O Painel Científico para a Amazônia (SPA, na sigla em inglês) é uma iniciativa da qual a Academia Brasileira de Ciências (ABC) é parceira e cujo presidente, Luiz Davidovich, integra o Comitê Estratégico. Diversos membros da ABC fazem parte do Comitê Científico, que envolve 180 cientistas de vários países.

Como parte da iniciativa “A Amazônia que Queremos” (saiba mais aqui), foi organizado um webinário, no dia 3 de setembro. Para abordar o tema “Solutions to Scale Green Sustainable Development in the Amazon”, foram convidados como palestrantes o Acadêmico Carlos Nobre, codiretor do SPA; o copresidente da Natura e membro do Comitê Estratégico do SPA, Guilherme Leal; a vice-presidente de comunicação, marketing e sustentabilidade da Natura, Andrea Alvares; e os membros do SPA Susanna Hecht, geógrafa da Universidade da Califórnia, o economista da USP Ricardo Abramovay e o líder indígena e geógrafo Gasodá Suruí. As apresentações focaram no desenvolvimento sustentável e na bioeconomia para a região amazônica.

Pelo desenvolvimento sustentável, de construção e de conhecimento

O Acadêmico Carlos Nobre iniciou sua fala destacando uma declaração do líder Kayapó e ambientalista Raoni Metuktire, publicada em 2/9 no jornal The Guardian, alertando para o tipo de desenvolvimento que está acontecendo na região Amazônica, pautado na destruição. Nobre observou que, de fato, nos últimos 50 anos o modelo de desenvolvimento da Amazônia levou à destruição massiva da floresta tropical e plantou a pobreza em toda a região. “O que nós, cientistas e outros cidadãos envolvidos neste Painel, é outro tipo de desenvolvimento: sustentável, de construção e de conhecimento.”

Em sua visão, é urgente elaborar um plano de construção sustentável, envolvendo diferentes conhecimentos e baseado na interdisciplinaridade, para termos uma floresta protegida e desenvolvida. “Apreciamos a estratégia de sobrevivência dos indígenas por 13 mil anos preservando os ecossistemas. Muitas evidências que mostram que a nova bioeconomia pode ser inclusiva e lucrativa para os povos da Amazônia e para o Brasil, mantendo a floresta em pé e desenvolvendo as indústrias do açaí, do cacau e das castanhas brasileiras, com grande potencial ainda subaproveitado”, ressaltou.

A pandemia aumentou o risco para as sociedades indígenas. “A ciência e as populações tradicionais vêm apontando para a necessidade de restaurar o equilibro ecológico e de garantir a proteção de todas as florestas tropicais especialmente a Amazônia”, alertou o Acadêmico.

Natura vê a Amazônia como uma só vida, interdependente

O copresidente da empresa de cosméticos Natura, Guilherme Leal, contou que a empresa nasceu há 51 anos, numa garagem em São Paulo. Hoje, a Natura & CO comprou a Avon, a Bodyshop e outras empresas do ramo.

Sua experiência na região Amazônica foi construída sobre valores de interdependência entre todos os seres vivos e de conservação da riquíssima biodiversidade. Para Leal, as empresas devem ser agentes de mudanças positivas para a sociedade. “A prosperidade e longevidade delas estão conectadas ao seu impacto positivo”, ressaltou.

Estes compromissos têm que ser fato e não só fala. Leal relata que a Natura fez muitos movimentos para difundir esses valores, inclusive criando, em 1998, o Ethos Institute for Responsible Business. “Para honrar nosso nome, Natura, e nossa origem, o Brasil, há mais de 20 anos começamos a fazer essa exploração sustentável de produtos da biodiversidade amazônica, levando prosperidade às comunidades envolvidas”, contou.

A conclusão que Guilherme Leal tirou dessa experiência é que é difícil e desafiador para uma empresa explorar de forma sustentável a riqueza da região, mas é possível. “É necessário envolver boas empresas, a academia, as comunidades e os empresários locais, assim como líderes políticos em todos os níveis, para desenhar um novo futuro para a Amazônia.”

Fazendo conexão com a fala de Nobre, a floresta é resultado de dez mil anos de interação entre o homem e a floresta. “A economia da destruição não teve bons resultados. Temos que construir uma rede de vida, como disse Fritjof Capra.”

Conectando interesses com os mesmos princípios

Andrea Alvares, da Natura, focou sua apresentação em soluções sistêmicas para um caminho mais sustentável na Amazônia. “É crucial conectar todas as partes interessadas e promover desenvolvimento local baseado em ciência, inovação e empreendedorismo. É o que estamos fazendo na Amazônia desde a década de 90”, disse Alvares.

Ela mostrou uma linha do tempo com sete destaques. No ano 2000, o lançamento da linha Ekos, vavlorizando a biodiversidade social; em 2007, o projeto SAF Dendê, relacionado ao sistema agroflorestal; em 2011, o lançamento do Programa Amazônia Natura  (PAN); em 2014, a inauguraçao do Ecoparque, um centro tecnológico em Benevides, no Pará; em 2019, o lançamento do programa Amazônia Viva; em 2020, o Compromisso com a Vida 2030, que promove esforços coletivos no sentido do desmatamento ero na região Amazônica até 2025.

