“Se outras vidas houvesse, a opção seria estudar química, relicário que guarda o segredo da vida.” A frase, escrita por Angelo da Cunha Pinto, representa o significado dessa disciplina para o professor falecido em outubro de 2015, que dedicou sua carreira ao estudo dos produtos naturais brasileiros e foi pioneiro na síntese orgânica. Em homenagem ao Acadêmico, a Academia Brasileira de Ciências (ABC) organizou um simpósio, idealizado pela também Acadêmica Maria Vargas, esposa de Angelo Pinto, no dia 2 de dezembro, data em que ele completaria 68 anos.
“A ideia foi reunir os amigos, colaboradores, ex-alunos, admiradores de Angelo, para celebrar a vida dele – não apenas como químico, mas como amante das artes, do bom papo, da SBQ [Sociedade Brasileira de Química, que presidiu entre 1986 e 1988]”, afirma Maria Vargas. “Ele teve influência na vida de um número imenso de pessoas e é muito querido por gente de várias áreas, que vieram de todo o Brasil para este simpósio. Ele era muito carinhoso com os amigos, mas podia ser terrível também, bastante crítico! Eu o tive como um grande companheiro, na química e na vida.”
Maria Vargas e Jailson de Andrade, na abertura do simpósio
Nascido na província portuguesa de Marco de Canavezes, em1948, Angelo da Cunha Pinto bacharelou-se em farmácia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1971, obteve o título de mestre em química pelo Instituto Militar de Engenharia (1974) e de doutor na mesma área pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1985). Era pesquisador 1A do CNPq e membro titular da ABC desde 1997. Suas linhas de pesquisa se estenderam por vários domínios da química orgânica, mas sua grande paixão sempre foi a química de produtos naturais.
Como conta o Acadêmico e químico da Universidade Federal Fluminense (UFF) Vitor Francisco Ferreira, Angelo Pinto sempre foi um excelente aluno em história e só tirava nota 10 – daí veio seu gosto pela história da ciência. “Ele gostava reunir os amigos e contar histórias de plantas, bruxarias, religião, naturalistas e poesias relacionadas aos produtos naturais”, escreveu Ferreira. “Dizia que, para se conhecer os segredos e os mistérios das plantas, era necessário conhecer o seu metabolismo secundário. Isto significava descobrir as suas micromoléculas e os seus papéis na vida dos vegetais. Por coincidência, a comissão do Nobel o homenageou, premiando a área de medicina que utilizou os produtos naturais para tratar as doenças parasitárias negligenciadas.”
Pinto foi um pesquisador muito atuante dentro da comunidade química e um grande articulador da ciência nas agências de fomento. Na sua militância na SBQ, ocupou a editoria do Journal of the Brazilian Chemical Society, período em que o periódico passou ter reconhecimento nacional e internacional e se tornou um dos principais periódicos da América Latina. Também foi um dos mentores da criação da Revista Virtual de Química.
1. Angelo, aos três anos, ao lado do irmão; 2. aos cinco anos, em companhia dos pais e do irmão; 3. aos 13 anos, vestindo o primeiro terno; 4. de braços cruzados na formatura do ginásio, em 1962; 5. entre os filhos Mariana e Manuel; em 2006, com a filha Alice; 6. abraçado à esposa, Maria, em Portugal (Crédito: Revista da Faperj | Ano VIII | nº32 | setembro de 2015. Design: Pedro Dantas)
Angelo da Cunha Pinto publicou 336 artigos, quatro livros e seis capítulos de livros, teve 5.109 citações, fator H 34, orientou 49 mestrados, 34 doutorados, 11 pós-doutorados e três conclusões de graduação. Participou de 67 bancas de mestrado e 52 de doutorado.
Seu trabalho foi reconhecido por meio de muitos prêmios e condecorações: Comendador (1998) e Grã-Cruz (2004) da Ordem Nacional do Mérito Científico pela Presidência da República do Brasil; Químico do Ano e Retorta de Ouro pelo Sindicato dos Químicos e dos Engenheiros Químicos do Rio de Janeiro (1995); Químico do Ano pelo Conselho Regional de Química do Rio de Janeiro (1995), Medalha Simão Mathias pela SBQ (1997); Medalha Paulo Carneiro pela UNESCO, Academia Brasileira de Ciências e Academia Brasileira de Letras (2001).
