoas são devidamente isoladas e testadas. Para Hallal, a pandemia foi tratada sob um olhar clínico e não populacional, indo na direção contrária ao recomendado pela epidemiologia. 

Os reflexos da pandemia nos dias de hoje 

A covid-19, segundo Hallal, não foi uma doença democrática, a começar pela forma como chegou no Brasil: pelos aeroportos. O país já possuía um grande quadro de desigualdade social que foi acirrado pela pandemia. Na pesquisa que resultou no fim do investimento do governo na Epicovid-19, Hallal mostrou que pessoas indígenas tinham de 4 a 5 vezes mais chance de contrair a doença e morrer do que a população branca. “Além de todas as questões que o governo já tinha com a população indígena, havia também um descuido por conta da ausência de políticas públicas que fornecessem assistência a essa população”, explicou. “Mostramos que não era uma questão genética e sim de desigualdade social.” 

Vinte e oito meses após o início da pandemia ser decretado no Brasil, os dados assustam até mesmo os médicos menos otimistas: a taxa de mortalidade nacional é de 3.159 brasileiros a cada milhão. “O índice nacional é quase quatro vezes maior do que a taxa mundial – 807 cidadãos a cada 1 milhão – e oito vezes maior que a taxa neozelandesa – 378 mortes por milhão de habitantes. Bate uma certa revolta quando vemos que, com referência nos números mundiais, a cada quatro mortes, três brasileiros poderiam estar vivos”, observou Hallal, atrelando esse número à falta de uma liderança unificadora, capaz de se unir com a população para combater a pandemia. 

Os desafios para a próxima geração de cientistas 

Com todas as atenções direcionadas para a covid-19, as agendas de enfrentamento de outras doenças endêmicas acabaram ficando em segundo plano, como as doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs). Em 2019, 54,7% dos óbitos registrados no Brasil foram causados por essas doenças e 11,5% por agravos. Além disso, outros índices que estavam em constante melhoria voltaram para trás: a qualidade da alimentação piorou, houve queda no número de brasileiros que praticam exercícios físicos e aumento no consumo de álcool e no tabagismo.

Para Hallal, o que ocorreu foi um “silenciamento de doenças”, dado que quedas de avião e atropelamentos provocam comoção nacional, mas o mesmo não ocorre com as inúmeras “micro quedas de avião” diárias, quando pessoas morrem de infarto por conta do tabagismo, por exemplo, entre outras doenças para as quais as políticas públicas são insuficientes. “O que é necessário agora, em primeiro lugar, é retomar a agenda de controle dessas doenças que podem se tornar epidemias futuras dentro do país”, afirmou o epidemiologista.

No entanto, para lidar com as crises sanitárias do amanhã, é preciso que o Brasil inicie hoje os programas para incentivar que seus melhores cientistas permaneçam no país. O atual panorama de fuga de cérebros preocupa Hallal, que afirma que é impossível fazer ciência de ponta quando os valores das bolsas de pesquisa permanecem inalterados desde 2004. “Não tem como a gente fazer como a orquestra do Titanic, que continua tocando enquanto o barco afunda.” 

O comportamento do governo diante da pandemia, para Hallal, é a questão maior. “O movimento antivacina existe em todo lugar. Em alguns lugares, o movimento é uma forma de revolta contra o monopólio das grandes empresas farmacêuticas. No Brasil, a sede do movimento antivacina e da indústria de disseminação de fake news em saúde é o Palácio do Planalto.” 

A urgência agora é que o Brasil se torne um país que tenha mais políticas de Estado, com menos poder na mão dos governantes e com mais participação do povo. Para concluir, Hallal deixou uma mensagem de esperança: “Essa não é a primeira vez – e infelizmente não será a última – que governos autoritários atacam a ciência. Em todos os casos, a ciência triunfou. E eu acredito que isso será possível mais uma vez.”