Em reportagem especial publicada na Revista O Globo do dia 8 de maio, em sequência à comemoração de 100 anos da Academia Brasileira de Ciências, foram traçados os perfis de grandes cientistas brasileiros falando sobre seus trabalhos e sobre sua vida cotidiana. Confira abaixo os perfis de Stevens Rehen, membro afiliado da ABC entre 2008 e 2012, e de Sandra Azevedo, membro do grupo de estudos da ABC sobre Recursos Hídricos.
Muita pesquisa, mas no ritmo do reggae
O cajón é um instrumento relativamente simples, pau para toda obra na percussão. Vai bem com funk, rock e, para o neurocientista Stevens Rehen, sobretudo reggae. É com um cajón e outros instrumentos de percussão que Rehen se diverte nos poucos momentos em que não respira ciência e investiga minicérebros, células-tronco e os efeitos do vírus zika sobre o sistema nervoso, de domingo a domingo. Rehen, que aos 45 anos se tornou um dos cientistas brasileiros de maior evidência no momento, reconhece que pensa o tempo todo em ciência. Não por obrigação. Apenas porque gosta. Mais do que trabalho, ciência para ele é um modo de vida, com pitadas de reggae e esporte com moderação. Ele, na verdade, é casado com a ciência. Sua mulher, Helena Borges, é professora e pesquisadora de oncologia da UFRJ e sua maior parceira de troca de ideias e projetos. Juntos há 16 anos, são pais de Alice, de 8 anos, e Gael, de 3. Os meninos já ganharam chocalhos para acompanhar o pai na percussão. Ou não fazer feio na frente do tio paterno, o antropólogo Lucas Kastrup, baterista da festejada banda de reggae Ponto de Equilíbrio.
Antes de a biologia celular tomar Rehen de corpo e coração, ele chegou a pensar a se dedicar ao reggae. Teve duas bandas -Tiranossauro Reggae e Mula Rouca. Durante dois meses do curso de graduação em Biologia na UFRJ, Rehen se viu músico para sempre. Paixão relâmpago. Deixou a música por um estudo de diferenciação celular. Apaixonou-se pelo ritmo de vida e morte das células e foi trabalhar no laboratório de Rafael Linden, um dos grandes especialistas da área.
– Sou um cara da biologia celular. Hoje, trabalho com células-tronco e elas estão na base de tudo o que faço, de minicérebros ao zika – explica.
Quando não está no laboratório do Instituto DOr de Pesquisa e Ensino (IDOR), do qual é diretor de pesquisa, é encontrado dando aulas na UFRJ. Ou em alguma palestra. Ou ainda em trabalhos de divulgação científica e atividades do ArtBio, projeto que integra artes e ciência, criado por ele.
– Foco, curiosidade e satisfação sempre moveram minha vida. Acho que por isso acabei cientista.
Carioca de raízes baianas, Rehen foi investigar células-tronco no início dos anos 2000, quando eram menos que promessa, e justamente em nosso órgão mais complexo, o cérebro. Em 2005, teve a coragem de trocar uma posição no Instituto Scripps, nos EUA, uma das instituições de pesquisa mais prestigiosas do mundo, por uma vaga de professor da UFRJ. Brigou com grupos conservadores que queriam banir as pesquisas com células-tronco no Brasil.
E, milhares de horas de trabalho depois, empregou o que sabia para desenvolver minicérebros, estruturas de laboratório que simulam o funcionamento do cérebro humano. Mais recentemente pôs seus minicérebros a serviço do combate do vírus zika. Este estudo rendeu a ele e a sua equipe uma espécie de Oscar da Ciência, com publicação na “Science”.
– Apesar de toda a crise e do momento muito difícil pelo qual passamos, há oportunidades. A Biologia passa por uma fase de crescimento. É preciso voltar o olhar para a inovação, para as parcerias com a iniciativa privada. Não penso em ir embora.
Apesar do apego ao planejamento e ao trabalho duro, Rehen virou neurocientista por acaso:
– Ninguém tem formação acadêmica na minha família. Quando entrei na universidade, meu pai era aposentado do Banco do Brasil e meu avô plantava cacau. Minha mãe, dona de casa.
Ele se diverte quando lhe perguntam se é filho de estrangeiros:
– Sou tijucano radicado em Botafogo. Meu pai se chama Clodoaldo e minha mãe, Márcia. Meus irmãos são Leonardo, Lucas e Igor. Meu pai queria um nome diferente para combinar com o Rehen, que tem origem francesa. Pensou em Darwin. Acabei Stevens.
