O Acadêmico José Galizia Tundisi abriu as sessões científicas do evento “Água na mineração, agricultura e saúde: o que a ciênciatem a dizer a partir de Minas Gerais“, realizado na UFMG nos dias 19 e 20 deabril, com uma conferência que abordou um tema identificado pelo falecido Acadêmico Celso Furtado: o Brasil é um país que vem se modernizando, mas não vem se desenvolvendo.

No livro “O mito do desenvolvimento econômico”, publicado em 1974, Furtado afirma que os autores da época dão por evidente ser possível universalizar o desenvolvimento econômico, tal qual vem sendo praticado pelos países que lideram a revolução industrial, que os padrões de consumo da minoria da humanidade que vive nos países altamente industrializados poderão ser acessíveis às grandes massas de população em rápida expansão que formam a periferia. Essa ideia constitui, seguramente, um prolongamento do mito do progresso, elemento essencial na ideologia da revolução burguesa, na qual se criou a atual sociedade industrial.

A outra “vaca sagrada” dos economistas, na visão de Furtado, é o Produto Interno Bruto (PIB), um conceito ambíguo, amálgama considerável de definições mais ou menos arbitrárias, cujo conceito de taxa de crescimento é mais ambíguo ainda. Por que ignorar na medição do PIB, o custo para a coletividade da destruição dos recursos naturais não renováveis, e o dos solos e florestas (dificilmente renováveis)? Por que ignorar a poluição das águas e a destruição total dos peixes nos rios em que as usinas despejam seus resíduos?

Se o aumento da taxa de crescimento do PIB é acompanhado de baixa do salário real e esse salário está no nível de subsistência fisiológica, é de admitir que estará havendo um desgaste humano. As estatísticas de mortalidade infantil e expectativa de vida podem ou não traduzir o fenômeno, pois sendo médias nacionais e sociais anulam os sofrimentos de uns com os privilégios de outros, dizia em sua obra o falecido Acadêmico Celso Furtado.

O Brasil é um país com alta biodiversidade, área agrícola desenvolvida, disponibilidade de água; população de tamanho adequado e ainda jovem, recursos naturais abundantes e distribuídos em todo o território nacional. Nossa agricultura é competitiva a nível mundial, mesmo com irrigação de apenas 16% da produção. Temos potencial para produção de energia de baixo carbono. No entanto, com todos estes atributos, a modernização não está trazendo desenvolvimento.

Tundisi destacou três pontos chave na abordagem deste tema: a economia das bacias hidrográficas depende da disponibilidade de água; a água é fundamental para a produção de energia no Brasil e para a produção de alimentos; a poluição e contaminação das águas têm impactos nas economias regional, municipal e nacional. Por esses motivos, os três eixos estão interligados permanentemente, em todos os fóruns: água, energia e alimentos.

O Brasil tem água suficiente, configurada no mapa do estresse hídrico mundial previsto para 2040. “A Amazônia é o maior sistema de biodiversidade do planeta que depende de água, bilhares de km2 de florestas alagadas são um acervo de segurança social para o país, mas as usinas hidrelétricas da Amazônia vão colocar em risco esse equilíbrio ecológico local.

A floresta amazônica tem um papel continental de extrema relevância em funçãodos rios voadores. O país tem 89% de cobertura de abastecimento de água – e aprincipal falta é na região norte do Brasil, exatamente a que tem mais água. Temostambém o pantanal, com 200 mil km2“, contextualizou o palestrante.

Urbanização sem planejamento hídrico ameaça os sistemas

No Nordeste, a variabilidade das secas é intensa e há grande alteração da segurança hídrica. Descendo para a região Sudeste, Tundisi referiu-se à São Paulo, onde o sistema de abastecimento está diretamente ligado aos sistemas Guarapiranga e Cantareira. “Onde há parques florestais, há conservação da quantidade e da qualidade da água. São muito boas iniciativas,mas poucas”, explica o especialista. A urbanização tem avançado no estado e em todo o país na direção dos sistemas hídricos, o que tem afetado a segurança hídrica das populações urbanas, pois há um uso competitivo da água -agricultura x abastecimento urbano. “Precisamos avançar no uso de água subterrânea, através de poços.”

Um dos problemas que tem que ser atacados no país, de acordo com Tundisi, é que os planos diretores de muitos municípios não estão preocupados com a gestão dos recursos hídricos, que é o que permite o avanço econômico e social. “E aí entra o aspecto político, que é a proposta de privatização da água. As experiências internacionais são muito negativas, como as de Buenos Aires, na Argentina, e a de Cochabamba, na Bolívia. E como isso está diretamente relacionado com a saúde, fica claro que o estado tem que prover de água a população. Em Cochabamba, por exemplo, as famílias das periferias gastavam 10% de seus rendimentos mensais comprando água e as famílias do centro, apenas 1%.”