Confira, a seguir, o depoimento de amigos, colegas e colaboradores de Angelo da Cunha Pinto:
Carlos Aragão, físico da UFRJ e membro da Comissão Deliberativa da Comissão de Energia Nuclear (CNEN): “Com o Angelo eu tinha uma relação de amizade. Ele era um personagem muito especial e nós trabalhamos juntos no Pronex [Programa de Apoio a Núcleos de Excelência], o primeiro programa a apoiar grupos de pesquisa e que foi praticamente uma revolução no país, em 1996. Foi um precursor, depois dele vieram os Institutos do Milênio, os INCTs, então era uma primeira tentativa de se dar apoio a grupos de forma continuada por um período de tempo razoável, e o Angelo foi muito importante, porque ele fez parte da comissão que eu também integrava, que analisava os projetos das áreas de ciências naturais e da matemática. Então foi uma época muito rica, porque de certa maneira lançamos as bases de um processo de avaliação de grandes projetos. E interagir com o Angelo é uma coisa muito gostosa. Ele tinha esse lado boêmio, era uma pessoa extremamente acessível, muito fácil de lidar, além de um excelente cientista, uma pessoa que tinha uma motivação genuína para a ciência. Tínhamos um contato sempre agradável. Uma das vezes que nos encontramos por acaso foi em Salvador e foi uma delícia, porque ele era uma pessoa que tinha um gosto pela vida, era generoso, extremamente informal, um português carioca! Mesmo doente, continuava muito cheio de vida e nunca se deixou abater. É uma pena que a gente não possa mais contar com ele, mas ele deu uma contribuição muito importante para a química no Brasil, como esse simpósio demonstrou. Mas, além disso, ele faz falta pela alegria, entusiasmo e a maneira genuinamente interessada de fazer ciência. Era muito difícil não ser amigo do Angelo.”
Débora Foguel, bióloga da UFRJ e ex-pró-reitora de Pós-Graduação e Pesquisa: “Eu não sou da área de química, e meu primeiro contato com o prof. Angelo foi de fato na Ufrj, quando eu fui aluna dele na disciplina de química orgânica, no curso de biologia, na década de 80. O prof. Angelo era conhecido pelo seu jaleco curto e seus tamancos – ele andava com uns tamancos de madeira muito barulhentos e assim a gente o identificava! Depois eu sempre estive próxima porque ele era professor do NPPN [Núcleo de Pesquisas de Produtos Naturais]; eu costumava cruzar com eles nos corredores e sabia, pelos comentários de colegas próximos, do talento e das contribuições importantes que ele fez. O prof. Angelo era um identificador de talentos. Fiz um levantamento de vários desses talentos que ele identificou, seus 34 alunos de doutorado, e conferi que estão todos empregados, em instituições de todo o país. Acho que o prof. Angelo foi um pesquisador brilhante, um homem querido por todos os seus alunos e pares e são essas as lembranças que eu guardo.”
Eliezer Barreiro, farmacêutico da UFRJ: “Eu e Angelo virávamos a noite no pátio da UFRJ da Praia Vermelha, no Rio, discutindo questões do movimento estudantil, na época da ditadura. Foi como se ali surgisse o pacto para a sua candidatura à Reitoria da UFRJ, foi um pouco fruto desse convívio que muitas vezes, era um pouco mais etílico, do que devia. Muitas vezes, no final da tard
e, o Angelo saía do CT [Centro de Tecnologia da UFRJ], ia até o CCS [Centro de Ciências da Saúde], batia na minha porta por volta das 18h e dizia que estava com sede. Aí abríamos uma água mineral, a única coisa que se podia beber em território federal, e discutíamos assuntos variados, como de que forma o Instituto do Milênio poderia contribuir com a formação de pessoas com espírito aguçado e com a nossa independência de insumos farmacêuticos, que ainda não atingimos.”
Jacob Palis, matemático do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa) e ex-presidente da ABC: “Este evento homenageia uma grande figura da química. Foi uma pessoa muito importante para a ciência, sem dúvida nenhuma, que fazia uma dupla admirável com o Jailson de Andrade. A química evoluiu muito nos últimos anos graças a essas duas figuras. Fiquei muito feliz por terem mencionado durante o simpósio os Institutos do Milênio, criados em 2001. Eu participei dessa aventura, cuja ideia era a de ter grupos seletos de diversos países que desenvolvessem a ciência nos principais campos de cada país e, no caso do Brasil, um deles foi o Instituto de Química da UFRJ, que levaram adiante magnificamente.”
Jailson de Andrade, químico da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e secretário do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC): “Nós nos conhecemos em 1982 e desenvolvemos uma amizade intensa, que foi além. Escrevemos vários artigos científicos e uma sequência de editoriais que pautou a química durante muito tempo. Tivemos uma boa convivência em vários momentos, com famílias e amigos. Era comum ele ir para Salvador e ficar lá em casa, eu também ia para o Rio encontrá-lo. Foi uma amizade tanto no campo pessoal quanto no campo profissional.”
