Nas últimas semanas, denúncias de perseguição estatal pelo governo mexicano a 31 cientistas e gestores de ciência do país geraram repercussão internacional. A Academia Brasileira de Ciências (ABC) conversou com Susana Lizano, presidente da Academia Mexicana de Ciências (AMC) e José Franco López, ex-presidente da AMC e um dos cientistas perseguidos.
Entenda o caso
A Procuradoria-Geral do México, a pedido do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia (Conacyt), solicitou múltiplas ordens de prisão contra os acadêmicos, sob graves acusações de corrupção. Os crimes alegados estão sujeitos a penas severas, chegando a décadas de detenção em presídios de segurança máxima.
O caso gira em torno de uma instituição autónoma, o Fórum Consultivo Científico e Tecnológico (FCCyT), que fornecia consultoria ao governo no âmbito da C&T e possuía orçamento vinculado por lei ao Conacyt.
O governo López Obrador considera que o FCCyT é uma empresa privada, e, portanto, sua administração não estaria obrigada a fornecer recursos para o mesmo. O FCCyT entrou na justiça para obter os repasses e, de acordo com a AMC, a partir daí as acusações contra os 31 indivíduos começaram.
Os pedidos já foram indeferidos por um juiz federal, que alegou insuficiência de provas. Entretanto, a Procuradoria-Geral vem repetindo esforços pela prisão dos cientistas, baseando-se em argumentos legais já rejeitados pela Suprema Corte do país.
O International Human Rights Network of Academies and Scholarly Societies (IHRN) divulgou no início de outubro um posicionamento oficial denunciando a situação, que também foi abordada em matéria da Revista Nature.
Intimidação jurídica
Para Susana Lizano, presidente da Academia Mexicana de Ciências, as acusações contra os 31 acadêmicos são uma inversão do estabelecido pela própria lei mexicana. “Até 2020, o regimento interno do Conacyt contemplava o financiamento do Fórum. A cada ano a utilização dos recursos que o Conacyt concedeu ao FCCyT era auditada. Isso ocorreu mesmo com os recursos que a FCCyT recebeu no primeiro ano do atual governo”, e indaga como pode ser que esse modo de atuação, dentro do atual quadro jurídico, agora se torne ilegal e que eles tenham sido acusados de crime organizado.
José Franco López, um dos cientistas denunciados, é enfático. “Isso é uma vingança pela oposição do Fórum às visões do governo e uma tentativa de se impor uma ideologia dominante na ciência mexicana”.
Independência científica
Os entrevistados também demostraram preocupação com a independência científica no México. A nova lei de C&T, que o governo vem tentando emplacar no Congresso, centraliza amplos poderes no Conacyt para que este defina quais áreas serão ou não financiadas, seja com bolsas de pós-graduação ou oriundas do Sistema Nacional de Pesquisadores.
José Franco López acusa a atual diretora do Conacyt, María Elena Álvarez-Buylla, de sabotar a biotecnologia mexicana. Figura mais influente da ciência no governo López Obrador, a pesquisadora é conhecida por sua oposição aos alimentos transgênicos. “Em particular, Álvarez-Buylla vem agindo contra a biotecnologia. Ela acredita que a área é maléfica e vem minando todo tipo de financiamento”, afirmou.
Além da biotecnologia, outras áreas também vêm sofrendo com as prioridades do governo. “Hoje em dia”, diz Susana Lizano, “estudantes de física e engenharias não estão conseguindo bolsas no Conacyt para estudarem fora. Essas bolsas só estão disponíveis para áreas que fazem parte de uma agenda de Estado. Esta é necessariamente uma agenda política e a nova lei de C&T, se aprovada, seria mais um golpe terrível na liberdade de pesquisa mexicana”.
Efeitos sobre a opinião pública mexicana
Acusações de corrupção, mesmo quando não provadas, tendem a ter efeito imediato na percepção pública sobre os acusados. O combate à corrupção é uma das bandeiras mais fortes do presidente López Obrador. No fim de setembro, o mandatário chegou a afirmar que a corrupção é o problema um, dois e três do país no momento.
Conferir a adversários a pecha de “corrupto” é uma poderosa arma política, que os entrevistados acreditam estar sendo usada contra a ciência mexicana. Para Lizano, as acusações contra os 31 cientistas afetam de maneira muito negativa a percepção sobre o trabalho e a importância da ciência. “A sociedade está polarizada. As pessoas insultam e desqualificam a comunidade científica alegando que são corruptos, que se aliaram à oposição. O presidente, em suas entrevistas matutinas, promove o descrédito aos cientistas e as universidades públicas”, afirma.
Na mesma linha, Franco Lópes acredita que a campanha contra si e seus colegas visa destruir a credibilidade, não apenas dos envolvidos, mas de todos os cientistas não alinhados ao governo. “Eles querem intimidar a comunidade científica. Isso é perigoso, pois faz com que jovens relutem em seguir a carreira. Toda essa situação terá um impacto muito negativo no futuro da ciência mexicana”, mas ressalta que “entre os cientistas, a vasta maioria se opõe às ações do Conacyt”.
Solidariedade internacional
O caso gerou grande repercussão entre a comunidade científica internacional. Além da declaração do IHRN, diversas academias nacionais de ciência denunciaram a perseguição sofrida pelos cientistas mexicanos. A Academia Brasileira de Ciências encaminhou uma carta ao embaixador mexicano no Brasil, endossando o posicionamento do IHRN e pedindo que se respeitem os princípios da legalidade e dos direitos humanos nas investigações.
Apesar de não enxergar o governo cedendo a pressões internacionais, Susana Lizano acredita que “existem atores dentro do governo que são mais sensíveis à deterioração da imagem do México e exercem uma pressão interna”. José Franco López agradeceu o apoio da ABC e de seu presidente Luiz Davidovich. “A comoção internacional gerada foi muito importante para que o governo recuasse”, salientou.
Confira nossa matéria sobre a declaração da IHRN em relação ao México.