Domadora da bactéria que é o “capeta”
Só para facilitar a matemática, suponhamos que você, leitor, pese 80 quilos e tenha feito alguma coisa suficientemente perversa para justificar que a bióloga Sandra Azevedo queira lhe ver sete palmos abaixo da terra. Pois bem, em sua conta, seriam precisos apenas 320 microgramas de saxitoxina para finalizar o serviço – uma causa mortis definida por ela como hidrossolúvel, não detectável “nem no cafezinho” e que é 250 vezes mais eficaz do que o temido (e sempre ilustrado com uma caveirinha) cianeto. O que impede a cientista de sair envenenando todo mundo que a fecha no trânsito, então? A resposta está no seu lado B – ou seria o seu lado A?
Nesse caso, a ordem dos fatores não altera o produto. Sandra, uma das pioneiras no estudo de cianobactérias no Brasil, é, no laboratório que coordena na UFRJ, exatamente o espelho do que se mostra dentro de casa: uma verdadeira mamma italiana. Para um aluno que está atrasado com a prestação de contas de uma verba que ganhou, ela repreende: “Te mato se tiver que devolver dinheiro, hein!” É uma versão do clássico “você acha que dinheiro dá em árvore?”. Outra aluna, dona de amostras supostamente contaminadas, ela convida: “Vem ver o que aconteceu. Que peninha…” É o “acontece com todo mundo…” Nesse momento, passa uma terceira e elogia a farofa de cebola com proteína de soja, preparada pela professora em outro dia.
Há três anos, cheios de boas e más intenções, seus alunos fizeram uma vaquinha para comprar um fogão de presente de aniversário para Sandra.
– Eu dizia: “Ai, queria tanto um fogão com forno no laboratório, pra fazer um bolo à tarde procês…” – suspirava com seus “erres” cheios de voltas, como é típico em São João da Boa Vista, interiorzão de São Paulo. – Tinha um professor de química que falava que o feeling da cozinha vem junto com o da ciência. Acho que ele tinha razão.
Sandra cursou Biologia, mestrado e doutorado na Universidade Federal de São Carlos. Quando veio para o Rio acompanhada dos filhos pequenos e do marido, recém-aprovado num concurso da Fiocruz, encontrou na cozinha um ambiente para trabalhar o seu “lado lúdico”. Morando na Ilha do Governador, pertinho do Fundão, consegue reproduzir no Rio a vida que levava nas cidades de interior onde morou. Durante anos, ela voltava para almoçar em casa, e fazia dos jantares e das refeições de fim de semana momentos sagrados, “onde se briga e se ama em volta da mesa”. Faz cursos de culinária, mantém uma horta com temperinhos e prepara marmitas mediterrâneas (com legumes variados) diariamente para a família. Por isso, toda vez que viaja para participar de algu
m congresso ou de outro projeto qualquer, a cientista volta com a mala abarrotada de temperos. Sua cozinha de 40 metros quadrados tem de óleo de abóbora esloveno a pimentas turcas.
m congresso ou de outro projeto qualquer, a cientista volta com a mala abarrotada de temperos. Sua cozinha de 40 metros quadrados tem de óleo de abóbora esloveno a pimentas turcas.
E, graças às cianobactérias, Sandra viaja muito. Para a maioria esmagadora não familiarizada com o assunto, ela explica:
– A cianobactéria é uma bactéria metida a besta, que aprendeu a fazer fotossíntese. É um organismo de três bilhões de anos, que formou uma antena e foi captar luz do sol e transformar matéria inorgânica em matéria orgânica. Se hoje respiramos oxigênio na face da Terra, é por causa dela. O problema é que ela tem uma capacidade enorme de adaptação: da poluição, porque já está aqui há muito tempo, aos desertos, passando por águas de fontes termais aquecidas a 90 graus. É o capeta em forma de organismo! – diverte-se Sandra, que só bebe água engarrafada, mas jura que dicotomiza suas outras neuroses.
Por ter feito parte da primeira equipe a pesquisar as cianobactérias na América Latina, Sandra, vez por outra, tira sua capa de super-heroína do armário e vai socorrer comunidades em apuros. Foi assim numa creche municipal em São José do Egito, em Pernambuco, por causa de água não tratada; foi assim na “Tragédia da Hemodiálise” de Caruaru, quando 60 pacientes renais crônicos morreram em 1996.
– Ser cientista é não perder a curiosidade. Querer saber o que está do outro lado do muro. É uma profissão abençoada – crava com convicção científica.