Auditório da ABC lotado na homenagem ao químico. Crédito: Pedro Dantas
Jerson Lima, médico da UFRJ e diretor científico da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj): “Conheci o Angelo inicialmente porque eu era aluno de iniciação científica, depois de doutorado no Departamento de Bioquímica. Como eu tinha feito escola técnica de química, eu tinha interesse em aprender mais sobre essa área. Falei com o Angelo e ele me disse para fazer um curso avançado que ele estava dando. Era um excelente professor. Depois, fui para o pós-doutorado nos Estados Unidos e comecei a usar a técnica de ressonância magnética nuclear. Quando voltei, em 93, tive a ideia de criar um centro de ressonância voltado para macromoléculas, e a primeira pessoa que fui consultar foi o Angelo, porque ele era um químico orgânico renomado. Ao conversar com ele, ele disse que era uma grande ideia e deu todo apoio, foi um dos grandes entusiastas e defensores na época; aquilo me impressionou muito. O Angelo, quando falava, ficava com os olhos esbugalhados, quase que projetando no futuro a existência do centro. Foi uma longa e difícil trajetória. O que me marcou foi como o Angelo influenciava para além da área dele, em outras áreas que tinham uma interface com a química, além de ser muito voltado para os jovens. Ele identificava os desafios, olhava para frente e via o que precisava ser feito. No caso do centro, ele realmente emprestou todo o seu prestígio, e comecei a descobrir que ele fazia isso com tudo. Essa era sua grande característica. Agora estamos com esse grupo de estudo na ABC, o Projeto de Ciência para o Brasil, e o Angelo estava sempre pensando, justamente, em um projeto de ciência para o Brasil.”
Paulo Suarez, químico da Universidade de Brasília (UnB): “Eu tive muito contato com o Angelo nos comitês da Capes, aí surgiu uma amizade e depois uma colaboração. Trabalhamos juntos na área de biodiesel e tivemos artigos publicados, mas nosso maior contato foi nos comitês. Foi muito gratificante ter conhecido o Angelo e ter trabalhado por dez anos com ele.”
Raimundo Braz Filho, químico da Universidade Estadual do Norte Fluminense: “Além de professor, educador e cientista com alma de artista, eu acrescentaria que o Angelo foi um cidadão, empenhado e preocupado com a ética e os interesses sociais. Tive o privilégio de conviver com este grande amigo e irmão e vou preservá-lo como eterno companheiro de lutas, de intensa atividade acadêmica-científica, de conduta moral e cidadã, das prolongadas cervejadas nas mesas de bares e das ressacas consequentes.”
Vanderlan Bolzani, química da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e vice-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC): “Angelo foi um grande companheiro quando eu saí da Paraíba para São Paulo. Ele me entendia e, por isso, nos tornamos amigos. Quando eu fiquei grávida da Mariana, que tem o mesmo nome da Mariana do Angelo, ele me dava bananas. Mas a coisa mais generosa que o Angelo fez foi quando terminamos o trabalho da minha dissertação de mestrado e ele não aceitou assinar como parceria. Disse que eu fiz tudo sozinha e que ele só me deu um empurrãozinho, porque eu era uma “paraibanazinha” sozinha na USP. Lembro de quando Angelo se encantou com as plantas na Serra do Cipó, em Minas Gerais, quando pesquisava as velloziaceas. Na véspera do simpósio, escrevi um soneto para ele:
Soneto para minhas Velloziaceas
Vivi tão intensamente que não me dei conta que ia partir!Só a flor na rocha sentiu e não quis me falar.
E plantadas na pedra não conseguiu me segurar!E meu coração apertou por que já não queria me retirar.
Não suporto ver minha flor triste e sem a minha ciência chorar! Mas te prometo que daqui, terei todo o tempo livre para te velar. Mesmo agora tendo um céu que nos separa, sinto que és a flor,
Que por minha vida vai brotar e, minha ciência continuar. Pode até pensar que te troquei por mais bela e desconhecida! Mas te juro só para te terei mente razão e olhar, Daqui, longe contempla-la, posso te entender sem me cansar.
Assim, não tenha motivo para desalento, E se tiver, espero, com sabedoria possa contornar!
Se a partida estar escrita nos genes, creia mesmo longe vou continuar…...”
Assista ao vídeo exibido durante o simpósio em homenagem a Angelo da Cunha Pinto: