O impacto da pandemia na saúde mental: este foi o tema da sétima edição dos Webinários da ABC: Conhecer para Entender, na série sobre o mundo a partir do coronavírus, realizada em 19 de maio. O presidente da ABC, Luiz Davidovich, foi o apresentador e mediador do debate.

A pandemia provocada pelo SARS-CoV-2, vírus que origina a doença COVID-19, vem causando danos humanos, econômicos e sociais sem precedentes. Por isso, é uma condição particular de estresse que impacta nossas mentes, desorganiza as economias e aumenta o risco de desenvolvimento de transtornos mentais.

Ainda que a síndrome respiratória aguda seja sua principal característica, outros órgãos, como o cérebro, também podem ser afetados, de forma direta ou indireta. A COVID-19 nos coloca face ao desamparo humano fundamental, na medida em que, pela invisibilidade do vírus, nos sentimos sem qualquer defesa psíquica capaz de nos proteger.

Quais as consequências que podem advir? O que fazer?

Incerteza com o futuro

O médico Jair de Jesus Mari, doutor em Epidemiologia Psiquiátrica pela Universidade de Londres, professor titular e chefe do Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) iniciou o webinário, destacando que a morte é um tema recorrente no cinema e na literatura. “Não tem jeito: a gente sempre perde da morte”.

Ele lembrou que, quando a epidemia surgiu, os governos e sistemas de saúde estavam totalmente despreparados. “Uma molécula microscópica, um RNA conseguiu dominar o mundo, dado o fato de haver infectantes assintomáticos e pelo intenso tráfego internacional”, apontou.

E assim vem ocorrendo esta mudança brutal na vida da população mundial: perda de liberdade, preocupação com as perdas econômicas, sentimentos de raiva, tédio, solidão e desamparo. Além disso, de acordo com Mari, o Brasil está sujeito a uma crise de liderança política, que prejudica as ações a serem tomadas e restringe as possibilidades de se demonstrar indignação.

O isolamento traz muitos problemas e o médico destacou alguns. O convívio diário e contínuo entre as pessoas fez aumentar a agressão e a violência entre familiares; é grande o impacto emocional causado pela impossibilidade de se promover rituais funerários; os jovens que estão iniciando uma faculdade ou uma carreira estão sofrendo com as incertezas futuras. E a desigualdade social causa uma devastação em populações mais vulneráveis, que vivem em condições sanitárias precárias.

“Essa situação provoca medo, relativo ao perigo iminente de contágio, e ansiedade, que é a antecipação dos riscos. A reação ao estresse difere de pessoa para pessoa”, observou Mari. Ele explicou que os indivíduos com baixa ansiedade minimizam o risco de contágio, mantendo um otimismo irreal. Aqueles com alto nível de ansiedade demonstram seu estado por meio de demandas desnecessárias por exames, por estoque de produtos e podem apresentar um quadro de depressão. “Algumas pessoas, portanto, vão se adaptar melhor do que outras à situação”, destacou o palestrante.

A certeza da infecção

As pessoas contaminadas, mesmo as com formas leves da COVID-19, podem ter estados febris, com distúrbios do sono e percepção de muita fadiga, falta de ar e dores no corpo. Esse mal estar generalizado, associado ao necessário distanciamento das famílias dos doentes, também podem provocar medo, desesperança e desespero, especialmente em idosos. “As pessoas com transtorno mental e dependência química, especialmente, ficam muito abaladas pelas medidas físicas de distanciamento. Têm que ser monitorados, medicados e restringidos no acesso à mídia, que pode provocar impactos fortes”, informou Jair Mari.

Os mais afetados, porém, são os profissionais de saúde que estão na linha de frente, trabalhando sob alto nível de exigência física e emocional, sem equipamento adequado de segurança. Mari ressaltou que este grupo está manifestando síndrome de burnout e outros transtornos mentais e precisam ser acolhidos pelas instituições. “O pior da pandemia se dará na saúde mental, porque há um alto índice de fatores estressantes como desemprego, divórcios, suicídios. É uma epidemia paralela, que envolve um aumento de estresse pós-traumático, luto prolongado, depressão, transtornos de ansiedade e de pânico, transtorno obsessivo-compulsivo, abuso de álcool e de drogas”, alertou.

