Leia demanda de cientistas do Pará ao governador do Estado, enviada em 16/4:

Excelentíssimo Senhor Helder Zahluth, Governador do Estado do Pará:

Acompanhamos a crise sanitária que assola o mundo e o Brasil com a expansão da pandemia do novo Coronavírus (SARS-CoV-2), causador da doença COVID-19. O Pará nos preocupa sobremaneira, pois as condições sanitárias e de acesso à saúde que historicamente apresentam-se problemáticas são fundamentais para vencermos a doença. O número de infectados pelo novo Coronavírus no Brasil, e no estado, continua aumentando a cada dia e até janeiro de 2020, o Sistema de Saúde do Pará tinha 1.013 ventiladores/respiradores e 623 UTIs 1 . Estudo recente mostra que no pior cenário teremos um pico de cerca de 2.800 infecções e no melhor cenário, o pico de infecção no estado será de 650 infectados2.

Expressamos nosso integral apoio às iniciativas tomadas pelo Governo do Estado do Pará neste momento crucial em que precisamos de respostas rápidas para frear o avanço da epidemia. Em adição às ações relevantes já instituídas pelo Governo do Pará, sugerimos, nesta oportunidade, a organização de um comitê estadual para articular as ações dos institutos de pesquisa nas temáticas sugeridas neste documento.

Dirigimo-nos a Vossa Excelência com o objetivo de elencar algumas reflexões e propostas que merecem especial atenção neste grave contexto:

1) Assegurar a incontornável necessidade de isolamento social e de estratégias ampliadas

A Organização Mundial de Saúde (OMS)3 tem evidenciado três grandes estratégias para a contenção da curva epidêmica da doença e a ampliação da capacidade assistencial dos casos positivos. São eles:

1. ampliação da testagem dos casos suspeitos com entrega rápida dos resultados;

2. identificação dos comunicantes da doença e imediato isolamento domiciliar;

3. investimentos voltados a proteção dos profissionais de saúde; além do deslocamento de profissionais voltados à assistência, ao monitoramento e à implementação de estratégias de controle comunitário.

Como cientistas, expressamos o nosso apoio incondicional às determinações do Ministério da Saúde e do Governo do Estado do Pará em seguir as recomendações básicas da Organização Mundial de Saúde – OMS e da ciência no enfrentamento dessa pandemia, que se espalha com muita rapidez: “os dados sobre a difusão da doença no país indicam que se trata de um modelo hierárquico, fortemente relacionado com as interações espaciais existentes na rede urbana brasileira4. Ou seja, às características da doença (alto índice de transmissão por infectados assintomáticos), deve-se acrescentar a capilaridade de sua penetração no território. Uma vez instalada, a COVID-19 evolui rapidamente para um modelo de transmissão comunitária, multiplicando os focos da doença. Diante da ausência de métodos de imunização e de protocolos definitivos de tratamento, a única maneira de evitar o aumento exponencial de infectados – e de mortes – pelo vírus é, comprovadamente,  isolamento social, como tem demonstrado o exemplo de vários países.

A despeito de declarações contrárias ao isolamento, que postulam que a “vida não tem valor infinito”, muitos representantes dos executivos da Federação, a exemplo de Vossa Excelência, têm mostrado o empenho em defender e zelar pela saúde e pela vida dos cidadãos. É devido à atitude responsável desses gestores que mais da metade de todos(as) os(as) brasileiros(as) continua em casa seguindo as orientações das instituições internacionais que recomendam o isolamento social. No Pará, o índice de isolamento é de 50%5.  Cumprimentamos Vossa Excelência pelo alcance obtido por sua gestão. E apoiamos a expansão das ações protetivas no estado, por meio de programas e ações de apoio contínuo à renda emergencial básica para trabalhadores(as) de baixa renda ou informais, assim como de outras medidas, detalhadas a seguir.

2) Garantir medidas de proteção às populações vulneráveis na Amazônia

Os cientistas sociais apontam que a Pandemia da Covid-19 não afetará todas as pessoas da mesma maneira. No Brasil, além de grande parte da população viver na informalidade, temos grupos sociais poucos visíveis da sociedade que ainda aguardam a atenção do poder público.

