Em 1916, um grupo de professores da Escola Politécnica do Rio passou a fazer reuniões informais para discutir o desenvolvimento de pesquisas no país. Nascia ali a Sociedade Brasileira de Ciências, depois rebatizada de Academia Brasileira de Ciências (ABC). A entidade comemora seu centenário nesta terça-feira, quando será aberta, no Museu do Amanhã, uma exposição e uma série de debates durante os quais pesquisadores discutirão temas atuais, como a epidemia de zika, novas tecnologias e sustentabilidade. Também será um momento oportuno para discutir um dos assuntos que motivaram a criação da instituição e que esteve presente ao longo desses cem anos: os desafios de se fazer ciência no Brasil.
De acordo com um levantamento anual da consultoria Thomson Reuters, que leva em conta quantas vezes o trabalho de um cientista é citado em outros artigos, o país teve apenas quatro representantes entre os 3.126 pesquisadores mais influentes do mundo em 2015. São eles: os físicos Paulo Artaxo, da Universidade de São Paulo (USP), e Ado Jorio, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o médico Álvaro Avezum, do Instituto de Cardiologia Dante Pazzanese, em São Paulo, e o engenheiro agrônomo Adriano Nunes-Nesi, da Universidade Federal de Viçosa, em Minas Gerais.
Segundo pesquisa realizada pelo portal “Nature Index”, pesquisadores brasileiros participaram da publicação de 991 artigos nas 68 principais revistas científicas do mundo, de fevereiro de 2015 a janeiro de 2016. Com isso, o país aparece em 24º lugar no ranking internacional de nações com maior número de estudos divulgados por essas publicações.
– Temos grupos que publicam em grandes revistas, mas ainda são poucos – avalia o físico Luiz Davidovich, que assumirá esta semana a presidência da ABC. – Nossa ambição é pautar a ciência internacional, mas precisamos de um apoio consistente. Precisamos de uma política duradoura, que dê estabilidade a bolsas de estudo e redes de pesquisa.
Embora o potencial dos cientistas brasileiros seja um consenso, os cofres cada vez mais vazios tornaram-se um obstáculo significativo. Em março, o orçamento para 2016 do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação foi diminuído em R$ 1 bilhão. O governo fluminense, por sua vez, apresentou uma proposta de emenda constitucional para reduzir à metade os recursos enviados para a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio (Faperj).
O paleontólogo Alexander Kellner, editor-chefe da revista “Anais da Academia Brasileira de Ciências”, diz que, desde 2007, o número de artigos submetidos à publicação passou de 200 para mais de mil por ano.
– Essa multiplicação é positiva, mas estamos em um momento perigoso devido à falta de financiamento. Agora, mais do que nunca, o poder público deve reconhecer a importância da ciência – diz.
Instrumentos para análise do material do futuro
Nos laboratórios da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o físico Ado Jorio, de 43 anos, se dedica ao desenvolvimento de instrumentos óticos para a análise das propriedades de nanoestruturas de carbono, considerados os materiais do futuro. Para o público leigo, isso pode não fazer muito sentido, mas suas descobertas impulsionam pesquisas em diversos campos do conhecimento, da Biologia à Engenharia.
– Os métodos que desenvolvi são amplamente utilizados nos estudos sobre o grafeno, uma área quente atualmente – diz Jorio. – Eu comecei a trabalhar com esse tema em 2000, no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), onde fiz um pós-doutorado de dois anos, mas os estudos foram realizados majoritariamente no Brasil.
A produtividade de Jorio impressiona. São quase 200 artigos publicados e autoria ou participação em 25 livros. Com humildade, o físico justifica:
– Eu tenho facilidade enorme para escrever – diz. – E faço parte de uma rede internacional de colaboradores.
Sobre a ciência no país, Jorio destaca a qualidade do pesquisador brasileiro, mas pontua algumas barreiras. A distância em relação aos principais centros de produção científica dificulta a participação em congressos e a inserção em redes internacionais. Soma-se a isso a ausência de uma cadeia de fabricantes e distribuidores de equipamentos e insumos, o que provoca atrasos causados pela burocracia na importação.
Na opinião dele, os investimentos públicos em pesquisa são adequados no país. O que falta são investimentos do setor privado, que são praticamente inexistentes.
– A indústria brasileira é extrativista, de baixa tecnologia – afirma Jorio. – E eu acredito que ainda exista a mentalidade que o Brasil não é capaz de produzir tecnologia.
Trabalho e dedicação às questões do coração
Filho de um comerciante e uma professora, ele foi o responsável por inaugurar a profissão de médico em sua família, há 30 anos. Desde então, outros dez parentes já seguiram seu caminho. Eles têm um bom modelo no qual se inspirar: o cardiologista Álvaro Avezum é autor ou coautor de 183 estudos publicados, muitos dos quais em renomadas revistas médicas, como “Lancet” e “Jama”. Em todos eles, sua principal preocupação foi gerar conhecimento que pudesse ser aplicado no dia a dia das pessoas. E foi isso, acredita ele, que fez seu nome entrar na lista dos cientistas mais influentes pela segunda vez seguida.