Ele citou um artigo chinês que indica que 35% da população em geral está apresentando sofrimento mental, sendo que os chineses se caracterizam por uma baixa frequência de transtornos mentais. “Nosso sistema de saúde não está preparado para enfrentar esse quadro. Vamos precisar preparar psicólogos para psicoterapias breves  (https://sites.google.com/hcpa.edu.br/telepsi), precisaremos fazer uso intensivo de telemedicina. Será necessário um diálogo muito maior entre as universidades e os formuladores de políticas públicas, especialmente na área de saúde mental, para que se elaborem políticas que possam de fato alcançar e atender à sociedade”, concluiu o webinarista.

Conhecer mais para temer menos

A médica Fernanda Tovar Moll, presidente do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (IDOR), fez estágio de pós-doutorado em neuroimagem e neuroimunologia no National Institutes of Health (NIH), foi professora adjunta do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e foi eleita membro afiliado da ABC para o período 2016-2020.

Para Fernanda Moll, a pandemia de COVID-19 pode gerar consequências neurológicas e psiquiátricas, agudas ou de longo prazo, ainda desconhecidas. Ela abordou a necessidade de aprofundar o conhecimento sobre a doença.

“No Brasil, temos a vantagem de o vírus ter passado antes por outros países e já haver conhecimento construído, mas precisamos entender suas adaptações ao Brasil e contextualizar as ações, dentro da nossa realidade”, observou. Há incertezas epidemiológicas, alta demanda por leitos de isolamento e UTIs, a exposição dos profissionais de saúde, a necessidade de testagem com inteligência.

Moll destaca que a ciência vem dando respostas muito rápidas, completamente multidisciplinar, como o desenvolvimento  de testes diagnósticos em menos de três semanas, o sequenciamento genômico completo do vírus SARS-CoV-2, a publicação da estrutura atômica da proteína spike, um alvo promissor para vacina, a identificação do receptor de entrada de célula ACE2 e o rápido progresso no teste clínico de medicamentos e vacinas em pacientes.  “Mesmo assim, ainda precisamos de mais ciência fundamental e clínica”, apontou Moll, ressaltando que espera que o valor da ciência, evidenciado de forma intensa nesse período, seja reconhecido e mantido na pós-pandemia.

Sobre a COVID-19, a ponta do iceberg foi caracterizá-la como uma doença pulmonar. “Mas já se sabe que ela envolve uma cascata inflamatória que acomete outros órgãos e sistemas, direta e indiretamente”, ressaltou a pesquisadora.

O acometimento do sistema nervoso central, tanto de uma forma aguda como de médio e longo prazo, pode provocar traumatologias tanto psiquiátricas como neurológicas. Ela relatou evidências de lesões vasculares no sistema nervoso central, que atingem também os pacientes jovens, causando AVCs e outras respostas inflamatórias. Moll afirmou que já é sabido que os neurônios podem ser infectados, “mas ainda temos mais perguntas do que respostas. Estamos estudando a fase aguda da doença, pesquisando as características clínicas, cognitivas, de neuroimagem e biomarcadores moleculares para a infecção por SARS-CoV2 no sistema nervoso central. Vamos acompanhar esses pacientes para mapear esses impactos em longo prazo”, explicou.

A médica destacou algumas lacunas no conhecimento existente. O impacto da doença em crianças e grávidas expostas ao novo coronavírus, por exemplo, ainda não foi suficientemente estudado. Moll desenvolve pesquisas sobre o tema em colaboração com pesquisadores do Rio e de São Paulo, e ainda não há indícios de alterações do neurodesenvolvimento fetal tão graves quanto os vistos no caso da zika. “Mas pode haver alterações mais sutis, que só sejam perceptíveis mais tarde”, alertou.

A Acadêmica referiu-se a artigo publicado em parceria com os pesquisadores da UFRJ Fernanda de Felice e o Acadêmico Sergio Ferreira. “Como os mecanismos por trás desses desfechos psiquiátricos e neurológicos acontecem?  É esse o caminho de pesquisa para entender a evolução da doença”, apontou. Porém, Fernanda Moll alerta para diversas evidências de que haverá uma grande onda de consequências neuropsiquiátricas, envolvendo não apenas os pacientes infectados. “Temos que focar também nas pessoas isoladas e os profissionais de saúde, que precisam de políticas mais eficazes de acolhimento e de cuidados médicos”.

Para reduzir o impacto do isolamento social e do burnout dos profissionais de saúde, outra pesquisa do Instituto D’Or está sendo conduzida, com a Universidade de Stanford. Está sendo avaliada a eficácia de intervenções psicológicas autoadministradas, via tecnologia digital, na redução de ansiedade, estados depressivos e na melhoria do bem-estar no contexto da pandemia da COVID-19. Uma parceria entre pesquisadores e a plataforma Dados do Bem coleta dados sobre ansiedade e depressão através de aplicativo para estudo na população em geral.