Esta pandemia tem o potencial de afetar gravemente populações vulnerabilizadas, como os indígenas, quilombolas, povos e comunidades tradicionais como os ribeirinhos, privados de liberdade, refugiados e outros. Assim como os que vivem em situação de rua em Belém e em outras cidades, essas populações, além de orientações específicas e explícitas, precisam de políticas e programas de renda, moradia, acesso à água potável, insumos básicos e assistência médica, como respostas concretas do Poder Público às suas necessidades.

Considerando que, no Pará, 45% dos municípios têm mais da metade de sua população em situação de pobreza extrema, políticas de proteção social e humanitária, que respeitem a saúde, a vida e os direitos dessas populações mais vulneráveis, precisam ser implementadas emergencialmente.

3) Coordenar ações de ciência, saúde, meio ambiente e saneamento básico

Estudos realizados na China e em Singapura6 mostraram que os pacientes de COVID-19 mantinham em suas fezes o material genético do vírus, mesmo depois de não apresentá-lo mais no pulmão ou nas vias respiratórias. Dada a escassez de saneamento na região amazônica, nos meses de duração da pandemia, é possível que uma grande carga viral seja despejada em nossos rios, ampliando a disseminação do vírus Sars-CoV-2 no ambiente e a infecção contínua da parcela mais vulnerável da população.

Para evitar o quadro acima, são urgentes ações conjuntas e coordenadas dos governos, profissionais da área da saúde, do saneamento, das instituições de pesquisa e do setor privado. O precário cenário de emergência de saúde pública, é agravado ainda mais em função dos problemas de desigualdade social e do elevado déficit na prestação de serviços de saneamento em nosso estado, que oferece serviços de água tratada a 45,3% dos habitantes e apenas 6,3% deles têm acesso à coleta de esgoto e 4,4% dos esgotos são tratados7.

A pandemia do novo coronavírus pode ter efeitos colaterais além dos circunscritos à saúde na região amazônica. Preocupa-nos o desmatamento acelerado que está acontecendo neste período crítico e apelamos para que o Governo do Estado continue a monitorar o desmatamento, evitando novos prejuízos ambientais e socioeconômicos no estado.

4) Fortalecer o SUS, criar linha de produção de Equipamentos de Proteção Individual-EPI e reforçar recursos humanos em saúde

A crise atual também indica a urgência em fortalecer o Sistema Único de Saúde (SUS), reconsiderando a sua importância e direcionando investimentos ao aumento das suas capacidades instaladas. Um SUS forte é – hoje e no futuro – absolutamente indispensável para enfrentar os novos desafios impostos pelas ameaças de epidemias e pandemias, em muito associadas à destruição da natureza em diversas partes do globo e, particularmente, na Amazônia.

A remoção de gargalos imediatos, como a formação de pessoal para efetuar os testes PCR e diminuir a sobrecarga e/ou estabelecer rotinas eficientes no uso de extratores de RNA, necessários à testagem, pode ser considerada como prioritária no combate à doença e à aferição de seu impacto real sobre a população. Além disso, priorizar a produção de equipamentos hospitalares de alta tecnologia (respiradores) e a produção de kits emergenciais é fundamental, tanto para combater a epidemia, quanto para reforçar as atividades de certos setores industriais em curto e médio prazos.

Para ampliar e aprimorar a sua ação junto à diversidade de realidades no Brasil e em nossa região, mais do que nunca são necessários esforços de coordenação e integração de ações dos setores públicos e privados de saúde e entre os estados da Amazônia. Nesse sentido, a contribuição do setor privado é de grande importância neste momento para suprir a falta de equipamentos hospitalares, como respiradores, e até de insumos como máscaras de proteção, luvas, álcool em gel, entre outros.

Nesse contexto, recomenda-se incentivar a criação de uma linha de produção de Equipamentos de Proteção Individual (EPI) no estado do Pará e o aprimoramento das redes de serviço sanitário, com a contratação de profissionais de saúde via processos seletivos e concursos públicos.

