Antonio Galves é matemático, Professor Titular da Universidade de S.Paulo, membro titular da Academia Brasileira de Ciências e coordenador do Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão em Neuromatemática (CEPID NeuroMat), financiado pela FAPESP. As atividades do CEPID NeuroMat podem ser acompanhadas através das páginas www.neuromat.numec.prp.usp.br e www.facebook.com/neuromathematics

boltzmann

* Resumo dos episódios anteriores: No final do século XIX, Boltzmann propôs derivar as leis da Termodinâmica a partir do estudo da evolução de sistemas de moléculas como as da água. Esse projeto inovador foi violentamente atacado pelas autoridades científicas da época. Os detratores de Boltzmann diziam que o projeto era logicamente incoerente, porque ele propunha derivar leis irreversíveis, como as da Termodinâmica, a partir do estudo de sistemas de moléculas que são reversíveis, por seguirem as leis da Mecânica. Dois jovens matemáticos, Paulo e Tatiana Ehrenfest encontraram uma maneira muito simples de mostrar que não havia nenhuma impossibilidade lógica no projeto de Boltzmann. Fizeram isso estudando um modelo matemático descrevendo de maneira simplificada a evolução de um gás entre dois compartimentos conectados.

3ª Parte: Reversibilidade e irreversibilidade são dois aspectos da mesma história
No modelo de Ehrenfest dois compartimentos conectados são representados por duas urnas. O gás contido nos compartimentos é representado por um conjunto de bolas numeradas de 1 até um número fixado representando o número total de bolas. A evolução no tempo das posições das moléculas do gás é modelada da seguinte maneira. Em cada etapa da evolução, sorteamos uma bola, usando uma roleta. A bola cujo número foi sorteado é “candidata” a mudar de urna. Para decidir se a mudança de urna ocorrerá ou não, uma moeda honesta é lançada. Se a moeda cair em cara, a bola sorteada muda de urna. Já se sair coroa, a bola sorteada permanece na urna em que estava. Ao longo dos sorteios sucessivos, as bolas irão mudando ou não de urna. Exatamente como ocorre com as moléculas do gás.

Alguns leitores mais céticos protestam:

– E qual é o interesse disso? Qual o interesse de estudar o que acontece com um conjunto de bolas que passam de uma urna para outra, seguindo os sorteios de uma roleta e de uma moeda?

O interesse do Modelo de Ehrenfest é que sua evolução pode ser simultaneamente descrita como sendo reversível e irreversível. Reversível como previsto pelas leis da Mecânica que descreve a evolução de um sistema de moléculas. E irreversível como previsto pelas leis da Termodinâmica que controlam a evolução do gás.

Os protestos aumentam:

– Que absurdo é esse?! Como pode uma mesma evolução ter duas descrições contraditórias?!

A chave do mistério é simples. Os aspectos reversível e irreversível da evolução das posições das bolas aparecem em níveis distintos de descrição do sistema.

O aspecto irreversível da evolução

Suponhamos que no início da experiência todas as bolas se encontrassem numa das urnas, digamos na urna A. Assim, no início da experiência a probabilidade de encontrar uma bola qualquer fixada, por exemplo a bola de número 1, na urna A é 1. Em outras palavras, com certeza a bola 1 está na urna A no início da experiência.

Fazemos um primeiro sorteio da roleta e lançamos a moeda para decidir se a bola cujo número foi sorteado troca ou não de urna. Qual é a probabilidade da bola de número 1 continuar na urna A? Essa probabilidade é muito alta, mas não é mais 1. Com efeito, se por acaso a roleta sortear precisamente o número 1 e a moeda cair em cara, então a bola de número 1 passará da urna A para a urna B. A probabilidade disso acontecer é igual a 1/2 vezes 1 sobre o número total de bolas.

Os leitores protestam:

– De onde vem esse valor: “1/2 vezes 1 sobre o número total de bolas”?!

