Confira trechos da entrevista com Emmanuelle Charpentier, prêmio Nobel de Química 2020, publicada pela Folha de São Paulo em 15 de novembro. A cientista é uma das participantes do Diálogo Prêmio Nobel América Latina e Caribe, evento organizado pela Academia Brasileira de Ciências, que será transmitido das 13:00 às 16:00 horas do dia 16 de Novembro pelo site do Prêmio Nobel.

 

“A situação é crítica. Não se pode sentar e esperar que essas ameaças [como mudanças climáticas e novas doenças infecciosas] simplesmente cheguem. É preciso educar, entender a ciência por trás desses desafios”, afirma a microbiologista francesa Emmanuelle Charpentier, que atua no Instituto Max Planck, na Alemanha.

Ela é uma das cientistas mais importantes da atualidade. Junto com a americana Jennifer Doudna, a microbiologista desenvolveu a técnica de edição do DNA conhecida como Crispr-Cas9. O feito rendeu à dupla o Nobel de Química na edição de 2020.

Foi com o Crispr, uma espécie de tesoura molecular altamente precisa, que puderam ser criadas as vacinas de RNA, como as das empresas Pfizer e Moderna (que não alteram o DNA, vale notar), usadas no combate à Covid-19, além de novas terapias para doenças genéticas, estas ainda em teste (aí sim realizando correções no material genético).

A negação da ciência e dos fatos científicos é uma outra pandemia. Mesmo assim, estamos numa maré de sorte, já que conseguimos desenvolver vacinas em menos de um ano que, em casos normais, levariam até dez anos para serem lançadas”, diz a cientista em entrevista à Folha.

Charpentier participa do Diálogo do Prêmio Nobel América Latina e Caribe, evento promovido pela Academia Brasileira de Ciências, pelo Nobel Prize Outreach e pela Rede Interamericana de Academias de Ciências. No papo, 80 estudantes, 16 deles do Brasil, conversam com os laureados. A transmissão para o público será feita pelo site do Prêmio Nobel nesta terça (16), a partir das 13h.

Foto: Steve Jennings – 10.nov.14/AFP

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Como a gente consegue evitar que se faça um mau uso da técnica, como aconteceu com o cientista chinês He Jiankui, que manipulou, sem autorização, o genoma de embriões? 

Como você deve saber, o Crispr vem sendo empregado como uma possível cura para doenças genéticas do sangue, como anemia falciforme e talassemia beta. É uma combinação entre terapia gênica, edição genética e terapia celular. A prova de conceito já está literalmente andando por aí.

Desde a publicação dos nossos resultados, quase uma década atrás, as questões sobre como aplicar a técnica eticamente já eram postas. Há muitas coisas que as pessoas não querem que aconteça, como bebês customizados ao gosto de alguém. Isso aconteceu na China e foi alvo de críticas pesadas. Não é tão fácil quanto pode parecer usar a técnica de uma maneira adequada. Por isso é importante pensar em cenários e realizar essas discussões dentro de entidades governamentais, acadêmicas e sociedades médico-científicas nacionais e internacionais.

Em geral, essas diretrizes, de diversas entidades, apontam para a mesma direção: banir o uso para construir bebês geneticamente customizados e permitir o uso para quaisquer intervenções terapêuticas que possam curar doenças.

Existe algum limite biológico para o uso do Crispr? É possível alterar grandes porções do nosso genoma? 

O Crispr permite realizar edições de um único nucleotídeo [“letra química” que forma o DNA], mas também pode, de fato, rearranjar o genoma ao deletar grandes extensões do DNA.

Em alguns países como o Brasil, e até mesmo a França, sua terra natal, existe um grande problema com o aproveitamento de doutores que são formados todos os anos. Muitos ficam desempregados. Será que já temos cientistas o suficiente no mundo? 

Todo mundo concorda que, para um país se desenvolver, é necessário ter um forte investimento em educação e desenvolvimento científico. E isso certamente não está ainda em um nível de suficiência. Existe uma urgência de lidar com essa situação e entender que, para o desenvolvimento econômico acontecer, essa é uma questão que tem que ser resolvida. É sobre o futuro que estamos falando.

As gerações mais novas serão confrontadas muito em breve com imensos desafios, como a mudança climática e a intensificação das doenças infecciosas. Todos sabemos como o Brasil reagiu a essa situação [da Covid-19] no começo da pandemia.

A situação é crítica. Não se pode sentar e esperar que essas ameaças simplesmente cheguem. É preciso educar, entender a ciência por trás desses desafios. O Brasil está repleto de jovens e talentosos cientistas e estudantes que querem participar do enfrentamento desses desafios, antecipar o que está por vir, ser parte de uma geração que faz a diferença.

E os políticos têm que acordar e entender que eles têm uma enorme responsabilidade para com as novas gerações.

Estamos no meio de uma crise de negacionismo e de cortes no orçamento para as atividades científicas no Brasil. 

A negação da ciência e dos fatos científicos é uma outra pandemia. Mesmo assim, estamos numa maré de sorte, já que conseguimos desenvolver vacinas em menos de um ano que, em casos normais, levariam até dez anos para serem lançadas.

De novo, tudo converge para a educação. Desde os 6 anos até os 16 anos de idade, crianças e adolescentes deveriam ouvir explicações sobre do que se trata a ciência, o que é pesquisa, o que são certos fatos científicos e como a ciência nos permitiu viver tão melhor.

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Você vai ter a chance de conversar com cientistas e estudantes do Brasil e da América Latina e motivá-los. Qual é a principal mensagem que você quer que eles levem para casa? 

Eu sou de um grupo de ganhadores do Nobel que são relativamente novos. E sou uma mulher com uma carreira internacional, fora do meu país. Eu levo muito a sério essa conexão que posso ter com esses estudantes, de que eu posso ser uma espécie de exemplo para eles.

Existe um desafio em carreiras científicas e de engenharia: nem sempre é possível fazer um bom equilíbrio entre trabalho e vida pessoal. Ali, o investimento pessoal e o envolvimento é muito forte. Isso leva ao fato de que nós realmente temos que nos perguntar como fazer esse sistema evoluir.

Penso que a pesquisa poderia ser um pouco mais orientada a times. A pressão hoje cai sobre os indivíduos. Os jovens são sempre julgados por sua excelência e produtividade. Talvez isso tivesse de ser revisto. Assim como tinha que ser revista a forma com a qual os cientistas trabalham juntos.

Se continuarmos como estamos, estou entre os que pensam que no futuro haverá dificuldades para recrutar cientistas, professores universitários e também de formar os próximos cientistas.

É preciso ser muito resiliente para transformar toda uma mentalidade de formação de cientista. 

Eu mesma vivenciei isso: em algum momento, foi preciso ser proativa e ter a certeza de que a mensagem estava sendo ouvida. É preciso achar quem escute você. Se as pessoas não se sentirem responsáveis por aquela situação, nada vai mudar. É preciso pôr pressão nas políticas públicas.

 

Leia a entrevista completa no site da Folha de São Paulo.