– Tenho pesquisado especificamente sobre infarto do miocárdio e AVC. E por que esses dois temas? Simplesmente porque são as causas número um e dois de morte e incapacidade. É preciso focar nos maiores problemas da nossa população – prega ele. – Não vale a pena gerar conhecimento apenas pelo conhecimento. Sem benefício populacional, não há inovação.
Aos 53 anos, Avezum é diretor da Divisão de Pesquisa do Instituto de Cardiologia Dante Pazzanese, em São Paulo, e crê que o avanço da ciência é sustentado por três pilares: investimento financeiro, treinamento formal para pesquisa e foco em estudos que tenham aplicabilidade.
– No Brasil, esses três aspectos são feitos de forma incompleta – lamenta.
O médico conta que teve a sorte de participar da fundação, em 1989, de uma rede colaborativa de cardiologistas brasileiros, que hoje reúne mais de 300 hospitais e 900 colaboradores. É com esta equipe que ele divide os créditos da qualidade de seu trabalho.
Para Avezum, é importante desmistificar para os jovens o ofício de cientista.
– Temos que esquecer aquela imagem de alguém isolado num laboratório pesquisando coisas intangíveis. Quem faz ciência pode, de verdade, mudar a vida das pessoas.
De olho na poluição e nas mudanças climáticas
Quem se propõe a discutir o meio ambiente não pode ignorar dois assuntos: as florestas e as mudanças climáticas. Professor do Instituto de Fí
sica da USP, Paulo Artaxo Netto, 62 anos, já assinou mais de 400 trabalhos sobre os temas – 11 deles nas principais revistas científicas do mundo, “Science” e “Nature”.
sica da USP, Paulo Artaxo Netto, 62 anos, já assinou mais de 400 trabalhos sobre os temas – 11 deles nas principais revistas científicas do mundo, “Science” e “Nature”.
– São questões fundamentais para o planeta, por isso os trabalhos têm muita repercussão – explica Artaxo. – Todas as descobertas na Amazônia são relevantes porque as regiões tropicais têm um papel importante na regulação do clima. A maior parte do vapor dágua do planeta é gerado nestes ecossistemas, o que determina a quantidade e a dimensão das precipitações. E também são as regiões que mais recebem radiação solar, depois distribuída para toda a Terra.
A poluição atmosférica também está no radar de Artaxo. Entre 2013 e 2014, ele foi um dos coordenadores do Projeto Fontes, que concluiu que 62% do ar sujo na região metropolitana de Rio e São Paulo está associado ao setor de transportes.
O cientista é taxativo: não se faz ciência sozinho. O físico já dividiu seus levantamentos com alguns dos principais centros de pesquisa do país, como o Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (Impa) e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Já trabalhou na Nasa e nas universidades de Antuérpia (Bélgica), Lund (Suécia) e Harvard (EUA).
– Temos universidades que são reconhecidas internacionalmente, como USP, UFRJ e Unicamp – destaca. – É natural que países como EUA, França e Alemanha estejam na elite da ciência mundial. Sua produção começou há 200 anos. Aqui, iniciamos há três ou quatro décadas, e já contamos com bons resultados. Mas precisamos de garantia de que os estudos conseguirão financiamento a longo prazo.
Análise de plantas, da Alemanha a Minas Gerais
Adriano Nunes-Nesi, 40 anos, é tímido, fala pouco e evita fotografias. Por trás da figura reservada, no entanto, há um trabalho que coleciona mais de 100 citações em revistas estrangeiras. Especialista em fisiologia vegetal, o professor da Universidade Federal de Viçosa levou para Minas Gerais alguns projetos idealizados em seus tempos de pós-doutorando no instituto alemão Max Planck, na Alemanha. Por sua mesa já passaram estudos de diversos temas, do metabolismo de plantas a análises sobre a fotossíntese em folhas de tomate.
– Na Alemanha tive toda a infraestrutura e os recursos necessários para realizar pesquisas de alto nível – destaca. – Acredito que no Brasil ainda falta muito investimento em pesquisa, além da realização de parcerias internacionais.
No entanto, segundo o cientista, a universidade em Viçosa já conta com um nível de excelência semelhante ao visto em grupos do exterior. O centro de pesquisas mineiro pode servir como um posto avançado para o estudo da flora amazônica, das mais interessantes para os fisiologistas. Tanto assim que Nesi acredita que, em breve, deixará de ser o único brasileiro a figurar na categoria “Ciências das Plantas e dos Animais”, uma das classificações adotadas pela consultoria Thomson Reuters para montar o ranking de cientistas de destaque.
– Há muitas variáveis envolvidas, mas certamente a riqueza de nossa fauna e flora pode beneficiar os brasileiros.
A lista pode não ser suficiente, mas Nesi não tem dúvidas de que o país, em todas as áreas de pesquisa, corre atrás de uma maior penetração na elite científica mundial.
– Temos potencial para aumentar, a curto ou médio prazo, nosso contingente de cientistas. Há novos programas de intercâmbio de estudantes, pós-doutores e professores, e certamente estas iniciativas vão nos ajudar.