Uma saída é a criação de parques urbanos. “As áreas urbanas requerem o manejo integrado, que é pouco desenvolvido no Brasil. Ele ainda é setorial”, disse Tundisi. Este manejo deve envolver as águas de chuva, de inundações, das fontes regulares, a poluição da chuva, os sólidos que entram na água e o esgoto, e tratar estes elementos de forma integrada.

Balança comercial depende diretamente da água

Segundo Tundisi, é sabido que o que equilibra a balança comercial do país é a exportação de alimentos. A agricultura e a irrigação correspondentes, portanto, são sucessos no Brasil.

“O grande salto foi dado graças ao investimento dirigido em pesquisa científica. A Embrapa tem um papel fundamental nisso. Aliás, sempre que o Estado tomou decisões estratégicas de criar instituições especificas deu certo, como vemos com a Embrapa, o CNPq[Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento], a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Nível Superior/MEC], as Faps [Fundações de Amparo à Pesquisa] em todo o país.”

Maior problema ainda é o tratamento de esgoto, inexistente em 60% do país

“O grande problema do Brasil é a falta de tratamento de esgoto – hoje temos apenas 40% de esgoto tratado, o que cria um sistema perverso, diretamente ligado a saúde e educação. Precisamos de 60 bilhões atualmente para alcançarmos 70% do país. Existe a tecnologia: o que falta é a decisão política”, ressaltou o especialista. Tundisi destacou um ponto de melhoria, que tem sido praticado especialmente pela indústria química, é o reuso de água. Infelizmente, esta ainda não é uma prática comum no país.

Na avaliação do palestrante, há poucos cientistas trabalhando em poluentes persistentes, como remédios e cosméticos. “Precisamos de gente e laboratórios de nanotecnologia trabalhando nisso.”

Energia conta com outras possibilidades, ainda subutilizadas

A questão da energia é outro problema – nossa base ainda é hidrelétrica. Temos outras possibilidades – energia eólica, solar, de marés, de biomassa. Mas temos 100 hidrelétricas previstas para a Amazônia que vão gerar desequilíbrio ecológico e social. “Esse é um exemplo de modernização sem desenvolvimento. Só que o governo não quer fazer esse debate, quantos reservatórios mais serão feitos na Amazônia? É preciso que haja uma gestão sistêmica.”

Tundisi explica que a gestão sistêmica é uma prerrogativa do século XXI. No século XX, segundo ele, o manejo da água era local,setorial e de resposta. No século XXI, este manejo mudou. Agora é de bacias hidrográficas, integrado e preditivo. “Os Comitês de Bacias existentes vêm evoluindo, mas a ciência básica que conduz cada comitê é diversa. É preciso que se faça uma base científica unificada. E é preciso também que haja planejamento para alternativas econômicas regionais: pagamento por serviços ambientais, proteção de áreas alagadas que são biofiltros, monitoramento em tempo real dos recursos hídricos e outras.”

Desafios de hoje para o Brasil do futuro

Resumindo os desafios a serem enfrentados – com políticas de Estado e não de governo -, Tundisi destacou alguns pontos fundamentais: a falta de saneamento básico, a escassez hídrica e a relação destes itens com a saúde da população; as inadequações e limitações dos padrões de monitoramento da qualidade microbiológica da água; a relação entre o regime hídrico e doenças transmitidas pela água; a falta de estudos sobre vírus entéricos na água; as limitações para o monitoramento de patógenos emergentes na água e possíveis soluções.

Como enfrentar os inúmeros problemas e suas ramificações num país como o nosso, com tantos desafios e diversidade? O país precisa de previsões para se preparar e, para isso, a ciência é fundamental. E como capacitar nossos cientistas, nossos estudantes, para responderem a esses desafios?

“É preciso contextualizar os problemas e apontar as soluções. Temos conhecimento, mas não temos vontade política. Assim o país vai continuar se modernizando, mas não vai haver desenvolvimento.”

Em breve, as outras matérias sobre o evento estarão on line.

Água na mineração, agricultura e saúde: o que a ciência tem a dizer a partir de Minas Gerais

Água e agricultura: o que sabemos e o que temos que saber

Água, saúde e doença: o caso das arboviroses

O Conservador das Águas: um projeto a ser seguido

Tecnologia do irrigâmetro aplicada no manejo da irrigação

Água e mineração: ecoficiência hídrica e geração de valor

Água e mineração: métodos alternativos para disposição de rejeitos

Governança e capacitação para novos negócios em água

Indicadores de governança para o Sistema Estadual de Gestão dos Recursos Hídricos

Água, saúde e bem-estar: como encontrar as interseções