Estudo com sequenciamento e análise de genomas do micro-organismo retraça os caminhos da doença pelas Américas

RIO – O vírus da zika já circulava pelo território brasileiro mais de um ano antes do registro oficial do primeiro caso da doença no país, em maio de 2015. A conclusão é de uma série de estudos que sequenciaram e analisaram 110 genomas do micro-organismo para retraçar os caminhos e a evolução do zika nas Américas com base em suas mutações desde então, publicada nesta quarta-feira na prestigiada revista científica “Nature”.

Segundo os pesquisadores, depois de ser introduzido no Brasil em algum momento no fim de 2013, provavelmente vindo da Polinésia Francesa, que então enfrentava uma epidemia da doença, o vírus se espalhou principalmente na Região Nordeste do país e logo sofreu uma primeira mutação, possivelmente entre janeiro e fevereiro de 2014, que já permitiu diferenciá-lo da linhagem asiática original.

Daqui, o vírus supostamente seguiu rapidamente para outros países das Américas do Sul e Central e atingiu a área do Caribe, partindo de lá para a Flórida. E, como aconteceu aqui, as autoridades de saúde pública destas nações também demoraram a perceber que estavam lidando com uma nova doença, com o período entre o início da circulação do micro-organismo em seu território e o registro oficial da primeira vítima de zika variando de pouco menos de seis meses a quase um ano em locais como Porto Rico, Honduras, Colômbia e EUA.

– Em todos os países a circulação do vírus aconteceu bem antes da detecção dos primeiros casos da doença pelas autoridades de saúde pública, passando despercebido e negligenciado – destaca Thiago Moreno Lopes e Souza, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e um dos autores do artigo central da série na “Nature” sobre a evolução e dispersão do zika no continente.

No seu trajeto pelas Américas, o micro-organismo também continuou a passar por alterações que deram origem a quatro subtipos distintos – conhecidos como clados. Três desses grupos geneticamente diferentes, mas que dividem um ancestral comum, foram identificados, respectivamente, na Colômbia, em Honduras e em Porto Rico, com o quarto subtipo encontrado em partes do Caribe e dos EUA.

Ainda de acordo com os cientistas, os resultados dos estudos atestam a importância de unir as modernas técnicas de genômica aos serviços de vigilância epidemiológica para enfrentar o crescente perigo de epidemias do mundo globalizado.

– O aumento da população global e a globalização trazem este desafio para a saúde pública, com a transmissão de patógenos (agentes causadores de doenças, como vírus e bactérias) numa escala muito mais rápida e maior do que antes na História – lembra Fernando Bozza, pesquisador da Fiocruz e também do Instituto DOr e outro coautor do estudo central da série na “Nature”. – Já vimos o surgimento de vários patógenos “novos” nos últimos anos, como o próprio zika, o ebola e o H1N1 (um tipo de vírus influenza que ficou popularmente conhecido como “gripe suína”, responsável por uma pandemia em 2009) e provavelmente isso vai continuar ou até aumentar nos próximos anos. Então é essencial estarmos preparados para estas futuras epidemias. E isso só acontece se tivermos um sistema de vigilância ativa com uso da genômica estruturado, pois não é mais um desafio técnico.

Mas como saber que doença procurar antes mesmo de se tomar conhecimento de que ela está circulando numa população, como aconteceu com a zika? Para Souza, no entanto, isto não é mais um problema.

– É um jogo de gato e rato mesmo, e em geral é preciso termos um rato para o gato começar a trabalhar – conta o pesquisador. – Mas nos últimos anos houve uma evolução muito grande nos métodos de detecção de genomas virais, que estão mais precisos e rápidos. Temos os recursos disponíveis para juntar a genômica com a vigilância epidemiológica não só para responder mais rápido ao surgimento de uma nova doença como para nos anteciparmos a isso. Creio que esta é uma das mais importantes lições desta epidemia e destes estudos.

Para isto dar certo, no entanto, também é preciso que a população em geral colabore, ressaltam os pesquisadores. Ainda citando como exemplo o caso da zika, ambos contam que o vírus tem uma presença relativamente pequena e transitória no organismo dos doentes, o que limita a “janela” de tempo que a doença pode ter seu diagnóstico efetivamente confirmado por exames genéticos.

– A percepção e comunicação em saúde da população também é fundamental para isso – diz Souza. – Uma pessoa doente deve buscar atendimento prontamente. Se o próprio indivíduo negligenciar seus sintomas, nossa capacidade de detecção dos patógenos pode cair drasticamente e os exames darem até negativo, impedindo a identificação da chegada de uma nova doença. Assim, este tipo de estratégia antecipatória de epidemias também depende da colaboração dos pacientes.

Por fim, embora tenham verificado diversas mutações no vírus da zika depois que chegou nas Américas, os pesquisadores ainda não sabem que efeito elas podem ter provocado tanto na aparente rapidez com que o micro-organismo se espalhou pelo Brasil e pelo continente quanto porque esta epidemia em particular causou um surto de casos de microcefalia nos bebês de grávidas infectadas e de síndromes neuropáticas em alguns doentes.

– Ainda não estabelecemos a funcionalidade destas mutações, mas já catalogamos sua diversidade, que poderá ser usada por nós e outros pesquisadores para descobrir, por exemplo, se elas ajudaram a agilizar o processo de transmissão do vírus – aponta Souza, acrescentando que uma alteração genética recém-identificada como tendo tornado o micro-organismo mais eficiente na contaminação de mosquitos da espécie Aedes aegypti, seu principal vetor aqui, em estudo também publicado na “Nature” está presente em todos os 110 genomas do zika espalhados pelas Américas agora sequenciados.