Confira trechos da reportagem especial feita por Herton Escobar, publicada pela Revista Piauí no dia 8 de outubro. A reportagem aborda a fuga de cérebros e a precarização da ciência nacional, trazendo relatos de diversos cientistas, entre eles o membro afiliado Eduardo Zimmer, a membro titular Mercedes Bustamante e a vice-presidente da ABC Helena Nader.

 

Toda sexta-feira à tarde, o bioquímico Eduardo Rigon Zimmer se reúne com seus alunos para discutir projetos, debater ideias e jogar um pouco de conversa fora, entre goles de chimarrão. É uma tradição que ele cumpre com prazer há quase quatro anos, desde que passou no concurso para professor adjunto e inaugurou seu próprio laboratório. São encontros de trabalho, mas que acontecem em clima de happy hour e reúnem mais de cinquenta jovens, incluindo alunos de graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado, oriundos de várias disciplinas: bioquímica, biomedicina, medicina, ciência da computação, farmácia. “Tem sempre uma grande camaradagem nesses encontros. É o momento em que as mentes se conectam”, conta Zimmer, de 36 anos, um jovem prodígio da neurociência brasileira. Seu laboratório, instalado no Departamento de Farmacologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), dedica-se ao estudo de processos patológicos relacionados a doenças neurodegenerativas – em especial, o Alzheimer.

As coisas corriam bem até que, no segundo semestre do ano passado, Zimmer observou que a “gurizada” – como ele se refere carinhosamente aos alunos, apesar de não ser tão mais velho que eles – andava meio cabisbaixa. No lugar dos sorrisos e da efervescência natural das reuniões, transformadas em encontros virtuais por causa da pandemia, começaram a surgir sinais de desânimo, irritação e indignação com a falta de perspectivas para a ciência no Brasil. Em setembro do ano passado, ao final de uma reunião particularmente “horrível”, Zimmer quis entender o que estava acontecendo e convidou quatro alunos para conversar individualmente. Foi quando veio o baque: “Os quatro me disseram que queriam ir embora do Brasil”, lembra Zimmer. Não era blefe. Hoje, passado um ano daquela reunião, 6 dos 19 pós-graduandos do laboratório já partiram ou estão de saída marcada para o exterior – 2 para a Suécia e 4 para os Estados Unidos.

Em outros tempos, não muito distantes, enviar alunos para o exterior seria motivo de comemoração. Experiências internacionais são um componente valorizado na formação de qualquer cientista, tanto do ponto de vista técnico quanto cultural. O problema é quando as pessoas vão embora sem expectativa de retorno, motivadas mais por uma desilusão com o próprio país do que pela experiência que esperam agregar às suas carreiras no exterior – que é o que está acontecendo agora. “Essa rapaziada está indo embora com outra cabeça, sem intenção de voltar”, lamenta Zimmer. “Aquela vontade de ir para fora, para depois retornar e arrebentar aqui no Brasil, não existe mais. É muito nítido isso.”

É uma história que se reproduz em laboratórios e universidades Brasil afora. A tão temida “fuga de cérebros”, que cientistas vêm anunciando como um risco premente há pelo menos cinco anos, finalmente se materializou. Uma espécie de hemorragia intelectual aguda, que pode deixar sequelas profundas na já combalida ciência nacional, se não for estancada a tempo. Não há estatísticas que permitam diagnosticar com exatidão o tamanho desse êxodo – ou diáspora, como alguns acadêmicos preferem chamar –, mas o problema é palpável onde quer que se vá, em qualquer universidade ou instituto de pesquisa que dependa de recursos públicos para produzir ciência. “A fuga de cérebros é muito real e já começou há alguns anos, mas agora está virando uma avalanche”, diz o neurocientista Sidarta Ribeiro, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). “Tenho dois ótimos ex-alunos de doutorado que migraram para fazer o pós-doutorado e, do jeito que a coisa está indo, possivelmente não voltarão nunca mais.”

