O último corte orçamentário promovido pelo Governo Federal, de 600 milhões que seriam destinados ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) por meio do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), impactou o país.

No dia 15 de outubro a Academia Brasileira de Ciências (ABC) promoveu uma mesa-redonda intitulada “Qual o impacto dos cortes em C&T e Educação para o Brasil e, em particular, para a Amazônia?”. A coordenação foi do vice-presidente da ABC para a Região Norte, Adalberto Val (Inpa), que convidou para responder à pergunta-título Emmanuel Tourinho (UFPA), Sanderson de Oliveira (Ufam), Camila Ribas (Inpa) e Alfredo Lopes (escritor e filósofo).

Adalberto Val: “Matar a ciência é matar o futuro da nação” 

Val abriu o evento destacando o momento especialmente difícil e conturbado que vivemos. “Não só pela pandemia, mas pela falta de visão estratégica do governo federal com relação à ciência, tecnologia, inovação e educação (CTI&E)”, apontou. “Quando matamos essas áreas, estamos matando o futuro da nação e deixando o país despreparado para os próximos governantes”, alertou.

Val passou então a palavra aos palestrantes, convidados a responder à pergunta-título de seus diferentes pontos de vista.

Emmanuel Tourinho: prioridade nas planilhas e menos retórica 

Reitor da universidade Federal do Pará (UFPA) em seu segundo mandato, Emmanuel Tourinho foi presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) e é membro do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia (CCT).

Ele destacou que os sucessivos cortes nos orçamentos de CTI&E no Brasil estão colocando em risco uma capacidade nacional que foi construída muito recentemente. “Conseguimos desenvolver em 70 anos um sistema robusto que colocou o país na fronteira do conhecimento em muitas áreas, mas hoje tudo isso pode ser perdido”, alertou.

Na Amazônia, a situação se torna mais grave do que no resto do país porque as instituições são poucas, muito jovens e recebem um financiamento público muito menor. “Convivemos com assimetrias históricas na distribuição dos recursos públicos nacionais. A Amazônia contribui com 10% do PIB e não chega a receber mais de 5% dos recursos nacionais para CTI&E”, destacou.

Para ele, os formuladores de políticas públicas nacionais têm uma tendência a ver a Amazônia a partir do que ele chama de “Princípio do Vazio”: consideram-na um território desocupado. “Mas não é. A Amazônia está toda ocupada por povos locais, que têm culturas próprias, que têm visões próprias sobre o que deve ser o seu futuro e que são, inclusive, capazes de nos ensinar sobre como criar um novo modelo civilizacional que respeite as nossas florestas, que possibilite um aproveitamento sustentável das nossas riquezas naturais.”

A falta de recursos diminui a capacidade do país em criar condições de desenvolvimento e de construir expertise local para resolver seus problemas, aumentando a dependência de outras nações. Na avaliação de Tourinho, “há muita gente de fora falando sobre a Amazônia que absolutamente desconhece os desafios socioeconômicos da região, que pressupõe a inexistência de uma competência intelectual instalada aqui. Precisamos juntar as nossas vozes para reverter esse cenário”, conclamou Tourinho.

O reitor afirmou que em todos os documentos de políticas nacionais de CT&I há um capítulo sobre a Amazônia, sobre as riquezas da região e sua importância para o país, mas diz que é tudo retórica. “Nada disso se traduz em políticas públicas que levem em conta a capacidade científica instalada na região, nada disso se traduz em verbas para pesquisa científica e tecnológica na Amazônia. Não precisamos de mais discursos. Precisamos é que as planilhas de distribuição de recursos materializem a prioridade de investimento na nossa região.”

Sanderson de Oliveira: na Amazônia, maior impacto será na formação de professores 

Professor da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), onde lidera do Grupo de Pesquisa Sobre Línguas e Culturas Amazônicas, Sanderson de Oliveira recordou um pronunciamento feito pelo Ministro da Educação em 2019, declarando de forma expressa que o objetivo do MEC naquele mandato seria fortalecer as universidades privadas. “Ora, mais de 80 % dos cursos de licenciatura do Amazonas são ofertados por universidades públicas do interior. Os cortes atingem diretamente essas instituições”, afirmou.

Segundo o pesquisador, o Amazonas ainda está ampliando e fortalecendo sua rede de C&T, trabalhando principalmente na interiorização da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). “O interior começou a formar mestres e doutores recentemente. O principal impacto dos cortes será nessa formação. Vai haver um estrangulamento dessa expansão.”

Oliveira explicou a importância dos cursos de licenciatura: “Não teremos futuros professores de física, matemática, não teremos capacitação de professores indígenas se não tivermos como apoiar os estudantes. Não teremos pessoal qualificado para formar jovens de ensino médio. Vamos retroalimentar uma cadeia de pessoas mal formadas. A expansão dessa rede precisa desses recursos que foram cortados ou contingenciados”, concluiu.

O linguista destacou que a rede de C&T regional estava se consolidando quando, em 2015, foi extinta a Secretaria de Ciência e Tecnologia do Amazonas. Segundo Oliveira, que é atualmente secretário regional da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) para o Amazonas, sem a Secretaria o estado deixou de ter editais, de ter formação de mestres e doutores. “Sem bolsa, os pós-graduandos têm que procurar outras fontes pra sustentar suas famílias. A bolsa Capes está trancada desde o começo de 2021. A situação dos alunos é dramática”, ressaltou.

De acordo com Oliveira, a população percebe essa piora na oferta de oportunidades. “Precisamos agir politicamente. As pessoas precisam de canais para exercer a cidadania. E embora não seja especificamente a função delas, as universidades aqui têm sido atores de mudança social, com projetos que impactam inclusive na renda das populações do interior. Uma bolsa de estudos ajuda uma família, muda vidas. Talvez a gente não esteja sabendo capitalizar a percepção da população sobre isso.”