Ela deu exemplos, como o desenvolvimento de cosméticos hidratantes partindo da manteiga de ucuuba, substância com altíssimo poder hidratante. “A ucuuba é chamada pelos povos tradicionais de Joia da Amazônia”, disse Alvares. Com base no conhecimento local, a Natura investiu anos em pesquisa e desenvolvimento de produtos, envolvendo 1.100 famílias na colheita sustentável da planta, que estava ameaçada de extinção por exploração predadora.

“Investimos numa boa relação com as comunidades locais, empoderando-as, assim como inovamos no desenvolvimento de cosméticos verdes. Assim, estamos fortalecendo o impacto positivo da ação da empresa. Mas precisamos de ação coletiva para ganhar escala”, ressaltou Alvares.

Sustentabilidade e resiliência

A professora da Universidade da Califórnia Susanna Hecht, geógrafa especializada em desenvolvimento tropical na América Latina e membro do SPA, comentou que as mudanças climáticas provocaram um aumento da temperatura do planeta, como todos sabem. Porém, em seu ponto de vista, “a crise decorrente disso é mais abrangente do que percebemos e estamos lutando para manter o germoplasma da região Amazônica”, afirmou.

O germoplasma é qualquer estrutura de um organismo vivo que possa dar origem a exemplares da mesma espécie, como sementes. No caso, o germoplasma amazônico tem capacidade de gerar muito lucro, como se tem visto com as grandes commodities, como o açaí e a castanha brasileira. “A floresta oferece mais serviços ambientais do que conhecemos. O açaí, por exemplo, tem alto nível de empregabilidade”, disse Hecht. Mas a destruição pelo desmatamento, segundo a especialista, prejudica as cadeias produtivas da região.

Integrada aos sistemas agroflorestais, outra grande riqueza estudada por Hecht é a terra preta Amazônica, produzida com técnicas de uso do solo indígenas há mais de 700 anos. Essas técnicas envolvem o acúmulo de resíduos orgânicos em locais específicos e o uso do fogo na sua carbonização. As terras pretas apresentam elevada fertilidade, com destaque para os altos teores de fósforo, cálcio, zinco e manganês, além dos elevados estoques de carbono orgânico nestes solos, com estimativa até cem vezes superiores aos solos adjacentes.

Hecht destacou também a agroecologia aquática da Amazônia, que é extremamente produtiva como outro aspecto importante do sistema a ser considerado. Em sua opinião, são necessárias tecnologias complexas para garantir a resiliência e a durabilidade socioambiental dos ecossistemas amazônicos.

Sua avaliação crítica envolve o modelo de desenvolvimento baseado em condições de extrema desigualdade; mudanças de uso da terra sendo impostas aos povos da região, com foco na extração de produtos e poucos investimentos locais. “Não há a perspectiva de agregar valor aos produtos, gerando mais renda para a população, apenas de extraí-los. E, principalmente, não há quase nenhum investimento em capital humano”.

Pela integração entre saberes e tecnologias

Professor Sênior do Programa de Ciência Ambiental do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (IEE/USP) e membro do SPA, Ricardo Abramovay destacou que a bioeconomia é um setor em que os Estados Unidos investem 5% do seu PIB, o que significa em torno de um trilhão de dólares. “No Brasil, ela é muito pouco explorada como área de pesquisa, tanto que a literatura sobre bioeconomia das florestas tropicais é muito limitada”, disse o economista.

Ele destacou que essa é uma grande perda, não só pelas oportunidades econômicas já conhecidas, como também das potenciais oportunidades: novos serviços, novos materiais, novas fontes de proteína para sustentabilidade alimentar, novas fontes de energia. “Também é uma grande perda porque a bioeconomia é um pilar para os objetivos do desenvolvimento sustentável, um dos principais meios para que nossa sociedade consiga evoluir para uma economia circular”, apontou Abramovay.

Essa será, em sua avaliação, uma bioeconomia da diversidade – sócio, geo e biodiversidade. Diversidade de territórios, de pessoas, de produtos, de serviços, de mercados. Para o funcionamento dessa bioeconomia da diversidade são fundamentais as condições legais, como direitos de propriedade territorial e propriedade intelectual”, alertou o pesquisador.

“É preciso haver uma integração entre a produção local e indústrias com tecnologia avançada para agregar valor aos produtos nativos. Há grande potencial de sucesso para iniciativas nesse sentido”, disse Abramovay. E deixou claro que considera necessário e desejável que iniciativas da sociedade civil, de cooperação internacional e dos governos estabeleçam metas nessa direção.

Outra estratégia básica citada por Abramovay é o investimento em educação, ciência e tecnologia na Amazônia, para que se tenha uma economia baseada no conhecimento. Segundo ele, “a maior instituição de pesquisa da região Amazônica tem um orçamento de 15 milhões de dólares; a Universidade de Stanford, sozinha, tem um orçamento de 6 bilhões de dólares. Há um grupo de acadêmicos de excelência na Amazônia cujas atividades têm que ser estimuladas com mais investimentos”, declarou.

Abramovay destacou o problema de infraestrutura na Amazônia. Ele avalia que o pensamento dominante sobre este aspecto é extrair commodities em lugares onde as pessoas não tem eletricidade, internet, estrutura sanitária nem acesso a cuidados com a saúde. “A bioeconomia tem condições de fornecer a infraestrutura básica para a população da Amazônia. É uma economia da diversidade, em todos os níveis. São inúmeras as possibilidades.”

Uma das principais conclusões do Painel, na visão de Abramovay, é que a América Latina quer reduzir a distância entre a floresta amazônica e a fronteira científica e tecnológica da bioeconomia. E o SPA está trabalhando nesse sentido.

A visão de dentro

Gasodá Suruí é membro do SPA. É líder do povo Paiter Suruí de Rondônia, da Terra Indígena Sete de Setembro e coordenador do Centro Cultural Indígena Wagoh Pakob. Ele foi o primeiro estudante indígena a concluir o curso de mestrado pela Universidade Federal de Rondônia – no caso, em geografia – e está cursando o doutorado.

Ele relatou que, há 20 anos, o ingresso de um indígena na universidade era um grande desafio. “Hoje entram 10 a 15 suruís na universidade por ano. Isso é uma conquista”, afirmou. Em seu discurso, no qual não existe a primeira pessoa do singular, apenas do plural, ele diz que “estamos buscando melhores condições de vida para o nosso povo, queremos ter nossos pesquisadores dentro das universidades para contribuir com nosso pensamento, nossa visão de futuro para toda a sociedade em que estamos integrados”.

Gasodá destacou que o repasse do conhecimento deles ocorria apenas na base da oralidade. “Hoje, publicamos o que aprendemos com nossos pais e nossos avós junto com o que aprendemos na universidade. O que nós, povos indígenas, pensamos sobre a nossa vida já se torna público”, acentuou.

Para o líder do povo Paiter Suruí, o que falta agora é reconhecimento, escuta, do resto da sociedade sobre aquio que eles dizem que precisam.   “Precisamos ter nosso território garantido e ter nossa cultura valorizada e respeitada. E quando dizemos isso, é porque precisamos de fato disso pra viver”, afirmou. Gasodá lembrou que, antigamente, as terras indígenas não eram demarcadas, não eram reconhecidas pela sociedade. “Hoje, criamos um plano de gestão do nosso território, temos um manual para orientar o povo Paiter – não tanto os de hoje, mais os do futuro – sobre como temos que cuidar do nosso território. Isso foi feito a partir de diagnósticos etnoambientais participativos”, disse o doutorando.

Ele contou que foram criados vários projetos que estão sendo executados, como a formação de grupos de agentes ambientais indígenas. Estes são pessoas indígenas que trabalham diretamente com a fiscalização do entorno da área da terra indígena. “Cuidamos dos recursos naturais da floresta, que temos que proteger, para garantir nossa alimentação e nossa saúde”, reiterou.

Gasodá Suruí conhece o valor de seu povo e de sua cultura, que considera sempre parte de um  todo. “Isso que nós, povos indígenas, fazemos pelo planeta, especialmente pela floresta em pé, é bom não só pra nós, mas para todo o mundo, para o equilíbrio das mudanças climáticas, para garantir o bem viver de cada um. Estamos publicando isso, nossas publicações, escritas por pesquisadores indígenas. Não é mais como antigamente, que as pessoas de fora vinham e escreviam o que queriam sobre nossos povos. Hoje somos nós que estamos escrevendo nossa própria história”, destacou o geógrafo.

Ele acredita num diálogo de construção e de reconhecimento de todos, da universidade, do governo e das organizações que trabalham direto com as questões indígenas. “Queremos pensar o futuro do nosso povo de maneira coletiva. O conhecimento dos povos indígenas é importante para a sociedade brasileira, assim como também é importante para a vida do povo indígena”, reforçou Gasodá Suruí. Em sua percepção, esse pensamento vale para outras comunidades tradicionais, com os quilombolas, por que ele acredita que as culturas de todos os povos são importantes e abrangem conhecimentos em educação, saúde, meio ambiente.

“E por que eu estou dizendo isso? Porque hoje, em meio à pandemia, nós estamos enfrentando o vírus com a nossa medicina tradicional. Muitos estão se curando com a nossa medicina, muitos casos graves não estão precisando ir para a cidade”, relatou. E apontou uma questão importante: “A gente ainda não sabe como curar esse mal em cada povo, nem se vai haver uma solução única para todos os povos”

Finalizando sua intervenção, Gasodá reforçou:  “Estou feliz por fazer parte do Painel. A cada dia estamos conquistando nosso espaço. Eu fico feliz com essa conquista, por estar contribuindo com o nosso conhecimento, porque precisamos conhecer um ao outro”, concluiu.

 

Confira a gravação do webinário: