Um estudo liderado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) mostra que o antiviral sofosbuvir, atualmente utilizado para tratamento da hepatite C, possui ação contra o vírus Zika. O efeito foi observado em testes com diferentes tipos de células, incluindo células neuronais humanas, além de minicérebros, organóides produzidos a partir de células-tronco que reproduzem os estágios iniciais de formação do cérebro e são considerados um modelo para o estudo da microcefalia associada ao Zika. A pesquisa apontou que o medicamento inibe a replicação viral, protegendo as células da morte provocada pela infecção. O estudo foi realizado por pesquisadores do Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde (CDTS/Fiocruz), Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz), Instituto de Tecnologia de Fármacos (Farmanguinhos/Fiocruz), Instituto DOr de Pesquisa e Ensino (IDOR), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Inovação em Doenças Negligenciadas (INCT/IDN) e consórcio BMK, formado pelas empresas Blanver Farmoquímica, Microbiológica Química e Farmacêutica e Karin Brüning. A pesquisa foi apoiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj).

Os resultados foram publicados nesta quarta-feira, 18/01, na revista científica internacional Scientific Reports. De acordo com o Acadêmico Thiago Moreno Lopes Souza, pesquisador do CDTS e coordenador do estudo, mais investigações são necessárias antes da realização de ensaios com pacientes, mas os primeiros resultados apontam que o sofosbuvir tem potencial para se tornar uma opção no tratamento da doença. “Identificar a ação contra o vírus Zika de uma droga que já é clinicamente aprovada é muito importante. Ainda não sabemos quando teremos uma vacina disponível contra o Zika e o uso de um medicamento antiviral pode reduzir os danos provocados pela infecção. Dependendo dos resultados futuros, o tratamento poderia até ser considerado como medida profilática, como ocorre, por exemplo, no uso de certos medicamentos antirretrovirais no caso do HIV”, afirma o pesquisador.
A semelhança entre o vírus da hepatite C e o vírus Zika foi um dos motivos que levaram os cientistas a testar o medicamento. Os dois patógenos fazem parte da família Flaviviridae, que apresentam similaridades em algumas de suas estruturas. Uma delas é a enzima RNA polimerase, responsável pela replicação do material genético do vírus e alvo da ação do sofosbuvir. Os efeitos colaterais reduzidos do produto para os pacientes com hepatite C na comparação com outros antivirais e a ausência de prejuízos para a gestação de acordo com estudos em modelos animais também foram levados em conta.
Proteção para minicérebros
Os experimentos foram realizados com uma linhagem do vírus Zika em circulação no Brasil. A partir dos resultados positivos observados em estudos com diferentes linhagens celulares, os pesquisadores decidiram testar o medicamento em modelos mais semelhantes aos cérebros dos bebês quando são afetados pelo vírus Zika durante a gestação. Os experimentos foram realizados com células-tronco neurais de pluripotência induzida e minicérebros. Produzidas em laboratório a partir de células humanas extraídas da pele, as células-tronco neurais de pluripotência induzida são semelhantes às células precursoras que originam os principais tipos celulares do cérebro no início do desenvolvimento dos embriões. Já os minicérebros, produzidos a partir dessas células, são organóides que reproduzem a estrutura tridimensional do cérebro do feto nos primeiros meses da gestação, com a presença de diferentes tipos celulares.

Os testes de infecção experimental foram realizados em parceria com os pesquisadores do IDOR, que desenvolveram os modelos de estudo. Os cientistas verificaram que o sofosbuvir reduziu drasticamente a replicação do vírus Zika tanto nas células-tronco neurais como nos minicérebros, protegendo as células dos danos provocados pelo patógeno. “Observamos proteção mesmo quando as células foram submetidas a títulos elevados de vírus. Considerando que os organóides cerebrais são um modelo para o estudo da microcefalia associada ao Zika, a atividade antiviral detectada é uma forte demonstração do potencial do sofosbuvir”, ressalta Thiago. “Nosso modelo de minicérebros humanos permitiu caracterizar os efeitos de um medicamento que foi capaz de impedir, de maneira bastante satisfatória, a multiplicação do vírus Zika e a morte de células neurais humanas. Trata-se de uma importante descoberta brasileira que poderá ajudar, futuramente, a reduzir as consequências da infecção nos bebês em desenvolvimento”, completa Stevens Rehen, neurocientista do IDOR e da UFRJ.
Resultados em linhagens celulares
O potencial de ação do sofosbuvir sobre o vírus Zika foi avaliado de diversas formas. Em um dos testes, a RNA polimerase do vírus Zika foi purificada para verificar se a forma ativa do fármaco seria capaz de bloquear a sua ação, da mesma forma que ocorre com a RNA polimerase do vírus da hepatite C – hipótese confirmada nos ensaios. Os pesquisadores ainda verificaram que o sofosbuvir provoca tantas mutações no genoma do vírus da Zika que a multiplicação viral se torna inviável. Por isso, protege as células de um processo chamado de patogênese viral.

O medicamento foi testado em quatro diferentes tipos de células infectadas pelo vírus Zika. O sofosbuvir inibiu a replicação do patógeno em três linhagens celulares: uma linhagem de células neuronais humanas, chamada de SH-Sy5y, uma linhagem de células hepáticas humanas, conhecida como Huh-7, e uma linhagem de células de rim de hamster, identificada como BHK-21. Já durante os testes em uma linhagem de células de rim de macaco, que recebe o nome de Vero, não foi observado efeito do medicamento na inibição da replicação viral.
De acordo com Thiago, diversas linhagens c
elulares são utilizadas com frequência em estudos de virologia. “Uma vez que os modelos para estudo do vírus Zika ainda não estão completamente estabelecidos, testamos diferentes linhagens celulares e escolhemos aquelas nas quais o vírus conseguiu se replicar, provocando claramente o efeito citopático [com danos às estruturas celulares]. A ação mais potente do sofosbuvir foi observada nas células hepáticas e neuronais humanas”, ressalta o pesquisador. Segundo ele, a ausência de efeito do antiviral nas células Vero pode ter diferentes explicações. “Isso ainda não foi investigado, mas é possível que o sofosbuvir não consiga penetrar nessas células ou que, dentro delas, ele não seja convertido na sua forma ativa, o que é necessário para sua atuação. Também é possível que as células Vero tenham algum mecanismo para eliminar o fármaco, impedindo a sua ação”, pondera.
Colaboração científica
A parceria entre grupos de pesquisa é considerada essencial para os resultados obtidos e para as próximas etapas do estudo. “Esse trabalho envolveu diversos laboratórios, que contribuíram com as suas áreas de experiência, produzindo rapidamente um resultado importante. A colaboração traz mais respostas e mais qualidade para a pesquisa”, afirma Eduardo Volotão, pesquisador do Laboratório de Virologia Comparada e Ambiental do IOC, que realizou a concentração e a purificação das amostras de vírus Zika utilizadas no estudo. No IOC, os Laboratórios de Imunofarmacologia, de Flavivírus e de Vírus Respiratório e do Sarampo também colaboraram com o trabalho.
De acordo com os cientistas, o fato de o sofosbuvir ser um medicamento já aprovado para uso em pacientes no caso da hepatite C pode facilitar o avanço da pesquisa. “Geralmente são necessários anos para um fármaco sair da fase de estudos pré-clínicos e chegar aos ensaios com pacientes. Como o sofosbuvir já passou pelos testes de segurança e foi aprovado para uso contra a hepatite C, esse processo pode ser bastante acelerado”, diz Thiago.
Sofosbuvir contra hepatite C
O sofosbuvir é um fármaco inovador, que foi lançado em 2013 e chegou ao Sistema Único de Saúde (SUS) para tratamento da hepatite C em dezembro de 2015. Como a maioria dos antivirais, o medicamento não está disponível nas farmácias e sua utilização só poder ser feita com acompanhamento médico. No tratamento da hepatite C, o remédio é utilizado em associação com outros antivirais. Entre as vantagens na comparação com as terapias anteriores estão o aumento da chance de cura, a redução dos efeitos colaterais e a possibilidade de administração por via oral.Em maio de 2016, a Fiocruz e o consórcio BMK assinaram um acordo para produzir o remédio no Brasil.