Maria Van Kerkhove com o Acadêmico Wilson Savino.

Para abrir o último dia de Reunião Magna 2022: O Futuro é Agora, a Academia Brasileira de Ciências recebeu para a Conferência Magna a epidemiologista Maria Van Kerkhove, líder técnica do grupo de resposta à covid-19 da Organização Mundial da Saúde (OMS). Kerkhove tem vasta experiência no combate a doenças infecciosas, é chefe do Programa de Emergências em Saúde da OMS para Doenças Emergentes e Zoonoses, tendo liderado a Força-Tarefa de Investigação de Surtos no Centro de Saúde Global do Instituto Pasteur, em Paris.

Enfrentando a  Covid-19

Durante toda a apresentação, a representante da OMS enfatizou que a pandemia ainda não acabou, e que relaxar nos cuidados é um erro que deixa o mundo cego para futuros surtos. Ao todo, o novo coronavírus já é responsável por 6 milhões e duzentas mil mortes registradas ao redor do mundo, número que deve ser até três vezes maior considerando o alto número de casos que não chegam a ser contabilizados. “Estamos vendo um declínio nos números globais, mas parte dele é explicado apenas pela diminuição do monitoramento”, avaliou.

A discrepância entre as estratégias adotadas e a própria realidade de cada país demandam algumas preocupações na hora de avaliar os números. Ainda assim, muitos avanços ocorreram nestes últimos dois anos. “O Brasil, por exemplo, passou de três laboratórios fazendo testagem para vinte e sete”, lembrou a palestrante. A necessidade de adaptação rápida e localizada foi defendida como um dos fatores cruciais para o enfrentamento. Entretanto, as bruscas mudanças nas orientações e políticas públicas foram vistas como dificultadores, gerando desconfiança na população. “Em muitos lugares, o que vimos foi um movimento pendular entre tudo ou nada, entre severas restrições e liberação total”.

Mas o que realmente mudou o curso da pandemia foi a vacinação. Ao sobrepormos as taxas de imunização com a mortalidade, podemos ver claramente a correlação – quanto mais completo o ciclo vacinal, menor o número de mortes. Na maior parte dos países, alta vacinação caminha lado a lado com outros fatores que contribuíram para o controle da pandemia, como testagens e acesso a tratamento. Entretanto, um problema que foi observado mesmo em países que lidaram bem com a doença foi a desinformação. “Não existe a menor dúvida de que fake news mataram nessa pandemia, mesmo que não possamos ainda quantificar em que extensão”, frisou a palestrante.

A baixa cobertura vacinal (Figura 1), sobretudo no Sul Global, é um fator de risco para o surgimento de novas variantes. Atualmente, o mundo está em alerta para as novas linhagens da ômicron, BA.1 e BA.2, que são mais transmissíveis, e, no caso da última, vem provocando fechamentos de cidades inteiras na China. Kerkhove lembrou que a evolução e recombinação dos vírus inevitavelmente trarão novas cepas. “BA.1 e 2 são as com que nos preocupamos agora, mas novas virão, o coronavírus permanecerá e temos que lidar com ele”.

Figura 1. Números da vacinação ao redor do mundo. Kerkhove apresenta a situação atual da imunização, dividida por região e metas percentuais.

Futuro da pandemia

Pensando no futuro, a OMS trabalha com alguns cenários. O mais provável é que novas variantes com diferentes graus de risco continuem surgindo, com impactos cada vez menores devido à vacinação, mas ainda capazes de gerar surtos localizados e afetar especialmente grupos vulneráveis e não vacinados. Uma situação pior aconteceria se essas variantes escapassem significativamente a cobertura das vacinas atuais, o que demandaria atualizações mais frequentes e mais doses de reforço. Sendo otimista, podemos esperar também um futuro em que as novas cepas são cada vez mais fracas e não demandem tanto reforço. “Trabalhamos também com um cenário de recomeço, onde surge um novo vírus completamente novo que nos jogue de volta a 2020, por isso precisaremos estar sempre preparados”, disse Kerkhove.

Apesar das muitas críticas ao enfrentamento global da pandemia, a palestrante elogiou a solidariedade global entre cientistas, integrando dados, inteligência e equipes laboratoriais. “Quando me perguntam quantas pessoas estão na minha equipe, eu respondo ‘milhares!’, são tantos contatos internacionais, tantas pessoas disponíveis, que, de certa forma, nós da ciência estivemos todos no mesmo time”. Entretanto, a mesma colaboração não foi observada entre governos, e os níveis vacinais dos países mais pobres atestam isso. “Atualmente, apenas 54 dos 193 países existentes no mundo atingiram a meta da OMS de 70% da população vacinada”, apontou Kerkhove.

A palestrante fez questão de frisar que, embora a meta global seja de 70%, esse número precisa estar distribuído de forma equitativa, com especial cuidado com os grupos vulneráveis. “Precisamos cobrir 100% dos grupos de risco”, alertou. Atualmente, 11,7 bilhões de doses já foram aplicadas no mundo inteiro, com 59% da população global com o ciclo vacinal completo e 66% ainda incompleto. “Temos muito trabalho pela frente para fortalecer a arquitetura de saúde global. Entramos num período de negligência, e muitos sistemas estão sendo desmontados. Temos que lembrar que não existe paz na preparação para pandemias”, reforçou.

Por fim, Kerkhove lembrou que todos os aspectos da sociedade foram afetados pela pandemia, e que, por isso, sistemas de preparação devem ser muito amplos. O vírus causou disrupção não apenas na saúde, mas na economia, na produção de alimentos, na educação e até no clima – com a diminuição de investimentos em energias renováveis. “Todos tivemos nosso futuro alterado”, declarou. “Precisamos de governança, inovação, comunicação, treinamento de pessoal, e, não menos importante, bom senso”, concluiu.

Debate

Após a palestra, o espaço foi aberto para os participantes lançarem perguntas, e alguns temas mais específicos foram abordados.

Solidariedade internacional

Respondendo a uma pergunta sobre a imunização de países subdesenvolvidos, Kerkhove analisou que faltou mais engajamento das nações ricas. “Faltou logística, estratégia, prioridades, enfim, acesso equitativo aos imunizantes”, disse. Outro problema foi o monitoramento insuficiente e as barreiras que muitos países impuseram aos observadores internacionais. “Existiu pouco incentivo à transparência devido às consequências geopolíticas, como restrições de viagens e problemas na imagem internacional”.

Quanto à OMS, a palestrante lembrou que a organização foi muitas vezes tragada no debate político, o que só contribuiu para o crescimento da desinformação. Ela considera que o financiamento ainda é insuficiente para cobrir todas as frentes de atuação da entidade. “Nosso orçamento é menor do que o de um único grande hospital de Nova York, somos gratos pelo que recebemos, mas precisamos de mais”, ressaltou.

Testes caseiros

Recentemente, foram disponibilizados no mercado testes de covid-19 de aplicação individual, o que levantou dúvidas sobre a eficácia diagnóstica e de controle epidemiológico. Para Kerkhove, contanto que sejam fáceis e intuitivos, esses testes são bem-vindos, e colaboram para um maior monitoramento. Entretanto, estes precisam estar ligados de alguma forma a uma base de dados para controle. “Nos EUA temos testes que podem ser contabilizados por QR code, mas que ainda não estão ligados a uma base de dados do governo. Isso mostra que a tecnologia existe e deveria estar sendo utilizada”, exemplificou.

Assista ao 2º dia da Reunião Magna pelo YouTube da ABC, em português ou inglês: