Leia artigo da Acadêmica Débora Foguel, professora titular do Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis da Universidade Federal do Rio de Janeiro, publicado em 25/01:
Em 1990, o antropólogo e médico americano Merrill Singer ajudou a expandir o conceito em saúde pública denominado de sindemia, tema do nosso primeiro artigo do ano de 2021.
Segundo Singer, existem interações mutuamente agravantes e que se retroalimentam e se somam entre os problemas de saúde e o contexto social e econômico das populações onde a desigualdade é um fator determinante. Certamente, essas interações e inter-conexões serão determinantes para desenharmos prognósticos, tratamentos e mesmo políticas públicas em saúde para o enfrentamento de determinadas doenças, incluindo a pandemia que enfrentamos no momento. Portanto, o enfrentamento de uma sindemia requer soluções comuns para endereçar os vários vetores que contribuem para as mesmas.
Para ilustrar esse conceito, cito o problema da Obesidade, Desnutrição e das Mudanças Climáticas (aqui abreviado como ODMC), tema de um relatório recente da prestigiosa revista Lancet lançado em janeiro de 2019 (Swinbum BA e colaboradores). O problema da ODMC foi chamado e tratado nesse relatório como uma Sindemia Global. Para tal, os autores se debruçaram sobre as inter-relações existentes entre esses três problemas e na urgência de soluções comuns para os três. Apenas para exemplificar algumas dessas inter-relações apontadas no relatório, a insegurança alimentar severa e a fome (componente Desnutrição) certamente estão associadas à baixa prevalência de Obesidade nas populações. Entretanto, uma insegurança alimentar de leve a moderada está paradoxalmente associada ao aumento da obesidade em populações vulneráveis. Ou seja, dessa forma, a desnutrição acaba por estar relacionada à incidência de obesidade nesse contexto.
Problemas com safras de alimentos, diminuição na produção de comida, eventos climáticos extremos (secas, enchentes) e o consumo de alimentos ultra-processados e não saudáveis (cultivados de forma pouco comprometida com o uso racional da terra) comporiam o vetor ambiental do problema, já que, juntos, agravam a Obesidade e a Desnutrição da população. Fica, portanto, estabelecida a inter-relação entre os três problemas, segundo o relatório. Vale a pena destacar que a Obesidade, por exemplo, está associada a outras doenças graves como hipertensão, diabetes, doenças cardiovasculares e respiratórias crônicas e câncer, o que agrava ainda mais essa comorbidade.
Daí é que surge o conceito de sindemia, onde alguns fatores isolados se somam a outros fatores pré-existentes, exacerbando sobremaneira o efeito de cada doença/problema em separado. Para tratar sindemias de forma efetiva, apenas soluções múltiplas e integradas.
Embora as responsabilidades dos países ricos e pobres na Sindemia Global de ODMC precisariam ser mais discutidas e melhor atribuídas aos diferentes atores, pensar nesses desafios de forma combinada e integrada é aconselhável, já que soluções comuns e globais seriam necessárias para a real solução do problema.
(…)
Recentemente, a revista Lancet novamente trouxe à tona o conceito de sindemia, agora aplicada à pandemia causada pelo SARS-CoV-2. De fato, o que assistimos é que pessoas com comorbidades (obesidade, câncer, doenças cardíacas e respiratórias etc), os idosos, as minorias étnicas, certos grupos raciais e determinado grupo de trabalhadores (os mais expostos e com menos proteção social) e a própria pobreza aumentam os riscos dessas pessoas para a COVID-19, bem como para seu pior desfecho. Ou seja, certos padrões sociais exacerbam os riscos e o prognóstico da COVID-19. Sendo assim, precisaríamos enfrentar a COVID-19 com uma visão mais moderna e integrada, uma visão sindêmica, caso almejemos ter mais sucesso nesse enfrentamento. Isso demandaria que olhássemos também para todos esses fatores de forma conjunta e buscássemos soluções para eles também.
Nessa visão sindêmica, um programa de vacinação em massa vai nos livrar, certamente, ao longo do tempo, do novo coronavírus. Mas vai deixar essas mesmas populações vulneráveis e mais castigadas pelo novo coronavírus como suas doenças de base e com seus problemas econômicos e sociais sem tratamento e ainda predispostas a novas pandemias. Ou seja, precisamos, sim, combater esse vírus, mas também as comorbidades e as iniquidades profundas que nos deixam mais ou menos atraentes para esse vírus ou outros patógenos. A vacina precisa ser um dos passos para esse enfrentamento, jamais o único.
Além disso, é urgente mostrarmos de forma clara às nossas crianças nas escolas, aos nossos jovens e as pessoas de forma geral, como tudo no planeta está interligado: vivemos numa teia com fios frágeis entrelaçados e escorados uns nos outros! É mister que deixemos claro como nosso desrespeito ao meio ambiente e à natureza, como a nossa forma nada humilde de não nos entendermos como um dos fios dessa imensa teia vai nos levar a experimentar novas pandemias, sofrimento, dor e morte. Desculpo-me pelo tom lúgubre, mas não encontro outro como alerta.
Concluindo, podemos dizer que o tratamento da COVID-19 requer uma visão mais ampla e políticas públicas que englobem a educação, emprego, moradia, meio ambiente e alimentação. Certamente, esta visão holística implica em soluções complexas e que vão requerer investimentos, além do envolvimento e da visão solidária e articulada de diversos setores da sociedade, como especialistas, acadêmicos, políticos e governos, além, certamente, de representantes das comunidades.
Esse “remédio” integrado talvez seja a única forma de não estarmos daqui a alguns anos, novamente assistindo a novos patógenos adentrarem nossas vidas e ceifarem a vida de muitos, em especial dos mais pobres e vulneráveis.
Que tudo que vivemos ao longo de 2020 nos traga energia e garra para sairmos da inércia e nos impulsione na direção desse objetivo! Afinal, estamos vivendo uma sindemia!
Feliz Ano a todos!
Leia o texto na íntegra no blog Ciência e Matemática de O Globo.