Mais do que nunca são necessários esforços de coordenação e integração de ações dos setores público e privado de saúde e entre os estados da Amazônia.

5) Incorporar contribuições da área da Ciência e Tecnologia na tomada de decisões

O combate ao vírus Sars-CoV-2 passa por entendermos melhor e urgentemente a epidemiologia da doença nas condições amazônicas, o que deve ser feito o mais rapidamente possível, pois, sem dados sólidos, nenhuma política de saída de crise será efetiva. O Pará possui como diferencial em relação a outros estados uma rede de instituições científicas que atuam há décadas, com reconhecida excelência e vasta abrangência de áreas e temas, muitas das quais relevantes para a construção de cenários de saúde pública e aspectos sociais associados à pandemia.

Na área de saúde, destacam-se entre as instituições renomadas nacional e internacionalmente o Instituto Evandro Chagas, que dispõe de instalações adequadas à contenção e à pesquisa de cepas virais desconhecidas, bem como de extratores de RNA, indispensáveis aos testes PCR, e a Universidade Federal do Pará e a Universidade do Estado do Pará, que vêm colaborando com iniciativas nacionais e internacionais.

Nas instituições científicas do Pará o governo estadual também pode encontrar informações confiáveis e a construção coletiva de estratégias, tanto tecnológicas como organizacionais, para viabilizar territórios sustentáveis, considerando a diversidade de situações, particularmente de populações vulneráveis, bem como estratégias para a prevenção e o enfrentamento de eventuais epidemias ou pandemias, inclusive as que ocorrem a partir de arbovírus (transmitidos por insetos e aracnídeos) oriundos de territórios amazônicos submetidos a processos de ocupação predatória.

Entre as ações ou atividades potenciais a serem viabilizadas ou realizadas por este conjunto de instituições, podem ser citadas a disponibilização de laboratórios; a elaboração de material explicativo sobre a doença, sua prevenção e tratamento; a elaboração e execução de projetos voltados a populações vulneráveis; o  diagnóstico das dificuldades e gargalos (técnicos, organizacionais, setoriais) encontrados no enfrentamento da crise; a construção coletiva de alternativas tecnológicas e organizacionais a sistemas de produção locais; a orientação à implantação de sistemas agroalimentares mais territorializados (circuitos curtos produtor/consumidor).

Essas ações envolvem, no entanto, o efetivo compromisso dos ministérios relacionados ao tema, bem como, no âmbito estadual, o fortalecimento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Pará (Fapespa), de bancos e agências de desenvolvimento, de modo a aumentar o fomento à produção de ciência e ao desenvolvimento tecnológico.

Além do comitê estadual proposto e em complemento às iniciativas já em curso pela Fapespa, sugerimos o lançamento de um edital emergencial para financiar pesquisadores na atuação direta de combate à pandemia da COVID-19.

Desse modo, este conjunto de cientistas atuantes no estado do Pará, aqui representados, coloca-se à disposição da população e do Governo do Estado, destacando que temos capacidade instalada e disposição para contribuir nas fases de prevenção, controle e monitoramento da doença COVID-19, bem como no delineamento de estratégias que permitam renda às populações atingidas e, a médio e longo prazos, alternativas voltadas ao maior conhecimento e manejo da sociobiodiversidade, à recuperação de áreas degradadas e ao restabelecimento das economias locais.

Pelos cientistas do Pará:

