Como continuar produzindo conhecimento e inovação em um momento em que a pesquisa e a ciência vêm sendo desacreditadas pelos gestores do Brasil e de diversos países do mundo? Esse trabalho de resistência tem sido feito pelos jovens pesquisadores membros afiliados, ou ex, da Academia Brasileira de Ciências (ABC). Eles foram convidados a participar da 1ª Conferência Internacional da Rede de Jovens Afiliados da Academia Mundial de Ciências (TYAN), realizada no Rio de Janeiro, de 22 a 24 de agosto.
“Jeitinho” brasileiro é requisito para continuar pesquisa
Uma destas cientistas, que conseguiu realizar um trabalho de destaque apesar das dificuldades, foi a pesquisadora da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal de Goiânia (UFG), Carolina Horta Andrade, eleita para a ABC no período de 2017 a 2021. Ela apresentou seu projeto sobre o site e aplicativo criados para utilização em estágios primários de descoberta de medicamentos e avaliação de segurança ambiental.
As plataformas usam dados químicos e biológicos para testar a compatibilidade de componentes químicos com as funções desejáveis. O programa, chamado de Pred-hERG, é capaz de analisar toxicidade cardíaca e avaliar substâncias chamadas sensibilizadoras de pele. Para realizar esse trabalho, o grupo precisava de softwares cujas licenças giravam em torno de 10 a 50 mil dólares/ano. Sem recursos para arcar com a despesa, os pesquisadores manobraram a situação utilizando licenças acadêmicas, mais baratas ou gratuitas, além de colaborações com outros grupos do país que já tinham as licenças. “Sem dinheiro, precisamos da criatividade para enfrentar as barreiras. Além disso, comunicação e estabelecimento de parcerias com grupos de excelência são essenciais para conseguirmos fazer um bom trabalho. Principalmente nós, que estamos no começo da carreira”, defendeu Carolina.
Sem padrão “sala limpa”
Quem também recorre à colaboração e criatividade para fazer ciência com poucos recursos é a engenheira mecânica Carolina Palma Naveira Cotta, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), eleita membro afiliado da ABC para o período de 2015 a 2019. Seu grupo desenvolve pesquisa ligada à síntese de biodiesel em microrreatores, usando o calor liberado de uma fonte térmica secundária.
A Acadêmica contou que seu grupo já chegou a usar nos experimentos materiais como cola epóxi: “Quando não há dinheiro, é preciso ter criatividade, senão você não sobrevive. E além de criatividade você precisa de colaboração para lidar com a falta de estrutura.” O trabalho foi vencedor do Prêmio de Melhor Artigo. A cientista acentuou que é necessário demandar essa atitude, inclusive, de seus alunos: “Eu orientei o trabalho de conclusão de curso de graduação de João Vitor Cabral Ayres, vencedor do Prêmio Oscar Niemeyer de Trabalhos Científicos e Tecnológicos, na qual ele usou linha de pesca para construir micro canais”, contou.
Carolina Cotta comentou ainda que, em sua área de atuação, chamada micro field, o padrão internacional de pesquisa é o de “sala limpa”, onde há filtragem das partículas do ambiente. Mas isso não é possível com o financiamento que o grupo dispõe, ou seja, a falta de recursos não permite a manutenção dos padrões de qualidade internacionais. “Na minha área ainda conseguimos fazer diversas análises paramétricas no computador, antes de ir para o experimento, para tentar identificar um comportamento, o que reduz muito os gastos. Mas, ainda assim, em problemas complexos não é possível conviver com uma abordagem só, porque, se seu modelo matemático não funcionar, você fará previsões erradas, então é necessário confrontar a previsão com o experimento”, explicou.
Boa vontade de colegas para compensar falta de equipamento básico
Na pesquisa do biólogo Leonardo Travassos (UFRJ), porém, a situação é mais difícil de contornar. Eleito membro afiliado da ABC para o período 2014-2018, ele lidera um grupo que estuda a resposta auto imune do organismo à doenças do sangue e sua relação com as moléculas de heme (molécula complexa, ferruginosa, que é parte essencial da hemoglobina, proteína existente nas hemácias) e a produção de agregados de proteína.
Ele argumenta que seu trabalho só é possível graças à colaboração com os cientistas de laboratórios próximos do seu. “Com frequência, os reagentes que usamos acabam ou precisamos de uma centrífuga para os experimentos – um equipamento básico que ainda não pudemos comprar – e precisamos ‘bater no vizinho’. Eles são sempre muito solícitos e nos deixam usar”, contou ele.
Para Travassos, é a forma como o professor encara diariamente este tipo de dificuldade que faz a diferença no estímulo do aluno orientado. “Se a cada problema que aparece, pararmos tudo para sentar e praguejar, o aluno desiste. O mais importante de tudo isso é como eles nos vêem reagir a essas situações, para que persistam”, observou.
Falta de investimento impede o país de ser produtor e não consumidor de tecnologias
Assim como Travassos, o químico Brenno Neto (eleito na ABC para o período 2014-2018) acredita que rodear-se de pessoas muito interessadas e dispostas é o grande diferencial. Seu grupo no Instituto de Química da Universidade de Brasília (UnB) estuda marcadores fluorescentes de 2,1,3-benzotiadiazol (BTD) modificado, para aplicação em bioimagem. O composto fluorescente foi usado na identificação de organelas, gotas de lipídios, mitocôndrias e dsDNA nucleares, além ter tido sucesso em aplicações como a investigação do mecanismo de ação de componentes antitumores.
Para Neto, a falta de investimento em pesquisa é o que impede o país de ser produtor de tecnologias, e não consumidor. Ele observa que as boas relações no meio científico são a alternativa para desenvolver esse trabalho. “Ter recursos humanos de qualidade é o melhor que ainda podemos fazer”, refletiu ele.
Apoio da indústria
Já para o pesquisador Gustavo Batista Menezes, a saída encontrada foi a relação com a indústria. O grupo do Acadêmico estuda o desenvolvimento dos fagócitos – células residentes nos tecidos que defendem o organismo por meio da ingestão de elementos estranhos, bactérias, células mortas ou prestes a morrer – em camundongos.
“A análise é iniciada no primeiro dia pós-natal. Estudamos a atuação do fígado no mecanismo de defesa do organismo e na produção dessas células responsáveis pela fagocitose”, explicou o cientista.
Como uma alternativa para desenvolver sua pesquisa, estabeleceu parceria com empresas, como a Nikon, envolvendo instalação de equipamentos de alta qualidade e treinamento de como usar essas ferramentas. “É bom para nós, que conseguimos esse material a valores mais baixos, e para a indústria, que tem o todo nosso apoio para ensinar a usar estes equipamentos”, explicou.
Cooperação nacional, internacional, parceria com empresas, criatividade e muita disposição. Esses são os segredos dos cientistas de países em desenvolvimento, inclusive aqueles que, como o Brasil, estão andando para trás. Porque é muito difícil manter padrões de qualidade internacionais e competitividade global com um nível tão baixo de infraestrutura. Mas eles continuam lutando.