A Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) licenciou duas patentes para a Vetra, empresa formada por ex-alunos do Departamento de Engenharia de Materiais (DEMa). A primeira delas é de um tipo de vidro com nova composição química que o deixa com alta bioatividade para revestimento de implantes metálicos e no tratamento de lesões de pele, por exemplo. A outra é de um método de recobrimento de enxertos médicos e odontológicos metálicos ou cerâmicos que garante compatibilidade com o organismo, evita rejeição e acelera a integração com o osso. O vidro comum é um material duro e quebradiço. Com alterações em sua formulação química, como maior quantidade de cálcio e fósforo, ele se torna bioativo e ganha o nome de biovidro, com capacidade bactericida e de acelerar a regeneração do osso e a integração das próteses com o osso.
O coordenador da equipe de pesquisa na universidade é o Acadêmico Edgar Dutra Zanotto, professor do Laboratório de Materiais Vítreos (LaMaV) do DEMa. Ele afirma que os biovidros têm várias aplicações na área médica, odontológica e veterinária. “Na forma de pó, eles conseguem, por meio de sua dissolução quando em contato com os fluidos corpóreos, acelerar a regeneração de tecidos lesionados do corpo humano, como fraturas ósseas, feridas da pele, problemas nas cartilagens, esmalte e dentina dos dentes e até nervos”, explica. De acordo com ele, quando implantados, esses materiais desencadeiam uma série de reações que estimulam a proliferação celular, fazendo com que o corpo consiga regenerar lesões complexas que demorariam muito tempo para cicatrizar ou não cicatrizariam.
O primeiro biovidro foi inventado em 1969 por Larry Hench, da Universidade da Flórida, nos Estados Unidos. Chamado de Bioglass 45S5, esse material, ainda em uso, se caracteriza por sua capacidade de promover uma rápida e durável ligação química com o tecido ósseo. Mas ele tem limitações – entre elas a baixa resistência mecânica à fratura. Além disso, possui tendência à cristalização, o que impede a produção de peças tridimensionais (3D), fibras e scaffolds (estruturas altamente porosas que podem servir de suporte para enxertos ósseos).
O avanço proposto pelos pesquisadores da UFSCar está no desenvolvimento de uma nova fórmula, que evita a cristalização do material, que pode ser depositado sobre a superfície de implantes dentários ou ortopédicos e até mesmo utilizado para produzir peças em impressoras 3D. Além disso, na forma de fibras longas pode ser tecido para produzir curativos para feridas e queimaduras de pele, por exemplo. O novo biovidro, além de cálcio e fósforo, contém em sua composição óxidos de silício, sódio e potássio, além de outros poucos elementos. O trabalho da equipe da UFSCar foi realizado no âmbito do Centro de Ensino, Pesquisa e Inovação em Vidros (CeRTEV), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid), financiados pela FAPESP.
De acordo com Marina Trevelin Souza, ex-doutoranda de Zanotto e sócia-fundadora da Vetra, o vidro bioativo que eles desenvolveram, chamado de F18, assim como outros biovidros, representa uma nova geração de biomateriais, muito mais eficazes na regeneração de tecidos do que os demais produtos disponíveis no mercado. “Eles são osteoindutores, ou seja, estimulam a proliferação de células ósseas”, diz. “Esse estímulo é provocado pela liberação de certos tipos de íons que, quando absorvidos pelas células ósseas, ativam genes relacionados ao processo de proliferação celular.” Outra vantagem do material é a de ser totalmente reabsorvível. A nova formulação tem também propriedade angiogênica, que ajuda na formação de novos vasos sanguíneos na área do implante ou lesão. Marina tem como sócios na Vetra, os colegas Clever Ricardo Chinaglia (ex-pós-doutorando de Zanotto) e Murilo Camuri Crovace, pós-doutorando na mesma unidade da UFSCar. Marina e Murilo são apenas sócios fundadores e não desenvolvem atividade na empresa que é gerida por Clever.
A segunda tecnologia licenciada para a Vetra é um novo processo de recobrimento dos implantes com biovidro, que a equipe da empresa chama de biofuncionalização. “Com ela recobrimos próteses ortopédicas e odontológicas (metálicas ou cerâmicas) com uma camada de vidro bioativo em sua superfície”, explica Marina. “Isso também acelera o processo de osteointegração e previne infecções. Além disso, essa camada não compromete as propriedades do material do implante, porque ela é totalmente reabsorvida pelo organismo após alguns dias.” Marina garante que a solubilidade do biovidro F18 é maior do que a do Bioglass 45S5, de uso comercial. Ele começa a se dissolver logo após a colocação do enxerto no organismo e se integra rapidamente ao osso. De acordo com Murilo Crovace, alguns tipos de biovidros comuns, semelhantes ao 45S5, já são explorados comercialmente no exterior, sendo aplicados clinicamente há quase 30 anos, mas ainda não são produzidos no Brasil.
Sem vestígios
A equipe realizou testes em camundongos, coelhos e cachorros com enxertos e implantes dentários de titânio biofuncionalizados. O resultado mais importante foi que, após as análises histomorfométricas para quantificação de estruturas ósseas, se descobriu que a formação de osso novo sobre os enxertos recobertos com o biovidro F18 nas primeiras duas semanas é duas vezes mais rápida em relação aos não biofuncionalizados. Além disso, após o processo de osteointegração não se encontrou nenhum vestígio do material bioativo na superfície das próteses.
Fundada em 2014, a Vetra pretende, inicialmente, fornecer o vidro bioativo na forma de pós e grânulos para empresas produtoras de biomateriais na área odontológica, médica e veterinária. “Futuramente, a ideia é produzir artigos mais complexos, como fibras, tecidos e scaffolds”, conta Marina. Para colocar o plano em prática, “a Vetra busca captar recursos de fundos de investimento e estabelecer parcerias com clientes que se interessem em inovar e queiram oferecer produtos avançados e de alta performance”. Muitas das tecnologias apresentadas pela empresa já estão desenvolvidas e possuem estudos clínicos com humanos que comprovam sua eficácia, como, por exemplo, os produtos para hipersensibilidade e remineralização pós-clareamento dental com biovidro. “Por isso, estamos buscando parceiros que possam introduzir essas tecnologias inovadoras no mercado. Os principais potenciais clientes são empresas da área da saúde.”
Os testes clínicos estão sendo realizados por vários grupos de pesquisa no Brasil. “Criamos uma rede chamada Biomaterials Research and Technology Network [Bionetec] com mais de 64 pesquisadores de diferentes universidades envolvidos nos testes in vitro [em tecidos biológicos no laboratório], in vivo [com animais] e clínicos [em humanos] dos nossos materiais. Pesquisadores de diversas instituições realizaram inúmeros testes como, por exemplo, as faculdades de Medicina da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade de São Paulo (USP) em Bauru, o Centro de Ciências Biológicas e da Saúde da UFSCar, as faculdades de Odontologia da USP de Ribeirão Preto e da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara, e a Faculdade de Biociências da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)”, conta Marina.
Camila Tirapelli, professora da Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto, da USP, especialista em prótese dentária, foi uma das pesquisadoras que realizou testes com um material do grupo da UFSCar, o biosilicato, precursor do F18. “Fizemos testes clínicos aplicando o biovidro na hipersensibilidade dentária causada por tratamento periodontal, ablações e recessões gengivais com cerca de 180 pacientes”, diz Cami
la. O estudo foi publicado na revista científica Journal of Oral Rehabilitation. “Também fizemos a aplicação do novo material em pacientes com sensibilidade dental decorrente de clareamento. Foram 200 pacientes e o estudo, publicado no Journal of Dentistry. Os resultados foram positivos.” Agora, o grupo de Camila realiza testes do biovidro em seres humanos como material de forramento no tratamento de dentes cariados.
“No Brasil ainda não existem vidros bioativos como o desenvolvido pela equipe de Zanotto para serem comercializados, pelo menos dentro da minha área de atuação”, diz Camila, que há vários anos realiza testes clínicos na área odontológica com os biomateriais do DEMa-UFSCar. “No mundo, há raras empresas que eu conheça que façam a mesma coisa. A entrada desses produtos no país tem um custo alto.” De acordo com ela, esse biomaterial ainda tem uso restrito mesmo em países desenvolvidos. “No Brasil, se restringe ao ambiente acadêmico.” O próximo passo para o uso comercial é a obtenção do registro da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
A Vetra está entrando num mercado em que o crescimento é acelerado. “O mercado de biomateriais é um dos que mais crescem no mundo, a uma taxa superior a 15% ao ano”, diz Zanotto. Segundo um estudo da empresa indiana MarketsandMarkets (M&M), de pesquisa de mercado, a previsão para a área de biomateriais, incluindo os tipos de materiais (metálicos, cerâmicos, polímeros) e aplicações (cardiovascular, ortopédica, dental entre outras), atingirá o valor global de US$ 130,5 bilhões em 2020. Em 2015, o faturamento total do setor foi de US$ 62 bilhões.
Para a engenheira de materiais Cecilia Amelia de Carvalho Zavaglia, professora do Departamento de Engenharia de Manufatura e Materiais da Faculdade de Engenharia Mecânica da Unicamp, o biovidro desenvolvido pela equipe de Zanotto e licenciado para a Vetra é promissor. “No mundo todo há gente desenvolvendo biovidros”, diz ela. “O que foi criado na UFSCar é inovador, não apenas cópia do que é feito lá fora. O diferencial está na composição. ” Agora, ele precisa ser mais bem divulgado entre os profissionais de saúde e estar disponível no mercado, depois da aprovação da Anvisa.