“Estamos num momento de mais dúvidas do que certezas. Mas, como disse Marie Curie, precisamos conhecer mais para temer menos. Que essa experiência influencie futuras políticas públicas de saúde, para estarmos mais preparados diante de possíveis outras pandemias que venhamos a enfrentar”, concluiu a cientista.

Mensagens conflitantes geram confusão mental e cadáveres

Para tratar desse tema, a Academia Brasileira de Ciências convidou e o médico psiquiatra e psicanalista Joel Birman, professor titular da UFRJ e professor adjunto do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), que fez estágio de pós-doutorado no Laboratório de Psicopatologia Fundamental e Psicanálise da Universidade Paris VII.

Do ponto de vista de Joel Birman, o sentimento de desproteção gerado pela pandemia faz com que sejamos assaltados por angústias primordiais, que promovem diferentes formas de sofrimento e sintomas psicopatológicos. “A política promovida pelo Governo Federal de desacreditar, desprestigiar e desfinanciar a ciência também tem um papel muito negativo na população nesse momento de pandemia”, apontou o psiquiatra e psicanalista.

Birman destacou que o conceito de pandemia deve ser considerado em três dimensões complementares: o vírus, que tem uma dimensão eminentemente biológica; a pandemia propriamente dita, que tem uma dimensão sanitária, econômica, social e até mesmo política e a dimensão das singularidades, que fica em primeiro plano na questão clínica. “A COVID-19 provoca reações muito diversas nas pessoas. Algumas têm grande resistência à infeção e outras têm menos resiliência, e nessas a doença tem efeitos de alta letalidade”, apontou. O psicanalista explicou que isso pode se dar por vários motivos: pela idade, pela existência de comorbidades, pela existência de precariedades sociais múltiplas ou por aspectos especificamente psíquicos, aos quais escolheu se ater.

“Esta dimensão psíquica da pandemia, apesar de psicanalítica, tem um sabor transdisciplinar”, esclareceu Birman. “A forma com que o governo brasileiro está tratando a pandemia é absolutamente destoante do que temos visto no cenário internacional, com raras exceções -como a Bielo-Rússia, a Nicarágua e o Turbequistão, que têm tido posições negacionistas”, disse o médico. Ele destacou que o presidente brasileiro está alinhado a estes países, pois pretende suspender o isolamento horizontal e substituí-lo por um vertical, visando abrir a economia, argumentando que as pessoas iriam morrer mais por falta de trabalho e dinheiro do que pela ação letal do vírus.

Para Birman, fica evidente que a população está exposta, assim, a uma dupla mensagem: de um lado as orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS) e, até pouco tempo, do Ministério da Saúde, e a contra mensagem colocada pelo presidente da República. “Diante dessa experiência, as pessoas entram num estado de confusão mental, por não saber em quem acreditar. Ficam numa ‘terra de ninguém’, entregues a uma incerteza sobre qual é a melhor maneira de enfrentar essa pandemia”, alertou. E ressaltou que os efeitos tangíveis dessa contra mensagem foi um aumento espetacular do número de infectados, assim como um aumento exponencial do número de mortos.

De acordo com o palestrante, uma virose é caracterizada pela invisibilidade.  “Não conseguimos ter uma percepção tangível, por ser uma entidade microscópica. Nosso aparelho psíquico está mal para lidar com um mal invisível; então, ele tenta transformar o que é ausente e invisível em algo que seja visível e tangível para que possa se proteger”, relatou Birman. Em outras palavras, o psicanalista explica que as pessoas transformam angústia em medo, pois contra o medo conseguimos criar defesas psíquicas.

A primeira reação do aparelho psíquico envolve r o sentimento de desamparo com relação a esse inimigo invisível, que pode vir de fora ou de dentro do nosso corpo. “Nos tornamos inimigos de nós mesmos. E o outro também se tornou nosso inimigo, pois não podemos tocá-los, abraça-los, beijá-los, temos que manter uma distância de dois metros das outras pessoas para que a infecção não se propague”, analisou Birman. Ele explicou que a reação de desamparo, porém, existe enquanto acreditamos que a política pública ou que instâncias sociais vão nos proteger da experiência de morte representada pelo mal invisível. “Entretanto, se não podemos contar com nenhuma proteção, nossa reação psíquica não é mais de desamparo, mas de desalento. Eu diria que o que acontece no Brasil hoje, diferentemente da Europa, é que não reagimos mais com desamparo, mas com desalento, porque estamos entregues ao Deus dará, diante da ausência dessa proteção efetiva de uma liderança ou feita pelo Estado brasileiro”, ressaltou o psiquiatra.