Motivos para ir embora não faltam. Faz oito anos que os investimentos públicos na área de ciência e tecnologia só encolhem, e muito. Levando-se em conta todos os gastos do governo federal nesse campo estratégico, envolvendo os diversos ministérios com alguma atuação no setor, o retrato é um desastre: de 2013 para 2020, o investimento encolheu 37%, segundo um levantamento da economista Fernanda De Negri, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), órgão vinculado ao Ministério da Economia. Em valores corrigidos pela inflação, a área da ciência e tecnologia no Brasil recebeu menos recursos em 2020 do que em 2009; e os orçamentos deste ano do MEC e do MCTI são ainda menores do que os do ano passado. São doze anos de retrocesso.

Debulhando os números: o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), que deveria ser a engrenagem mais sólida do sistema, perdeu 52% do orçamento entre 2013 e 2020, voltando ao patamar de duas décadas atrás, quando o número de pesquisadores ativos no país era um quarto do atual. O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), principal agência de apoio à pesquisa do país, vinculada ao MCTI, perdeu 90% do seu orçamento de fomento em dez anos, passando, em valores atualizados, de 263 milhões de reais em 2010 para apenas 24 milhões no ano passado, de acordo com  dados fornecidos pela própria agência e já corrigidos pela inflação. O Ministério da Educação (MEC), outra peça-chave do sistema, sofreu corte de 50% entre 2013 e 2020, segundo De Negri.

Com tantos cortes e reduções, a oferta de bolsas de pesquisa também diminuiu. No CNPq, o número de bolsas pagas, que chegou a ultrapassar 100 mil no auge do programa Ciência sem Fronteiras entre 2014 e 2015, retornou ao seu patamar anterior, de 80 mil, e ali permanece imóvel desde 2017, sob ameaça permanente de novos cortes. A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), órgão do MEC que regulamenta e financia a pós-graduação no país, também teve seu orçamento ceifado e eliminou mais de 8 mil bolsas em 2020, de acordo com um levantamento da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

O número de alunos matriculados na pós-graduação, por outro lado, nunca parou de crescer – o de doutorandos mais do que triplicou nas últimas duas décadas, de 33 mil para 120 mil, segundo dados reunidos por Odir Dellagostin, professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e presidente do Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (Confap). Consequentemente, a parcela de alunos de doutorado contemplados com bolsas da Capes caiu de 42% em 2015 para 36% no ano passado. No pós-doutorado, a mesma situação: o número de bolsas fornecidas pela Capes e pelo CNPq no ano passado foi 35% menor do que em 2015, enquanto o número de doutores titulados cresceu 35% no mesmo período.

No sistema brasileiro de ciência e tecnologia, onde a maior parte das pesquisas é feita por alunos de pós-graduação em universidades públicas, o corte de bolsas não é apenas a interrupção de uma ajuda de custo. Equivale à demissão de um funcionário de uma fábrica, pois os alunos que se dedicam à pesquisa não conseguem exercer outras atividades remuneradas a fim de garantir o seu sustento. Para piorar a situação, o valor desses “salários” está congelado desde 2013: é de 1,5 mil reais mensais para mestrado, 2,2 mil para doutorado e 4,1 mil para pós-doutorado.

O que sobra dessa enxurrada de números é um cenário de escassez extrema, com cada vez mais gente dependendo de um volume cada vez menor de recursos para sobreviver. Se o orçamento federal de ciência e tecnologia fosse um prato de comida, a maior parte dos cientistas brasileiros estaria desnutrida.

Mas isso não é tudo. Além dos já clássicos desafios de se fazer ciência no Brasil – como o excesso de burocracia e a demora para a importação de insumos básicos de pesquisa –, várias outras perturbações entraram em cena desde o início do governo de Jair Bolsonaro: a pregação obscurantista, o negacionismo científico e os constantes ataques às universidades. É uma tempestade perfeita, capaz de afugentar para longe até o mais patriota dos cientistas.

“Não é só a falta de dinheiro, é o desgaste do combate”, desabafa a bióloga Mercedes Bustamante. Aos 58 anos, professora titular da Universidade de Brasília (UnB) e com uma carreira bem consolidada em ecologia e biodiversidade do Cerrado, ela não pensa em deixar o país, mas sente na pele o sofrimento dos alunos com a falta de recursos e os constantes ataques de Bolsonaro à área ambiental. “Falta de dinheiro a gente já enfrentou, mas não ficava levando tapa na cara e sendo atacada o tempo todo”, diz ela. “Esse sentimento, nenhum número transcreve.”

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A explicação do governo para cortar e contingenciar recursos é sempre a mesma: crise econômica e falta de dinheiro. Na verdade: conversa fiada e falta de visão, segundo os especialistas em política científica. Os países desenvolvidos – e aqueles em desenvolvimento que sabem o que é bom para eles – investem mais em ciência e tecnologia em períodos de crise, e não menos. Muito do crescimento econômico recente da China e da Coreia do Sul, por exemplo, decorre de investimentos pesados e constantes em pesquisa científica e desenvolvimento tecnológico. As grandes potências do mundo investem mais do que 2% do PIB em ciência e tecnologia, comparado a cerca de 1% no Brasil. Em 2018, Bolsonaro foi eleito com a promessa de priorizar investimentos no setor e dizia que iria aumentar esse porcentual para 3%. Fez o oposto: dentre todas as pastas que perderam recursos no orçamento deste ano, o MCTI foi o que sofreu o maior corte, 29%.

Além disso, o dinheiro existe. O Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), criado ainda na década de 1960, recebe todos os anos bilhões de reais em contribuições obrigatórias de grandes setores da economia, como petróleo e energia. Por lei, os recursos deveriam ser destinados exclusivamente para o financiamento de projetos na área de ciência e tecnologia. Mas, em vez disso, as verbas do fundo têm sido sistematicamente sequestradas pelo próprio governo para ajudar no superávit fiscal. Entre 2010 e 2020, segundo especialistas do setor, mais de 26 bilhões de reais do FNDCT foram contingenciados – ou seja: ficaram retidos. Resultado: todo esse dinheiro, que era da ciência por direito, nunca chegou aos cientistas. No orçamento de 2021, 90% dos recursos de fomento previstos para o FNDCT foram novamente contingenciados pelo Ministério da Economia.

“Os estragos que estão sendo feitos na educação e na ciência do Brasil são muito, muito profundos”, diz a pesquisadora Helena Nader, professora titular da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), presidente de honra da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e vice-presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC). Mesmo que Bolsonaro seja derrotado em 2022, e um governo um pouco mais preocupado com a ciência assuma seu lugar, ela acredita que levará anos – talvez décadas – para reconstruir tudo o que foi destruído. “Não estão acabando só com o hoje, estão acabando com o amanhã.”

Assim como tantos outros pesquisadores seniores, Nader viu vários de seus alunos deixarem o Brasil nos últimos anos. Mas, pior do que os talentos perdidos para o exterior, diz ela, são aqueles forçados a abandonar a ciência dentro do próprio país, porque não há empregos nem bolsas suficientes para mantê-los na carreira científica. Outro dado dramático, que as estatísticas não conseguem captar, são aqueles jovens que desistem antes mesmo de entrar no ensino superior, desenganados pelo discurso bolsonarista de que as universidades são “para poucos” e não garantem emprego a ninguém. Um sinal preocupante disso é o número de inscritos no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2021, a porta de entrada para a universidade: em treze anos, nunca houve tão poucos inscritos. A queda mais acentuada se deu entre alunos pobres, negros, pardos e indígenas. “Mais trágico do que a evasão é a não formação de cérebros”, revolta-se Nader. “As pessoas que a gente deixa de formar não voltam mais.”

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A principal aposta para reverter a situação de penúria orçamentária no curto prazo é a blindagem do FNDCT, o fundo cujos bilhões deveriam ser destinados à ciência. Na virada de 2020 para 2021, a Iniciativa para a Ciência e Tecnologia no Parlamento (ICTP.br), uma superliga de organizações científicas e acadêmicas criada em 2019 para desarmar a implosão do sistema junto ao Congresso Nacional, conseguiu um vitória importante com deputados e senadores. Foi aprovado um projeto de lei, de autoria do senador Izalci Lucas (PSDB-DF), que proíbe o contingenciamento de recursos do FNDCT. Bolsonaro vetou o projeto em janeiro passado, mas os parlamentares derrubaram o veto dois meses depois.

