No dia 6 de julho foi realizado a 39ª edição dos Webinários da Academia Brasileira de Ciências, cujo tema foi “Novas Fronteiras em Pesquisas sobre COVID-19” e reuniu os Acadêmicos Daniel Martins-de-Souza, Thiago Moreno e Vivian Vasconcelos Costa. O debate foi moderado pela vice-presidente da ABC, Helena B. Nader. Inicialmente estava prevista também a participação do Acadêmico Helder Nakaya, que não pôde comparecer devido ao nascimento de seu filho.
Com a chegada da pandemia da COVID-19, cientistas do mundo inteiro se debruçaram sobre a doença, investigando os efeitos da infecção no corpo humano e produzindo conhecimento em áreas cada vez mais diversas para encontrar respostas que possam levar ao controle do coronavírus. O objetivo do encontro foi divulgar algumas dessas linhas de pesquisa desenvolvidas no Brasil, destacando a qualidade e o potencial da ciência nacional.
Helena Nader introduziu os palestrantes, chamando atenção para o fato de serem todos jovens pesquisadores, representantes de uma nova geração de profissionais que têm contribuído muito com o desenvolvimento científico do país, muitas vezes em condições pouco ideais.
Estudos translacionais em COVID-19: vírus ancestrais e uma nova geração de antivirais
O professor Thiago Moreno Lopes e Souza é pesquisador da Fiocruz e membro afiliado da ABC. O pesquisador começou apresentando o Sars-Cov-2, suas semelhanças e diferenças em relação a outros coronavírus de mamíferos e a evolução de novas variantes a partir do momento em que o patógeno saltou para humanos.
Moreno explicou que uma diferença crucial entre o novo coronavírus e os vírus da SARS e MERS, que chegaram a causar epidemias em anos recentes, está no fato de que o primeiro tem capacidade de transmissão alta antes mesmo do hospedeiro apresentar sintomas, o que torna a COVID-19 muito mais infecciosa do que as doenças precedentes. A palestra prosseguiu para o ciclo de vida do Sars-Cov-2, ressaltando quais etapas da infecção celular constituem alvos validados para inibição da replicação viral.
Com relação à patogênese – que significa detalhar a origem e o desenvolvimento de uma doença, com todos os fatores incluídos nela – o professor fez uma rápida caracterização das diferentes fases de infecção. Visando identificar fatores que pudessem estar relacionados ao desenvolvimento da forma grave da doença, os pesquisadores compararam amostras de pacientes que estiveram nesse estágio e descobriram uma alta expressão do retrovírus endógeno K (HERV-K), ou seja, “um vírus ancestral que infectou o genoma humano quando humanos e chimpanzés estavam se dissociando na escala evolutiva. Alguns desses elementos genéticos estão presentes nos nossos cromossomos. Muitos ficam silenciosos durante a maior parte da vida, mas parece que de alguma forma o Sars-CoV-2 reativou esse retrovírus ancestral”, explicou o cientista. O índice de morte em pacientes graves de COVID-19 chega a 50% entre os que apresentam altos níveis de HERV-K. Essa maior presença retroviral pôde ser identificada no trato respiratório inferior de pacientes graves e está associada a uma menor resposta anti-inflamatória. Foi descoberto também que o Sars-Cov-2 pode ser o próprio gatilho para esse aumento na expressão do HERV-K.
A segunda metade da palestra focou no desenvolvimento de antivirais eficazes contra o novo coronavírus. O Acadêmico apresentou resultados avançados de testes pré-clínicos, obtidos pela Fiocruz em colaboração com o Centro de Inovação e Ensaios Pré-Clínicos (CIEnP) e com a empresa Microbiológica LTDA, ressaltando que testes clínicos já foram solicitados junto a Anvisa. A experiência com esses possíveis antivirais mostra que, no período de um ano, é possível avançar da identificação de possíveis moléculas candidatas até à realização de testes mais avançados com pacientes.
Modelos virais para estudo de infecções respiratórias por coronavírus em ambientes de menor segurança laboratorial
Vivian Vasconcelos Costa é professora adjunta da UFMG e membro afiliada da ABC. A pesquisadora apresentou seu trabalho de obtenção de modelos virais que permitam estudos iniciais de infecções respiratórias por coronavírus em laboratórios com nível de segurança menor que NB3 – o penúltimo dentre os quatro níveis de biossegurança estabelecidos. O nível de biossegurança de um experimento é determinado segundo o organismo de maior classe de risco envolvido no experimento. Foi utilizado o Vírus da Hepatite Murina (MHV), pertencente ao mesmo gênero do Sars-Cov-2.
Apesar de o MHV ser diferente em muitos aspectos do novo coronavírus, existem similaridades importantes na patogênese de ambos, o que permite que resultados obtidos para o primeiro possam guiar pesquisas com o segundo. Os testes foram feitos a partir da infecção intranasal de camundongos, e mostraram que o MHV gera reações semelhantes às da COVID-19 no organismo hospedeiro, incluindo inflamações pulmonares causadoras de complicações respiratórias.
A professora apresentou também resultados obtidos com a inibição da citocina TNF-alfa. Essa molécula é responsável por desencadear um processo de morte celular que contribui para o agravamento de diversas doenças infecciosas. Utilizando o modelo MHV, foi possível detectar uma correlação entre a infecção pelo vírus e um aumento na produção da TNF, contribuindo para uma piora na condição dos animais testados. Tratamentos inibidores da ação dessa citocina se mostraram eficazes.