Ana Luisa M. Albernaz – Diretora do Museu Paraense Emilio Goeldi (MPEG)
Ana Rita Alves – Ex-diretora do Instituto de Desenvolvimento Mamirauá (IDSM)
Claudio Alex Rocha – Reitor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará (IFPA)
Carlos Leonardo Figueiredo Cunha – Professor da Universidade Federal do Pará (UFPA)
Emanuel Adilson de Sousa Serrão – Ex-chefe Geral da Embrapa Amazônia Oriental
Fernando Antonio Teixeira Mendes – Chefe do Centro de Pesquisa do Cacau nos Estados do Pará e Amazonas
Helder Lima de Queiroz – Ex-diretor do Instituto de Desenvolvimento Mamirauá (IDSM)
Hilton Pereira da Silva – Professor da Universidade Federal do Pará (UFPA)
Ima Célia Guimarães Vieira – Pesquisadora e ex-diretora do Museu Paraense Emilio Goeldi (MPEG)
João Simão de Melo Neto – Professor da Universidade Federal do Pará (UFPA)
Joice Ferreira- Pesquisadora da Embrapa Amazônia Oriental
José Emilio Campos Magno – Professor da Universidade Federal do Pará (UFPA)
Maria do Socorro Castelo Branco de Oliveira Bastos – Professora da Universidade Federal do Pará (UFPA)
Milton Kanashiro- Pesquisador da Embrapa Amazônia Oriental
Manoel Malheiros Tourinho – Ex-reitor da Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA)
Maria Elizabeth Santos – Ex-diretora do Instituto Evandro Chagas (IEC)
Maria Paula Schneider – Professora da Universidade Federal do Pará (UFPA)
Nilson Gabas Junior – Pesquisador e ex-diretor do Museu Paraense Emilio Goeldi (MPEG)
Pedro Paulo Piani – Professor e gerente de Ensino e Pesquisa do Complexo Hospitalar da Universidade Federal do Pará (UFPA)
Roberto Araújo de Oliveira Santos Junior – Pesquisador do Museu Paraense Emilio Goeldi (MPEG)
Regina Oliveira da Silva – pesquisadora do Museu Paraense Emilio Goeldi
Silvia Helena Arias Bahia – Vice-Diretora da faculdade de Medicina da UFPA
Tatiana Deane de Abreu Sá – Pesquisadora e ex- Chefe Geral da Embrapa Amazônia Oriental, ex- Diretora Executiva da Embrapa-Brasil.
Walkymário de Paulo Lemos – Chefe de Pesquisa e Desenvolvimento da Embrapa Amazônia Oriental
William Santos de Assis – Professor e Diretor Geral do Instituto Amazônico de Agriculturas Familiares – INEAF/UFPA

Referências:

1 Rache et al., 2020. Necessidades de Infraestrutura do SUS em Preparo à COVID-19:
Leitos de UTI, Respiradores e Ocupação Hospitalar. Disponível em: https://ieps.org.br/pesquisas/necessidades-de-infraestrutura-do-sus-em-preparo-aocovid-19-leitos-de-uti-respiradores-e-ocupacao-hospitalar/

2 Cabral et al., 2020. Estudo inicial sobre a evolução do novo CORONAVÍRUS (SARSCOV-2 no estado do Pará (Brasil), no período entre 17/03/2020 e 06/04/2020. Braz. J. Hea. Rev. 3 (2):2914-2931.

3 World Health Organization (WHO). Report of the WHO China Joint Mission on Coronavirus Disease 2019 (COVID-19) [Internet]. Geneve: WHO; 2020 [cited 2020 Abr 10]. Available from: https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/whochina-joint-mission-on-covid-19-final-report.pdf

4 https://www2.unesp.br/portal#!/noticia/35626/por-que-a-circulacao-de-pessoas-tempeso-na-difusao-da-pandemia; Danigno, R; e Freitas M; Casos de covid-19 nos municípios do estado do Amazonas, Brasil Relatório técnico atualizado em 04/04/2020com dados até 2/04/2020 UFRGs-Propesq 2020

5 Índice de Isolamento Social no Brasil. Disponível em: https://www.gstatic.com/covid19/mobility/2020-03-29_BR_Mobility_Report_en.pdf

6 Artigos publicados na revista científica Lancet Gastroenterol Hepatol. Ver artigo da revista Science. Disponível em https://www.sciencemag.org/news/2020/03/china-saggressive-measures-have-slowed-coronavirus-they-may-not-work-other-countries

http://www.tratabrasil.org.br/blog/2019/09/03/para-o-estado-com-maior-deficit-emtratamento-de-esgoto