Explico: 1/2 é a probabilidade da moeda cair na face cara. Como a moeda é honesta, a probabilidade dela cair na face cara é igual à probabilidade dela cair na face coroa. E a fração 1 sobre o número total de bolas é a probabilidade da roleta parar precisamente no número

1. Ouço rumores de concordância na audiência.

Continuamos a fazer esse cálculo para as etapas sucessivas da evolução do sistema. À medida que os sorteios da roleta e da moeda se sucedem, a probabilidade de encontrarmos a bola de número 1 na urna A converge para o valor 1/2. Ou seja, depois de um número muito grande de sorteios.

Um leitor concorda:

– É bem intuitivo que após muitos sorteios a bola de número 1 terá praticamente a mesma probabilidade de se encontrar na urna A ou na urna B.

Podemos ir mais longe na descrição. Podemos nos interessar pela evolução simultânea de um subconjunto qualquer de bolas. Um cálculo um pouco mais complicado mostra que a probabilidade de cada uma dessas bolas estar na urna A converge para 1/2 e que a posição de cada bola é independente da posição das outras bolas. Isto é, saber que a bola de numero 1 está, por exemplo, na urna A, não nos ajuda a prever onde estará uma outra bola qualquer.

Ouço gritos de entusiasmo na audiência:

– Quer dizer que após um grande número de sorteios, as posições das bolas se distribuirão como os resultados de uma sequência de lançamentos de uma moeda honesta tendo uma face marcada com a letra A e a outra marcada com a letra B!!! Ou seja, a evolução do sistema embaralha totalmente as posições das bolas!

É isso mesmo. E esse é precisamente o aspecto irreversível da evolução do sistema.

Murmúrios de apreensão e de surpresa na audiência. – Como assim: irreversível?!

Respondo: a evolução é irreversível porque ela “tende” a embaralhar cada vez as posições das bolas entre as duas urnas. Começamos com uma situação totalmente ordenada: todas as bolas na urna A. E terminamos com todas as bolas distribuídas da maneira a mais aleatória possível. Ao longo dos sorteios, o sistema evoluiu para uma distribuição de máxima desordem, aquela em que cada bola está com igual probabilidade numa urna ou na outra e isso independentemente das posições das outras bolas.

Um leitor conhecedor das leis da Termodinâmica grita subitamente: – Mas isso é o que prevê a Segunda Lei da Termodinâmica! O sistema converge ao longo do tempo para uma situação de “entropia” máxima!!!

Satisfeito, eu confirmo: sim, o sistema converge para uma situação de “entropia” máxima, isto é de desordem máxima. No artigo em que o modelo foi apresentado, Paulo e Tatiana mostraram que a evolução das posições das bolas entre as duas urnas satisfazia a Segunda Lei da Termodinâmica. Mas falaremos disso com mais vagar numa outra ocasião.

A convergência que acabo de descrever é um teorema, isto é, um resultado matemático demonstrado rigorosamente, usando sucessivas deduções lógicas. A bem da verdade, trata-se de um teorema cuja demonstração é bastante simples e pode ser apresentada num curso introdutório de Processos Estocásticos.

Os leitores perguntam:

– O que é um Processo Estocástico?!

Processos Estocásticos são modelos matemáticos. Eles descrevem “histórias” que dependem do acaso. No modelo de Ehrenfest a história é a da evolução das posições da bolas entre as duas urnas. E o acaso é representado pelos sorteios sucessivos da roleta e da moeda governando essa evolução.

O aspecto reversível da evolução

Os leitores convencidos pelas linhas acima me perguntam:

– E como se manifesta o aspecto reversível da evolução das posições das bolas? E como podemos ver isso experimentalmente?

Isso pode ser visto mais facilmente, mudando a forma gráfica de representar a evolução do sistema. Notem que não estamos mudando as regras do jogo. Temos sempre duas urnas, um conjunto de bolas numeradas, uma roleta sorteando o número da bola candidata a mudar de urna a cada passo e uma moeda que dirá se a mudança ocorrerá ou não. Vamos simplesmente utilizar uma outra representação gráfica para indicar as posições das bolas a cada passo do jogo.

Vamos indicar as posições em cada passo, através de uma tabela com duas linhas. Na primeira linha indicamos os números das bolas: 1, 2,….. Essa linha não será alterada ao longo da experiência. Na segunda linha nós indicamos a urna, A ou B, em que está cada bola naquela etapa da seqüência de sorteios.

Ao longo dos sorteios as indicações nas cédulas da segunda linha irão sendo alteradas, indicando as posições sucessivas ocupadas pelas bolas. Aquelas que estão na urna A, terão a letra A marcada nas cédulas da segunda linha correspondendo a seus números, e as demais terão a letra B, marcada nas suas cédulas.

Vamos fazer um filme mostrando como as posições das bolas evolui ao longo dos sorteios. Nesse filme, os fotogramas sucessivos mostrarão as tabelas sucessivas representando as posições sucessivas das bolas nas urnas em função dos sorteios sucessivos.

Desta vez vamos iniciar a experiência, sorteando ao acaso com igual probabilidade em que urna ficará cada bola. Faremos um sorteio para cada bola independentemente das outras. Ou seja, vamos agora iniciar a experiência, colocando o sistema na situação em que a convergência das probabilidades de ocupação o colocaria ao cabo de uma sequência muito longa de sorteios.

Passamos o filme mostrando como as posições das bolas evoluem no decorrer dos sorteios sucessivos. Fazemos isso mostrando o filme ora na sequência em que foi filmado originalmente, ora de “trás para a frente”.

E aí vem a surpresa. É impossível para um espectador identificar qual é a sequência original de filmagem e qual é a sequência invertida, quando o filme passa de trás para a frente. Num sentido ou no outro o filme mostra o mesmo tipo de evolução. Não há nada na evolução de imagens assistidas que nos permita identificar a ordem original de filmagem! No Modelo de Ehrenfest essa é a forma pela qual a reversibilidade se manifesta.

O sucesso do programa de Boltzmann e seu desespero pessoal

Os resultados demonstrados rigorosamente para o Modelo de Ehrenfest mostram cabalmente que não havia nenhuma impossibilidade lógica, nenhuma incoerência básica no projeto de Boltzmann.

O que havia era a dificuldade que uma boa parte dos mais importantes cientistas de sua época teve para entender as idéias inovadoras que norteavam seu programa de pesquisa.

Um leitor me pergunta:

– Mas afinal essa história tem um final feliz ou não? Do ponto de vista da vida pessoal de Boltzmann a história terminou em tragédia. Em 1905 ele se suicidou. É impossível saber o que o levou a esse gesto de desespero, mas podemos imaginar que a violenta campanha de descrédito movida contra ele tenha contribuído para isso.

Do ponto de vista científico essa história não terminou ainda. O projeto de Boltzmann deu origem a uma nova área de pesquisa chamada Mecânica Estatística que continua a se desenvolver com grande ímpeto. Não é exagero afirmar que a Mecânica Estatística teve e continua tendo uma influência gigantesca sobre nossa maneira de entender fenômenos naturais. Do ponto de vista da Matemática, o projeto de Boltzmann motivou a criação de novos modelos e resultados, influenciando de maneira duradoura a Teoria das Probabilidades e motivando a criação da Teoria Ergódica.

Então, do ponto de vista da ciência a resposta é: sim! Essa história levou a uma feliz mudança de paradigmas e à criação de novas áreas da Física e da Matemática. Tudo isso nascido do projeto inovador de um cientista que enxergou além do horizonte da ciência de sua época.

Confira aqui os artigos anteriores da série:

A angústia do matemático Ludwig Boltzmann – 1ª parte

A angústia do matemático Ludwig Boltzmann – 2ª parte