Num meio hipercompetitivo como o científico, no qual abundam talentos precoces, a trajetória do imunologista brasileiro radicado nos EUA Gabriel Victora, 40, constitui uma espécie de anomalia.
Tendo chegado a ele por vias tortas e de maneira relativamente tardia, Victora em pouco tempo se tornou um dos pesquisadores mais destacados e premiados de sua área.
Há duas semanas, foi agraciado com uma bolsa da Fundação MacArthur, um dos prêmios mais prestigiosos e bem pagos dos EUA, voltado a pessoas “excepcionalmente criativas” das mais variadas áreas do conhecimento e da arte.
“Estava num seminário e recebi várias ligações de um número de Chicago. Quando retornei, me pediram para ir a um lugar onde ninguém pudesse me ouvir e me parabenizaram. Cheguei a achar que era uma piada”, diz Victora.
Os contemplados com a “bolsa gênio” –como é conhecida popularmente– recebem US$ 650 mil (R$ 1,98 milhão) em parcelas trimestrais durante cinco anos e têm liberdade total para usar os recursos. “Eles dizem para usarmos os recursos de maneira a maximizar a nossa criatividade.”
Além do valor vultoso, o prêmio da Fundação MacArthur carrega certa aura de mistério, já que não existe “inscrição” para concorrer à bolsa.
Piano
Nascido em Porto Alegre, Victora se mudou com um ano para Pelotas, também no RS, onde seu pai, o renomado epidemiologista Cesar Victora [membro titular da Academia Brasileira de Ciências (ABC)], assumiu o cargo de professor da universidade federal da cidade. Viveu ali toda a adolescência, com exceção de um período em Londres, quando o pai fazia o doutorado.
Ao contrário do que possa parecer, a primeira vocação de Victora não foi a ciência, mas a música. Com talento para o piano, aos 16 anos se mudou para Nova York (EUA) para especializar-se no instrumento no Mannes College, instituição por onde já passaram nomes célebres como os pianistas Bill Evans e Murray Perahia. Lá, ele também concluiu o mestrado em piano.
De volta ao Brasil, passou a ensinar em faculdades e participou de recitais e concertos. Com o tempo, entretanto, o interesse pela música foi minguando. Quando tinha por volta de 25 anos, Victora tomou a decisão radical de abandonar a carreira musical.
“Houve várias razões para isso, mas a principal foi a rotina puxada de estudos, de sete, oito horas diárias, todos os dias. Às vezes eu passava uma semana sem sair de casa.”
A transformação do pianista no cientista foi paulatina. Vivendo em São Paulo na época, Victora iniciou um estágio voluntário no laboratório do imunologista Jorge Elias Kalil Filho [membro titular da ABC], no InCor. “Eu era uma espécie de técnico de laboratório, fazia o básico”. Concomitantemente, estudava livros da área.
“Conheço o Gabriel desde que ele era criança, pois sou amigo do pai dele. Ele sempre foi alguém acima da média. Quando desistiu do piano, disse ao pai que gostaria de ter uma experiência na ciência e veio conversar comigo. Coloquei ele para trabalhar com um pós-doutorando para ver se ele gostava da coisa”, disse à Folha Jorge Kalil.
“Depois de um ano”, prossegue, “ele me disse que queria continuar. Falei que ele precisava ser admitido no programa de mestrado do Instituto de Ciências Biomédicas da USP”. Victora passou em primeiro lugar. Após o mestrado, voltou aos EUA para cursar o doutorado e foi aceito na Universidade de Nova York.
Victora acredita ter enveredado pela imunologia devido às circunstâncias. “Tivesse começado no laboratório de outra pessoa, eu teria me tornado outra coisa”. O piano continua em sua casa, mas ele o pratica apenas por hobby. Seus compositores preferidos são Bach, Beethoven e Chopin.
Após concluir o doutorado, em 2011, Victora desviou-se novamente da rota tradicional e ganhou o posto de chefe de laboratório, no Instituto Whitehead, no MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts).”Um programa excepcional, que pouquíssima gente consegue entrar”, diz Kalil.
Após esse período, retornou à Universidade Rockefeller, onde pesquisa e leciona há um ano e meio. “O andar onde fico é todo de imunologistas brasileiros”, diz Victora, em alusão a seus colegas Michel Nussenzweig e Daniel Mucida.
Anticorpos
O trabalho de Victora gira em torno dos anticorpos, complexas moléculas produzidas pelo organismo que se ligam a substâncias estranhas que invadam o nosso corpo, ajudando-o a combatê-las.
Um dos fenômenos estudados pelo pesquisador é a chamada maturação da afinidade dos anticorpos, ou seja, como a sua capacidade de se ligar aos invasores aumenta.
Após a entrada de um invasor no organismo, os anticorpos entram em um acelerado processo de seleção natural, que ocorre numa área denominada centro germinativo.
Após muitas mutações e seleções, o sistema imune consegue criar anticorpos bastante eficientes contra os antígenos. Segundo Victora, esse processo pode melhorar em 10 mil vezes a capacidade de um anticorpo se ligar no antígeno”.
“Busco entender como esse processo funciona, como é que o sistema imune consegue fazer isso e selecionar as melhores células. A ideia é que quanto mais soubermos as regras do jogo, mais controle nós iremos ter sobre o resultado de uma imunização”.
Ele dá como exemplo uma ainda inédita vacina contra o HIV. “Conhecemos bons anticorpos contra o vírus da Aids, mas não sabemos como fazer para o sistema imune gerá-los. Isso passa por uma entendimento de como o sistema imune decide o que fazer”.
Victora teve até agora, nas palavras de Kalil, uma carreira brilhante e relâmpago, merecedora do prêmio. O pupilo, contudo, é mais modesto. “Fico me perguntando como foi que eles me escolheram no meio de tanta gente fazendo tanta coisa boa”, diz.
Veja os infográficos explicativos do trabalho de Gabriel Victora na matéria original do jornal Folha de S. Paulo.