A expectativa inicial era de que, uma vez promulgada, a nova lei destravaria cerca de 5 bilhões de reais, que estavam contingenciados para 2021. Esse volume de recursos representaria um alívio tremendo para o setor, só que, mais uma vez, o governo conseguiu manter a ciência na inanição. Numa manobra política de última hora, articulou para que a derrubada do veto presidencial só fosse publicada no Diário Oficial da União depois da votação da Lei Orçamentária de 2021, criando, desse modo, uma brecha jurídica para atrasar a aplicação das novas regras. Deu certo. A derrubada do veto só foi publicada no DOU no dia 26 de março, um dia depois da votação da Lei Orçamentária. Desde então, o governo vem liberando parte dos recursos contingenciados a conta-gotas e com amarras.

Em junho passado, pressionado pela comunidade científica, o Congresso aprovou um projeto de lei do governo que libera 1,89 bilhão de reais da reserva de contingência do FNDCT, mas apenas na forma de recursos reembolsáveis. Ou seja, o dinheiro servirá apenas para a concessão de créditos a empresas interessadas em desenvolver projetos de inovação. Mas nem isso deve acontecer. Os especialistas no assunto dizem que as condições dos empréstimos são tão pouco atrativas que as empresas não devem se dispor a tomar o dinheiro, especialmente no cenário econômico atual.

No campo dos recursos não reembolsáveis, que poderiam efetivamente irrigar a produção de ciência nas universidades e institutos de pesquisa, a proposta é bem mais modesta. Em meados de agosto, o governo liberou 415 milhões de reais da reserva de contingência do FNDCT para o desenvolvimento de vacinas contra a Covid-19. Depois, enviou um projeto de lei ao Congresso pedindo a liberação de mais 690 milhões de reais, cuja maior parte (560 milhões) deverá ir para o CNPq, que planeja usar o dinheiro para financiar uma série de editais até o fim do ano, incluindo uma nova Chamada Pública Universal, já anunciada em 31 de agosto. Edital mais tradicional da ciência brasileira, a Universal não é realizada desde 2018, por falta de recursos. Mas atenção: a implementação do edital depende da aprovação do projeto de lei, que, até o fechamento desta edição, ainda estava em tramitação no Congresso. Enquanto isso, outros 2 bilhões de reais do fundo seguem contingenciados, sem previsão de liberação.

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Apesar de tudo, o ministro de Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes, tem uma visão otimista da situação. Sempre sorridente, tranquilo e com um discurso de motivação patriota na ponta da língua (“Confie na ciência brasileira”, é um de seus bordões favoritos), o astronauta e tenente-coronel da Força Aérea Brasileira refletiu sobre a fuga de cérebros em uma de suas lives matinais no Instagram, em 23 de junho deste ano. Disse que seu ministério pretende ampliar a oferta de bolsas de pesquisa, não só dentro das universidades, mas também nas empresas, e que isso – aliado a um “financiamento mais estável” – deverá atrair muitos pesquisadores estrangeiros para o Brasil nos próximos anos.

“Já tem muitos cientistas de outros países pretendendo vir trabalhar no Brasil”, disse Pontes. “Isso vai acabar, de uma certa forma, trazendo a reboque aqueles cientistas e pesquisadores brasileiros que foram para o exterior e estão trabalhando lá”, completou. Em tom um tanto jocoso, fez uma previsão sem respaldo na comunidade científica de que pesquisadores brasileiros que deixaram o país logo começariam a reclamar do fato de cientistas estrangeiros estarem ocupando o lugar deles aqui. “Isso é meio chato, mas faz parte”, disse. “Tem que pensar que a ciência é internacional.”

À frente do MCTI desde janeiro de 2019, Pontes é um dos ministros mais longevos de Bolsonaro, mas apita pouca coisa no governo e jamais se contrapõe ao chefe, mesmo quando ele ataca frontalmente a ciência. Na comunidade científica, Pontes é visto mais como um garoto-propaganda do que como um defensor da ciência, apesar de claramente entender a importância desta para o desenvolvimento do país. A piauí procurou o MCTI para comentar sobre a diáspora de cientistas, mas o ministério preferiu não falar.

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