Entre as ações de combate ao vírus da Zika, que se tornou uma preocupação nacional a partir do ano passado, a principal delas é suprimir o mosquito Aedes aegypti, considerado, até então, o seu principal vetor. No entanto, estudos recentes mostram que um outro mosquito, muito bem conhecido pelos brasileiros, pode ser o maior transmissor desse vírus: o Culex, conhecido popularmente como pernilongo ou muriçoca, e presente em todo o país.
Constância Ayres (Fiocruz/PE), Stevens Rehen (IDOR/UFRJ), Rodrigo Stabeli (Fiocruz), que coordenou
a mesa-redonda sobre formas de combate ao mosquito transmissor da zika, e Paolo Zanotto (USP)
As evidências foram apresentadas pela pesquisadora Constância Ayres, do Departamento de Entomologia da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) de Pernambuco, durante a 68ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), realizada no início de julho na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), em Porto Seguro. Segundo Constância, alguns trabalhos já haviam mostrado a baixa eficiência na transmissão do vírus pelo Aedes em alguns lugares, como o Rio de Janeiro e, ao serem analisadas várias espécies, constatou-se que o Culex apresentou uma taxa de infecção dez vezes maior que a do Aedes aegypti.
“Se várias espécies de Aedes estão implicadas no ambiente de transmissão no campo, por quê, no ambiente urbano, apenas uma espécie seria o vetor do vírus?”, questionou a pesquisadora. Ela informou que, até então, todos os estudos estavam voltados para o Aedes aegypti, não considerando a possibilidade de outros vetores também transmitirem o vírus. “Afinal, febre amarela, dengue e chikungunya são transmitidas principalmente pelo Aedes, então por que a zika não seria?” Constância acrescentou que o Aedes aegypti é muito raro na Polinésia Francesa, região que viveu o surto de zika que trouxe o vírus ao Brasil, em 2013. “Ilhas que tiveram surto não têm Aedes aegypti, mas têm bastante Culex.”
No Brasil, o pernilongo é o mosquito mais presente – em torno de 20 vezes mais abundante que o Aedes. Já se sabia que ele transmitia arbovírus, que são próximos geneticamente ao vírus zika. “Então por que não seria também vetor deste? Começamos a investigar e fizemos infecção artificial no laboratório, e agora estamos estudando a resposta imune do mosquito a essa infecção.” “Quando o mosquito se alimenta”, explicou Constância, “o sangue vai direto para o intestino, onde há a primeira barreira para a infecção. Depois há a barreira de escape no intestino e, em seguida, ele deve infectar a glândula salivar, para depois escapar e sair pela saliva e ser, enfim, transmitido.” São, portanto, quatro barreiras pelas quais o vírus deve passar.
Assim, sua equipe fez a comparação entre o intestino e glândula salivar e taxas de infecção e de transmissão e notaram que estas eram bem semelhantes. Coletaram a saliva, extraíram o RNA e viram que o vírus estava, de fato, presente. “Então é a mesma carga viral que a do Aedes, os dois são vetores, mas se o Culex é vinte vezes mais abundante no ambiente urbano, quem é o maior vetor? Eu estou convencida de que não é o Aedes aegypti.”
Controle da epidemia
A implicação de ter outros vetores é que isso muda drasticamente as formas de controle, porque os mosquitos são diferentes. O Culex pica durante a noite, o Aedes durante o dia; o Aedes coloca os ovos em água limpa e parada, o Culex prefere água extremamente poluída, requerendo, portanto, investimento em saneamento, que é um problema histórico do Brasil. Não se trata, todavia, de um caso perdido. É possível mapear 100% dos criadouros em uma determinada área, pois o Culex põe todos os seus ovos no mesmo lugar, diferentemente do Aedes , que os distribui. “A chance de sucesso de controle do Culex é maior que a do Aedes . A prova é que até hoje não conseguimos controlar a dengue”.
Constância complementou que, se apenas o Aedes fosse o transmissor da zika, esta seria uma doença democrática como a dengue, que alcança a todos, e não estaria concentrada nas periferias, atingindo os mais pobres. Ela ressaltou que o controle do vetor tem que ser feito de forma intensiva, o ano todo, independentemente de epidemia. “Zika é um problema social; não podemos culpabilizar o mosquito.”
Minicérebros e microcefalia
Stevens Rehen, diretor de pesquisa do Instituto DOr de Pesquisa e Ensino (IDOR), professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e membro afiliado da ABC de 2008 a 2012, apresentou, na Reunião Anual da SBPC, seu trabalho que, utilizando minicérebros, comprovou a relação entre zika e microcefalia em bebês de mães infectadas. Os minicérebros são estruturas desenvolvidas em laboratório a partir da técnica de reprogramação celular, que reproduzem o funcionamento do cérebro humano.
Em 25 dias de trabalho ininterrupto, Rehen e sua equipe observaram que, após infectarem essas estruturas com o vírus zika, houve uma redução de 40% no crescimento desses organoides, que simulavam o córtex cerebral de um feto com um mês de gestação, no período de 11 dias. O trabalho, desenvolvido inteiramente no Brasil, foi publicado na conceituada revista Science. “Fizemos o mesmo com a dengue, que também infectou as células, mas não afetou a neurogênese”, contou o cientista.
Outro trabalho, desenvolvido por Stevens Rehen e por colegas, revelou a redução de células progenitoras ao utilizar o vírus isolado, confirmando a morte celular associada a este processo. Mais um estudo, liderado pelo pesquisador Amílcar Tanuri, mostrou a redução da infecção utilizando cloroquina, que pode ser, portanto, um medicamento contra o vírus, inclusive para grávidas. Ambos foram compartilhados como preprint (artigos científicos que ainda não foram publicados nem passaram pela revisão pelos pares, mas são divulgados na comunidade científica para que tenham uma circulação rápida).
As mudanças do vírus ao longo do tempo
Paolo Zanotto, professor do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP), falou sobre as hipóteses para a causa de o vírus da zika, que até pouco tempo não gerava maiores preocupações, ter se tornado um caso grave de saúde pública. Segundo Zanotto, a mobilidade do vírus foi grande. Ele foi isolado pela primeira vez em Uganda, em 1947, e se movimentou para a Malásia por volta de 1960. Depois, seguiu para a Micronésia e, até então, não havia nenhum problema associado a surto de humano para humano, apenas o que europeus chamavam de “febre vermelha”. “Existia atividade do vírus, mas não o que se observou aqui no Nordeste, no ano passado.”
O momento mais importante foi 2007, quando aconteceu o surto na Micronésia e o vírus se espalhou pela África Central, uma faixa da América do Sul, México e Ásia. Em seguida, surgiu a síndrome congênita por zika. “Uma explicação para um vírus que antes não fazia nada e de repente torna-se uma monstruosidade pode ser o efeito demográfico”, afirmou Zanotto. Enquanto a Polinésia Francesa cont
ava com cerca de 280 mil pessoas, no Brasil, o vírus encontrou milhões de indivíduos suscetíveis. “A partir daí, é possível começar a ver uma pontinha desses milhares de casos, que seria a microcefalia, o que não acontecia na Polinésia.”
ava com cerca de 280 mil pessoas, no Brasil, o vírus encontrou milhões de indivíduos suscetíveis. “A partir daí, é possível começar a ver uma pontinha desses milhares de casos, que seria a microcefalia, o que não acontecia na Polinésia.”