RESUMO: Livro faz balanço das iniciativas de cientistas para mudar leis federais que atrapalham a pesquisa no Brasil. Apesar do sucesso em alguns casos, a maior parte das alterações obtidas ainda não está em vigor, por falta de regulamentação. O cenário piora com a ausência, no mundo político, de porta-vozes dos interesses acadêmicos.
Um parceiro fundamental no desenvolvimento da ciência no Brasil está fora dos institutos de pesquisas e dos laboratórios de universidades, em um lugar do qual acadêmicos costumavam passar longe: o Congresso Nacional. Quem faz pesquisa no país é obrigado a seguir uma série de leis.
Não raro, elas são criadas por legisladores que não sabem como funciona a atividade acadêmica e podem travar o andamento dos estudos. Além disso, há poucos cientistas atuando como porta-vozes na política nacional.
Algumas dessas leis problemáticas foram alteradas por causa da pressão dos próprios pesquisadores. Em um movimento pouco comum, a categoria buscou conversar com senadores, deputados e até com a Presidência.
Nem todas as sugestões, porém, têm sido ouvidas. Mais ainda: parte da legislação modificada para atender a necessidades da academia segue sem regulamentação. Ou seja: na prática, as alterações não estão em vigor.
A incursão dos pesquisadores no Congresso é documentada em “A Ciência e o Poder Legislativo no Brasil – Relatos e Experiências” SBPC, 197 págs., [acesso gratuito aqui], organizado por Helena Bonciani Nader, biomédica e ex-presidente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), com a colaboração das colegas Beatriz Bulhões Mossri e Fabíola de Oliveira.
Nader, figura assídua nos corredores de Brasília durante seu período à frente da entidade (2011-2017), diz ter virado fiscal do governo. Em entrevistas, fala mais sobre os entraves legais à pesquisa do que sobre a prática científica em si.
A obra trata de leis alteradas na última década —normas que dizem respeito a temas como conservação das florestas, pesquisas em biodiversidade e operação da atividade científica em si (dispostas no chamado Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação).
Mais do que uma análise burocrática ou um reles compilado das cartas enviadas por entidades acadêmicas a políticos, o volume é uma defesa do método científico.
Para entender a importância do pedido por normas mais racionais, basta lembrar o caso da Lei de Licitações, modificada há pouco tempo. Antes, as regras para construir um prédio ou um satélite eram idênticas — essas duas empreitadas só deixaram de ser tratadas da mesma maneira com o Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação, que foi aprovado em 2016 e modificou nove leis vigentes.
IMBRÓGLIO
Entre as mudanças, o marco criou uma exceção para as normas das licitações. A intenção era permitir “a aquisição ou contratação de produtos para pesquisa e desenvolvimento”. Trocando em miúdos: uma universidade poderia realizar uma obra de acordo com o que fosse mais adequado para a atividade científica, sem necessidade de escolher o que fosse mais barato (como seria na licitação para construir um prédio).
Poderia, mas ainda não pode. Essa mudança depende das regras que serão fixadas quando sair a regulamentação do marco legal, ainda sem data para ser publicada.
Com a nova lei, pesquisadores que trabalham em regime de dedicação exclusiva a universidades podem reservar até oito horas por semana para a ciência desenvolvida na iniciativa privada. Era uma demanda antiga apontada por pesquisadores como necessária para estimular a inovação no Brasil —em países avançados, ela está fortemente ancorada na ponte entre academia e empresas.
As mudanças para atender os cientistas mexeram também na lei que trata da situação jurídica de estrangeiros no país, de 1980, passando a permitir vistos temporários para a categoria “pesquisadores” – incluindo ainda bolsistas vinculados a projetos acadêmicos.
Em tempos de internacionalização da ciência, de projetos acadêmicos globais e de sistemas de avaliação de universidades que dão pontos a instituições com alunos e docentes de fora, facilitar a vinda de estrangeiros é medida óbvia.
O livro sai em um momento importante para a ciência nacional. Pesquisadores têm se esforçado para serem notados pelos governantes, a fim de obter mais recursos e conseguir a flexibilização das normas que regulam seu trabalho.
A própria ciência está na berlinda: hoje, o orçamento federal para o setor corresponde a 50% do de 2014 — isso sem considerar a inflação no período.
Some-se ainda o fato de que os cientistas têm pouca representação em Brasília. O antigo Ministério da Ciência — hoje da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações— já foi comandado pelo físico Sergio Rezende (2005-2010), um dos cientistas mais produtivos do país, e pelo matemático Marco Antonio Raupp (2012-2014), ex-presidente da SBPC. Hoje, é capitaneado por Gilberto Kassab (PSD).
Não existe uma bancada de cientistas no Congresso para defender, por exemplo, que pesquisadores possam usar recursos públicos destinados a equipamentos de ciência na contratação de técnicos de laboratório (a chamada “mudança de rubrica” nos projetos de pesquisa).
CÓDIGO FLORESTAL
Há, no entanto, quem defenda no Congresso a palavra da Bíblia, a agropecuária e o direito ao uso de armas. Causas científicas muitas vezes ficam no campo oposto ao dessas bancadas. Exemplo disso é o embate, contado no livro, na elaboração do novo Código Florestal, implementado por medida provisória em 2012.
A elaboração da norma, que modifica leis de 1934 sobre as florestas, ocorreu em meio à polarização entre ambientalistas (que pretendiam, por exemplo, ampliar a proteção às nascentes de rios) e ruralistas (que buscavam regras mais flexíveis para facilitar a agropecuária).
Os acadêmicos, que estavam com o primeiro grupo, foram acusados pelo relator na Câmara dos Deputados, Aldo Rebelo (então no PC do B-SP, hoje no PSB), de serem financiados por ONGs como o Greenpeace.
“Sem acordo entre as partes, perdem todos, especialmente o Brasil”, escrevem no livro cientistas da USP, da Unicamp, da UFRPE (Universidade Federal Rural de Pernambuco) e do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia).
Os acadêmicos obtiveram um triunfo na inclusão de mangues como áreas de preservação permanente. Os mangues são hoje considerados pela ciência como um dos biomas mais ricos e diversos do mundo -daí a importância de sua preservação.
Perderam a briga, contudo, na definição da área de proteção nos leitos dos rios. “Um assunto muito importante, em especial para o Pantanal e a Amazônia, que irão perder a proteção de milhares de quilômetros quadrados de suas florestas de várzea”, escrevem.
DESMATAMENTO
Recentemente, ambientalistas atribuíram às mudanças no Código Florestal a nova expansão do desmatamento na Amazônia – alta de 29% em 2016, com perda de 7.989 km2. Isso equivale a mais de cinco vezes a área da cidade de São Paulo.
Os pesquisadores também foram derrotados quando tentaram restringir o uso de espécies exóticas para recomposição de áreas de proteção permanente. Eles pleiteavam que o expediente fosse temporário. A lei aprovada, entretanto, determina que é possível recuperar áreas com espécies que não sejam da região degradada – por tempo indeterminado, o que pode significar ainda mais dano ambiental.
Os cientistas tampouco foram ouvidos no debate sobre a Lei de Biodiversidade, aprovada em 2015 e regulamentada no ano seguinte – uma das últimas canetadas de Dilma Rousseff (PT).
O texto trocou a necessidade de autorização prévia para pesquisa com biodiversidade por um cadastro no Ministério do Meio Ambiente, que, de acordo com o livro, ainda não está funcionando plenamente.
Agora, o cientista que deseja estudar o mundo natural brasileiro precisa definir previamente nesse cadastro as finalidades do trabalho, como se pudesse prever os rumos de uma pesquisa básica.
“A Ciência e o Poder Legislativo no Brasil” não é para qualquer leitor. Há trechos técnicos e repetitivos capazes de atravancar a leitura até dos familiarizados com o assunto, o que escancara a dificuldade de os cientistas se comunicarem com leigos. Não terá sido à toa que, na semana de lançamento da obra, em julho, chegou-se a cogitar a fundação de um partido de cientistas.
O Brasil está entre os piores do mundo em ensino de ciências, de acordo com o exame internacional Pisa (63º lugar de 70 países avaliados). Nesse cenário inóspito, é cada vez mais necessário falar sobre a pesquisa, justificá-la e priorizá-la.