O próximo passo foi investigar se o mesmo era verdade para a infecção pelo novo coronavírus. A partir de colaboração com a Fiocruz, em laboratórios com níveis de segurança adequados para esse patógeno, foi possível testar os tratamentos inibidores de TNF em células pulmonares infectadas com Sars-Cov-2. Os resultados foram similares aos obtidos contra MHV, demonstrando a validade do modelo e a possibilidade de conseguir respostas preliminares que podem ser posteriormente verificadas no tratamento da Covid-19.
Efeitos do coronavírus no cérebro
O professor Daniel Martins-de-Souza, livre docente da Unicamp e membro afiliado da ABC, fez uma apresentação de sua pesquisa sobre os efeitos neurológicos da COVID-19. A suspeita de que a doença tinha relação a alterações cerebrais surgiu logo no começo da pandemia, com muitos infectados apresentando perda de olfato.
O primeiro passo foi verificar essa hipótese, para o que foram feitas imagens dos cérebros de pacientes que tiveram sintomas leves. A partir de ressonância magnética de alta resolução foi possível identificar mudanças significativas na estrutura de várias regiões cerebrais. Testes comportamentais também mostraram alterações cognitivas em relação a pessoas sadias, o que corroborava a tese de que a doença deixava sequelas neurológicas.
Para entender como o vírus afetava o cérebro, foram analisados órgãos coletados de pacientes que faleceram. Em parte desses indivíduos foram detectadas alterações significativas no tecido cerebral e também a presença do vírus, sobretudo nos astrócitos, células neurológicas em forma de estrela amplamente encontradas no cérebro. Uma pergunta que surgiu a partir desses resultados era como o Sars-Cov-2 infectava essas células, visto que elas não possuem a proteína ECA2, que é usada pelo patógeno. Análises posteriores concluíram que a porta de entrada do coronavírus nos astrócítos é a Neuropilina 1 (NRP-1).
Os cientistas do grupo buscaram então identificar as vias moleculares que eram alteradas pela infecção e descobriram que as proteínas diferencialmente expressas nos cérebros infectados estavam relacionadas principalmente ao metabolismo energético e também a eventos neurodegenerativos, levando à morte celular. Essas alterações influenciam nas sinapses – junções entre a terminação de um neurônio e a membrana de outro neurônio, que fazem a conexão entre células vizinhas, dando continuidade à propagação do impulso nervoso por toda a rede neuronal e, consequentemente, alteram as funções cerebrais. Por fim, análises in vitro, mostraram que astrócitos infectados geram um ambiente tóxico que promove a morte de neurônios.
Debate
A vice-presidente da ABC Helena B. Nader agradeceu os palestrantes e abriu o debate com as perguntas dos internautas.
Respondendo sobre o custo e eficácia dos antivirais, Thiago Moreno afirmou que essas substâncias geralmente possuem um custo baixo e que tudo aponta para que uma combinação de diferentes moléculas consiga os resultados mais efetivos. Quanto aos mecanismos que levam à expressão do HERV-K, o professor salientou que isso ainda está sendo estudado, mas adiantou que alterações epigenéticas, isto é, as variações não-genéticas que são transmitidas de uma geração para outra, parecem estar envolvidas. Vivian Vasconcelos complementou que, em relação aos anti-TNF, essas não são drogas baratas, mas que poderiam ser uma alternativa a ser usada em conjunto com antivirais para desenvolvimento de novas terapias.
O acadêmico Hernan Chaimovich pediu a palavra, parabenizando então os palestrantes pelo trabalho num ambiente de corte de verbas e perguntando sobre o desenvolvimento de sprays antivirais. Thiago Moreno e Daniel Martins-de-Souza explicaram os problemas que surgem nas pesquisas com esse tipo de fármaco, ressaltando que esforços nesse sentido estão sendo feitos e que podem obter resultados futuramente. Também comentaram sobre as dificuldades de fazer ciência no Brasil e agradeceram pelo trabalho daqueles que buscam junto ao poder público uma maior atenção para a produção de conhecimento no país.
Respondendo à pergunta de uma internauta sobre a capacidade do coronavírus de infectar animais, Vivian Vasconcelos citou trabalhos da literatura que apontam para a possibilidade de cães e gatos serem contaminados, ressaltando que ainda não se pode afirmar que isso constitui um risco para saúde pública. Com relação a reprodução da trombose pelo modelo MHV, como é sabido que ocorre em alguns pacientes de COVID-19, a professora explicou que dados preliminares indicam que sim, porém ressaltando que os animais tendem a sucumbir antes do problema se desenvolver mais e poderem ser verificada lesões maiores.
As perguntas finais focaram na questão de fármacos e vacinas e os convidados ressaltaram que muitos questionamentos ainda não podem ser respondidos com o conhecimento que possuímos hoje.
As considerações finais foram no sentido de valorizar a ciência brasileira, sendo o evento encerrado pela Acadêmica Helena Nader. Ela fez um apelo às autoridades para que contribuam com os pesquisadores brasileiros e busquem diminuir o problema da fuga de cientistas do Brasil em busca de melhores condições no exterior.