Mortos insepultos: mais um fator que provoca sintomas

A partir dessa distinção, Birman repassou os quadros sintomáticos mais comuns que acontecem. A “neurose de angústia”, assim chamada classicamente e denominada em anos recentes pela psiquiatria como “ataque de pânico”, provoca falta de ar e suores frios, diante do temor de morte iminente. “As pessoas que vivenciam esse quadro acreditam que estão com COVID-19 e procuram os serviços de saúde em busca de uma proteção sanitária e terapêutica, se expondo, inclusive, a serem contaminadas em ambientes precários do ponto de vista sanitário”, apontou.

Outra reação importante é o que o psiquiatra chamou de “angústia hipocondríaca”. “Como o inimigo está fora e está dentro, o próprio corpo se transforma num objeto de pavor. A pessoa perde a medida ao interpretar os signos corporais com os quais normalmente convive, porque passa a existir um excesso de percepção sobre eles”. Birman esclarece que, em função da busca de tornar visível o invisível, o indivíduo cria sintomas, acredita que está tendo acometimentos corporais que são, na verdade, de ordem psicossomática. “A pessoa procura sinais na pele, por exemplo, se há alguma erupção que possa indicar a presença mortífera do coronavírus”, esclareceu o médico.

Birman relatou, ainda, o aumento já vastamente registrado de ocorrência de depressões e melancolia, em função do esvaziamento da vida provocado pelo isolamento social. “Perdemos o alimento dos nossos laços sociais, que é o que nos mantêm vivos. Lidar com esse isolamento não é fácil para a maioria das pessoas, sobretudo para quem já tem uma insegurança psíquica”. Outra dimensão importante, sobre a qual ele diz ter ouvido falar pouco no meio acadêmico, é o crescimento gigantesco dos transtornos obsessivos compulsivos referentes aos cuidados que devem ser tomados para evitar a doença. “As pessoas acometidas por esse transtorno multiplicam seus rituais de limpeza de forma compulsiva, às vezes tomando o dia todo do indivíduo”.

Angústia hipocondríaca, rituais obsessivos, através da neurose de angústia. Segundo Birman, o que temos diante de nós é um quadro de ‘neurose traumática’. “Isso é o que está na base do engendramento de todas essas dimensões sintomáticas e que, ao mesmo tempo, leva muitas pessoas ao aumento do consumo de álcool, de drogas lícitas ou ilícitas, ao aumento de ingestão de comida como instrumentos de regulação da angústia”, resumiu o palestrante.

Birman apontou que a maneira pela qual o SUS foi sucateado nos últimos anos está causando a precariedade no atendimento e a dificuldade de inibir a letalidade do coronavírus. Diante dessa urgência sanitária, ele diz que a saúde mental ainda não entrou em cena com a força que ainda vai tomar. A ocorrência de suicídios diante do desalento, pessoas que estão se antecipando ao pior pensando que já estão doentes e que vão morrer sozinhas num hospital, de acordo com o psiquiatra, já vem aumentando.

“Eu tenho notícias de muita procura de pessoas de comunidades de baixa renda, como a Maré, a Rocinha e o Alemão, por instituições de psicanálise, diante da derrubada psíquica provocadas pela COVID-19. Acredito que na pós-pandemia o SUS deva ser estruturado para ter uma forte presença de psicólogos, psiquiatras ou psicanalistas que possam oferecer assistência para essas populações precarizadas. Isso vai ser fundamental diante da recessão econômica advinda dessa pandemia.

Além disso, Joel Birman destacou o fato das pessoas mortas por COVID-19 estarem tendo que ser enterradas de forma inumana, ou seja, sem rituais funerários. “Estamos pairando sobre um conjunto de mortos sem sepultura que inunda o nosso imaginário. A inexistência do trabalho de luto é uma fonte fundamental da produção de melancolia. É uma situação de total desalento, diante dessa catástrofe brasileira.”

Davidovich observou a complementaridade entre as palestras, ao que Jair Mari observou: “Fiquei emocionado. Os eventos que eu estudo são populacionais, mas a experiência é individual, tanto nas singularidades psíquicas, ressaltadas por Birman, como pelas particularidades biológicas, apontadas pela Fernanda. A doença mental vem da vulnerabilidade biológica e das experiências individuais, a interferência da situação ambiental, que nesse momento é absolutamente desfavorável. A palavra desalento toca muito forte. Nem todas as pessoas vão aguentar.”

 

Confira o vídeo com os principais destaques desta edição.


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