Camila Ribas: a conservação da Amazônia deve ser tratada como um interesse coletivo 

Doutora em genética e biologia evolutiva pela Universidade de São Paulo (USP), Camila Ribas é curadora da Coleção de Recursos Genéticos e vice curadora da Coleção de Aves do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), onde foi coordenadora do Programa de Pós-graduação (PPG) em Ecologia por três anos, sendo hoje vice coordenadora.

Este é o único PPG no estado do Amazonas que atinge o padrão considerado de excelência (notas 6 e 7) na avaliação da Capes. “O programa recebia, inicialmente, discentes do Sudeste do Brasil.  Ao longo do tempo, passou a receber uma maioria de discentes provenientes de universidades amazônicas. Isso mostra como o sistema estava funcionando, possibilitando formação de qualidade na região. Agora, tudo isso está ameaçado por falta de bolsas e de financiamento para projetos”, lamentou Ribas.  

Uma grande contribuição dos Programas de Pós Graduação (PPGs) amazônicos para a sociedade é a formação de pesquisadores que vão trabalhar nas instituições locais. A capacitação dessas pessoas é diretamente afetada pelos cortes recentes no orçamento para ciência e educação. Segundo Ribas, mesmo com o aumento do sistema no passado recente, a falta de pesquisadores na Amazônia ainda é um problema grave, que tende a se agravar ainda mais agora. “Conservar a Amazônia é indissociável de formar pesquisadores que atuem na região. Não vai haver conservação efetiva de longo prazo se a população amazônica não for envolvida no processo”, apontou a professora.

Camila Ribas apontou que os pós doutorandos que estão hoje nas instituições amazônicas, com formação de excelência em nível mundial, serão os primeiros a ter que ir embora, tanto da Amazônia como até mesmo do Brasil. Pior ainda, muitas pessoas com perfil acadêmico estão desistindo de carreiras em ciência e tecnologia. “Isso é especialmente alarmante na Amazônia. A biodiversidade amazônica ainda é muito pouco conhecida, os números de espécies são altamente subestimados, nós não conhecemos os padrões de distribuição da diversidade nem os processos históricos e ecológicos que geraram e mantêm essa diversidade impressionante e única em equilíbrio”, apontou.  

Ribas destacou que o papel da ciência em diminuir o desmatamento na Amazônia entre 2005 e 2015 foi evidente, e que é preciso retornar a esse caminho o mais rápido possível. “A ciência tem papel fundamental nesse processo, gerando e disseminando informação para proteger os interesses da sociedade brasileira, e não de governos ou empresas que visam proveitos a curto prazo”, alertou. A conservação da Amazônia, de acordo com Ribas, é um interesse coletivo, que precisa ser subsidiado por conhecimento aberto e disponível para a sociedade em geral e para a comunidade acadêmica, com dados abertos e coleções biológicas acessíveis para serem estudadas a curto, médio e longo prazo.

Alfredo Lopes: união, comunicação e ação política 

Para o escritor e filósofo Alfredo Lopes, que tem 11 livros sobre a Amazônia e mais de 2 mil ensaios publicados, a ciência e a educação são o único instrumento de resistência e mudanças. “Sem isso vamos afundar no caos. O caos já está instalado no incentivo à violência, no Brasil Pátria Armada.”

Lopes falou citou duas das maiores instituições de pesquisa da região: o Inpa, em Manaus, que vai fazer 70 anos, e o Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), que fez 155 anos. “São instituições paradigmáticas, que traduzem o acervo de conhecimentos sobre a região amazônica, construído a duras penas”, avaliou. 

No entanto, a situação no Inpa, em termos de recursos humanos, por exemplo, é crítica. Os antigos pesquisadores estão se aposentando e não há reposição. “Entre 100 e 120 pesquisadores tiveram que se afastar compulsoriamente nos últimos dez anos. O último concurso foi em 2012, quando apenas 12 pessoas foram contratadas. O orçamento está reduzido a 50 milhões de reais por ano. Os cortes de bolsas afetam desde o Pibic [programa de iniciação científica] até o pós doutorado. Os melhores pesquisadores estão tendo que considerar deixar o país”. Para Lemos, esses dados evidenciam a perspectiva de morte por estrangulamento.

Para o escritor amazonense, matar a ciência é matar a esperança. “É desestimular os potenciais cientistas que estão hoje no ensino básico sem acesso a experimentos. Fica cada vez mais difícil atrair interessados”, observou Lopes. Ele avalia que é uma questão de sobrevivência enfrentar esse desafio e que o principal foco para o Brasil sair do buraco deveria ser a mudança de prioridades. “Não é admissível um corte de 600 milhões de reais em CTI&E num país que mantém um orçamento paralelo de mais de 5 bilhões para assegurar os negócios dos políticos governistas.”

Adalberto Val: “Sem ciência não há futuro, não temos perspectiva” 

O vice-presidente da ABC para a região Norte reconheceu que é preciso muito trabalho de comunicação para compartilhar com a sociedade o que a ciência amazônica produz, como é o trabalho dos cientistas. “Precisamos colocar no colo da sociedade o que fazemos. Ciência tem dois insumos básicos: recursos humanos, ou seja, gente capacidade e recursos financeiros para apoiar o desenvolvimento científico e tecnológico. Sem gente qualificada, não conseguimos fazer ciência. Sem dinheiro, também não.”

E pelo que foi dito na mesa-redonda, parece haver um terceiro insumo básico atualmente: a capacidade de comunicação com a sociedade. Sigamos juntos, cada vez mais unidos, por esse Brasil forte e pujante que queremos.


Veja as iniciativas propostas durante o evento!

Assista a mesa-redonda na íntegra aqui.