
No livro “O mito do desenvolvimento econômico”, publicado em 1974, Furtado afirma que os autores da época dão por evidente ser possível universalizar o desenvolvimento econômico, tal qual vem sendo praticado pelos países que lideram a revolução industrial, que os padrões de consumo da minoria da humanidade que vive nos países altamente industrializados poderão ser acessíveis às grandes massas de população em rápida expansão que formam a periferia. Essa ideia constitui, seguramente, um prolongamento do mito do progresso, elemento essencial na ideologia da revolução burguesa, na qual se criou a atual sociedade industrial.
A outra “vaca sagrada” dos economistas, na visão de Furtado, é o Produto Interno Bruto (PIB), um conceito ambíguo, amálgama considerável de definições mais ou menos arbitrárias, cujo conceito de taxa de crescimento é mais ambíguo ainda. Por que ignorar na medição do PIB, o custo para a coletividade da destruição dos recursos naturais não renováveis, e o dos solos e florestas (dificilmente renováveis)? Por que ignorar a poluição das águas e a destruição total dos peixes nos rios em que as usinas despejam seus resíduos?
Se o aumento da taxa de crescimento do PIB é acompanhado de baixa do salário real e esse salário está no nível de subsistência fisiológica, é de admitir que estará havendo um desgaste humano. As estatísticas de mortalidade infantil e expectativa de vida podem ou não traduzir o fenômeno, pois sendo médias nacionais e sociais anulam os sofrimentos de uns com os privilégios de outros, dizia em sua obra o falecido Acadêmico Celso Furtado.
O Brasil é um país com alta biodiversidade, área agrícola desenvolvida, disponibilidade de água; população de tamanho adequado e ainda jovem, recursos naturais abundantes e distribuídos em todo o território nacional. Nossa agricultura é competitiva a nível mundial, mesmo com irrigação de apenas 16% da produção. Temos potencial para produção de energia de baixo carbono. No entanto, com todos estes atributos, a modernização não está trazendo desenvolvimento.
Tundisi destacou três pontos chave na abordagem deste tema: a economia das bacias hidrográficas depende da disponibilidade de água; a água é fundamental para a produção de energia no Brasil e para a produção de alimentos; a poluição e contaminação das águas têm impactos nas economias regional, municipal e nacional. Por esses motivos, os três eixos estão interligados permanentemente, em todos os fóruns: água, energia e alimentos.

A floresta amazônica tem um papel continental de extrema relevância em funçãodos rios voadores. O país tem 89% de cobertura de abastecimento de água – e aprincipal falta é na região norte do Brasil, exatamente a que tem mais água. Temostambém o pantanal, com 200 mil km2“, contextualizou o palestrante.
Urbanização sem planejamento hídrico ameaça os sistemas
No Nordeste, a variabilidade das secas é intensa e há grande alteração da segurança hídrica. Descendo para a região Sudeste, Tundisi referiu-se à São Paulo, onde o sistema de abastecimento está diretamente ligado aos sistemas Guarapiranga e Cantareira. “Onde há parques florestais, há conservação da quantidade e da qualidade da água. São muito boas iniciativas,mas poucas”, explica o especialista. A urbanização tem avançado no estado e em todo o país na direção dos sistemas hídricos, o que tem afetado a segurança hídrica das populações urbanas, pois há um uso competitivo da água -agricultura x abastecimento urbano. “Precisamos avançar no uso de água subterrânea, através de poços.”
Um dos problemas que tem que ser atacados no país, de acordo com Tundisi, é que os planos diretores de muitos municípios não estão preocupados com a gestão dos recursos hídricos, que é o que permite o avanço econômico e social. “E aí entra o aspecto político, que é a proposta de privatização da água. As experiências internacionais são muito negativas, como as de Buenos Aires, na Argentina, e a de Cochabamba, na Bolívia. E como isso está diretamente relacionado com a saúde, fica claro que o estado tem que prover de água a população. Em Cochabamba, por exemplo, as famílias das periferias gastavam 10% de seus rendimentos mensais comprando água e as famílias do centro, apenas 1%.”
Uma saída é a criação de parques urbanos. “As áreas urbanas requerem o manejo integrado, que é pouco desenvolvido no Brasil. Ele ainda é setorial”, disse Tundisi. Este manejo deve envolver as águas de chuva, de inundações, das fontes regulares, a poluição da chuva, os sólidos que entram na água e o esgoto, e tratar estes elementos de forma integrada.
Balança comercial depende diretamente da água
Segundo Tundisi, é sabido que o que equilibra a balança comercial do país é a exportação de alimentos. A agricultura e a irrigação correspondentes, portanto, são sucessos no Brasil.
“O grande salto foi dado graças ao investimento dirigido em pesquisa científica. A Embrapa tem um papel fundamental nisso. Aliás, sempre que o Estado tomou decisões estratégicas de criar instituições especificas deu certo, como vemos com a Embrapa, o CNPq[Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento], a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Nível Superior/MEC], as Faps [Fundações de Amparo à Pesquisa] em todo o país.”

“O grande problema do Brasil é a falta de tratamento de esgoto – hoje temos apenas 40% de esgoto tratado, o que cria um sistema perverso, diretamente ligado a saúde e educação. Precisamos de 60 bilhões atualmente para alcançarmos 70% do país. Existe a tecnologia: o que falta é a decisão política”, ressaltou o especialista. Tundisi destacou um ponto de melhoria, que tem sido praticado especialmente pela indústria química, é o reuso de água. Infelizmente, esta ainda não é uma prática comum no país.
Na avaliação do palestrante, há poucos cientistas trabalhando em poluentes persistentes, como remédios e cosméticos. “Precisamos de gente e laboratórios de nanotecnologia trabalhando nisso.”
Energia conta com outras possibilidades, ainda subutilizadas
A questão da energia é outro problema – nossa base ainda é hidrelétrica. Temos outras possibilidades – energia eólica, solar, de marés, de biomassa. Mas temos 100 hidrelétricas previstas para a Amazônia que vão gerar desequilíbrio ecológico e social. “Esse é um exemplo de modernização sem desenvolvimento. Só que o governo não quer fazer esse debate, quantos reservatórios mais serão feitos na Amazônia? É preciso que haja uma gestão sistêmica.”
Tundisi explica que a gestão sistêmica é uma prerrogativa do século XXI. No século XX, segundo ele, o manejo da água era local,setorial e de resposta. No século XXI, este manejo mudou. Agora é de bacias hidrográficas, integrado e preditivo. “Os Comitês de Bacias existentes vêm evoluindo, mas a ciência básica que conduz cada comitê é diversa. É preciso que se faça uma base científica unificada. E é preciso também que haja planejamento para alternativas econômicas regionais: pagamento por serviços ambientais, proteção de áreas alagadas que são biofiltros, monitoramento em tempo real dos recursos hídricos e outras.”
Desafios de hoje para o Brasil do futuro
Resumindo os desafios a serem enfrentados – com políticas de Estado e não de governo -, Tundisi destacou alguns pontos fundamentais: a falta de saneamento básico, a escassez hídrica e a relação destes itens com a saúde da população; as inadequações e limitações dos padrões de monitoramento da qualidade microbiológica da água; a relação entre o regime hídrico e doenças transmitidas pela água; a falta de estudos sobre vírus entéricos na água; as limitações para o monitoramento de patógenos emergentes na água e possíveis soluções.
Como enfrentar os inúmeros problemas e suas ramificações num país como o nosso, com tantos desafios e diversidade? O país precisa de previsões para se preparar e, para isso, a ciência é fundamental. E como capacitar nossos cientistas, nossos estudantes, para responderem a esses desafios?
“É preciso contextualizar os problemas e apontar as soluções. Temos conhecimento, mas não temos vontade política. Assim o país vai continuar se modernizando, mas não vai haver desenvolvimento.”
Em breve, as outras matérias sobre o evento estarão on line.
Água na mineração, agricultura e saúde: o que a ciência tem a dizer a partir de Minas Gerais
Água e agricultura: o que sabemos e o que temos que saber
Água, saúde e doença: o caso das arboviroses
O Conservador das Águas: um projeto a ser seguido
Tecnologia do irrigâmetro aplicada no manejo da irrigação
Água e mineração: ecoficiência hídrica e geração de valor
Água e mineração: métodos alternativos para disposição de rejeitos
Governança e capacitação para novos negócios em água
Indicadores de governança para o Sistema Estadual de Gestão dos Recursos Hídricos