As discussões acerca da interdisciplinaridade entendem as áreas da ciência como próprias de um conhecimento único e comum. Embora a ideia não seja nova, as abordagens conceituais em torno dela só ganharam destaque nos últimos 25 anos. Batizadas de multi, inter e transdisciplinares, essas práticas de conhecimento têm em comum o entendimento de que o saber não tem fronteiras. É essa a conclusão dos Acadêmicos Evando Mirra, Esper Cavalheiro e do sociólogo e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) José Vicente Tavares dos Santos.
O time de intelectuais esteve reunido em palestra na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O encontro aconteceu na segunda-feira, 17 de julho, e fez parte das atividades da 69ª Reunião da Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência (SBPC). No auditório, professores, pesquisadores e estudantes interessados em descobrir um pouco mais sobre os novos caminhos trilhados pela interdisciplinaridade.
Professor emérito da UFMG, Evando Mirra mostrou como o princípio da complementaridade entre as ciências já estava presente no século 19, nos estudos do físico Niels Bohr, cujos trabalhos contribuíram para a compreensão da estrutura atômica e da física quântica. Ou ainda na arte, por meio do quadro do pintor e arquiteto italiano Giotto. “O mundo é mais rico do que é possível expressar a partir de um único ponto de vista. O quadro de Giotto, “Adoração dos Reis Magos”, pode ser visto por diversos ângulos e estudado por diversas disciplinas”, disse o engenheiro.
Segundo Mirra, a interdisciplinaridade é vista em duas vertentes: a transferência de métodos de uma disciplina para a outra e a a convergência fina de uma disciplina com outra. “A aplicação de radioisótopos na saúde, na agricultura e na indústria é um exemplo disso”, ilustrou.
Para o Acadêmico, o conceito de transdisciplinaridade ganhou espaço importante a partir de Jean Piaget, o famoso epistemólogo suíço que influenciou as práticas de ensino e aprendizagem. Com o intelectual, as fronteiras entre as pesquisas deixaram de existir. “Não haveria um espaço de separação e sim de trocas”, ressaltou Mirra.
O engenheiro também discutiu a ideia de circulação de conceitos, que acabou gerando novas disciplinas, conforme aponta Bernadette Vincent. “Temos a criação da Engenharia de Materiais, que combina propriedades químicas e físicas com demandas sociais e interesses industriais. Há ainda os chamados materiais inteligentes, que são estruturas cujas propriedades podem varia segundo mudanças naturais e operacionais”, apontou.
Mirra mostrou ainda que as discussões sobre o tema transbordam os limites quando se pensa a área de economia, por meio dos estudos de Nicholas Roegen, fundador da bioeconomia. Ou ainda, através da pesquisadora Mieke Bal, cujo trabalho “In Travelling Concepts in the Humanities: A Rough Guide (2002)” explora o desenvolvimentos dos conceitos por meio de uma análise cultural interdisciplinar. “Esses autores nos mostram que fazer a leitura com o olhar do outro é um exercício acadêmico bastante prazeroso”, afirmou o Acadêmico.
O professor da UFMG ressalta que a proposta transdisciplinar transborda as fronteiras das disciplinas. Isto é, ela reclama um trabalho coletivo aberto para o novo e o diverso. “Instiga a migração de conceitos, provoca circulações inesperadas”, observou. “A prática da multi, inter e transdisciplinaridade exige um paciente aprendizado. Para que o diálogo seja fecundo, é preciso múltiplos quadros de referência e uma frequência de perguntas. Isso implica na pluralidade de visões, pautado no trabalho coletivo, e no aprendizado de construir visões convergentes”, avaliou Mirra.
Após o panorama teórico sobre o saber sem fronteiras, foi a vez do também Acadêmico Esper Cavalheiro mostrar como o “conhecimento convergente” vem se apresentando nos dias de hoje no campo das ciências da saúde. Neurologista, Esper explicou que o conhecimento convergente é um conceito mais abrangente e que reúne as ideias de multi, inter e transdisciplinaridade. Tal conceito se apresenta claro em nosso dia a dia quando falamos sobre “convergência tecnológica”, que é quando tecnologias que não convergem naturalmente são “forçadas” a interagir. Ou ainda na nanotecnologia (átomos), na biotecnologia (genes) e nas ciências cognitivas (neurônios).
“Essas áreas referem-se ao estudo das interações entre sistemas vivos e sistemas artificiais para o desenvolvimento de novos dispositivos que permitam expandir ou melhorar o ser humano”, disse Cavalheiro.
Para o Acadêmico, do ponto de vista da clínica médica, a convergência de conhecimento tem produzido avanços significativos em algumas áreas. Entre elas, o pesquisador citou as pesquisas em clonagem de genes subjacentes aos principais distúrbios neurológicos, a identificação dos mecanismos de plasticidade neural, a neurofarmacologia, a neurogênese e a morte neuronal e, ainda, os estudos sobre o desenvolvimento normal do sistema nervoso.
“Entender como o cérebro funciona e produz atividade mental é um desafio para o século 21”, salientou Cavalheiro. “Como a atividade cerebral pode gerar pensamentos, emoções e outros comportamentos? Como o cérebro pode se manter sadio, se desenvolver e se aprimorar. Há estudos que associam a neurociência à economia, como maximizar lucros e minimizar riscos?”, acrescentou.
O Acadêmico ressaltou ainda que as grandes instituições universitárias de países do mundo vêm criando institutos de perguntas. “Entende-se que todas as questões humanas precisam de especialistas de diversas áreas, atuando em conjunto, a fim de fazerem uma aceleração de soluções”, informou.
Antropólogo, o Acadêmico Otávio Velho fez uma interferência na fala do colega para lembrar que hoje o Brasil conta com mais de 400 programas de pós-graduação que se pretendem multidisciplinares ou interdisciplinares. “Precisamos tentar entender o que são esses cursos que vêm surgindo. Isso requer que a gente compreenda o que é a prática concreta desse conhecimento multi ou interdisciplinar”, opinou o pesquisador.
Para o sociólogo José Vicente Tavares dos Santos, a possibilidade de se cunhar projetos híbridos de ciência é uma demanda própria da sociedade atual, que busca novas respostas a problemas sociais mundiais. “Temos hoje a sociologia da violência, as teorias do multicausal, a linguística computacional, a nanotecnologia, a teorias do caos, as redes neurais. Percebemos que um novo diálogo entre as ciências físicas e humanas vem se abrindo”, avaliou o professor da UFRGS.
Santos ressaltou ainda que, com a computação, a produção do conhecimento se tornou quase simultâneo. Por isso, para ele, é preciso que a sociologia desenvolva também uma visão planetária, para interpretar essas novas relações em sociedade. “Vários autores têm mostrado que a sociedade contemporânea é a sociedade do conhecimento e da informação. A integração com novas tecnologias oferece uma plataforma digital para uma nova era, onde a abordagem interdisciplinar traz mais criatividade para o campo da experiência”, apontou. Para o professor, diante desse novo mundo, a prática da ciência será sempre convergente, já que tudo é multi, inter e transdisciplinar.