“Excelência, competência, criatividade e ética. Respeito à ciência e vigor científico. Uma forma democrática e cooperativa de trabalhar, que refletia sua personalidade. Um mestre atento aos seus orientandos, conduzindo-os com sabedoria através de sua personalidade fidalga, com agudeza intelectual e vivência no trato experimental. Uma pessoa de generosidade imensa e completa: material, intelectual e espiritual. Além de brilhante cientista, um grande ser humano. Tratava a todos de modo igualitário, considerando a opinião dos alunos de iniciação científica com o mesmo respeito e interesse que dispensava aos demais membros da equipe. Com a elegância que lhe é característica, resolvia os assuntos mais difíceis com habilidade e sabedoria. Um talismã da neurociência no Brasil.”
Foram dessa envergadura os depoimentos feitos por ex-alunos, colegas e colaboradores do Acadêmico Carlos Eduardo Guinle da Rocha-Miranda na homenagem que prestaram ao neurocientista pioneiro, no dia 22 de julho, no auditório do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde Rocha-Miranda desenvolveu sua brilhante vida acadêmica.
Lá começou graduando-se em medicina no ano de 1958 e saindo, a seguir, para uma especialização em eletrofisiologia e neuroanatomia na França, no Institut Marey Paris Auteuil. Voltou ao Brasil para doutorar-se pela UFRJ. Depois, fez dois estágios de pós-doutorado em neurofisiologia: um pelo National Institutes of Health (1961-63) e outro na Universidade Harvard (1967-70).
Trabalhando em sistemas visuais de mamíferos, adotou como modelo experimental, em 1963, em parceria com o falecido Acadêmico Eduardo Oswaldo-Cruz, o Didelphis marsupialis, um gambá. Foram atraídos pelos numerosos estudos neuroanatômicos existentes, pela abundância de caracteres gerais de mamíferos nessa espécie e pela imaturidade do seu sistema nervoso por ocasião do nascimento.
Eduardo Oswaldo Cruz, o técnico Raymundo Francisco Bernardes
e Carlos Eduardo Rocha-Miranda
e Carlos Eduardo Rocha-Miranda
Os trabalhos publicados durante a década de 60 refletem esforços que visavam a atualização do modelo, como o desenvolvimento de um atlas estereotáxico do cérebro de Didelphis, publicado em 1968, assim como a busca de preparações mais adequadas, visando estabelecer relações entre a organização neural e o comportamento. Em 1967, quando foi trabalhar com Charles G. Gross, no Departamento de Psicologia Experimental da Universidade de Harvard, Rocha-Miranda se apercebeu das contribuições inerentes aos estudos de campos receptores visuais, como as decorrentes das pesquisas de Hubel & Wiesel, para a correlação entre forma e função.
O modelo do gambá
Como primeiro aluno de Rocha-Miranda depois de seu retorno de Harvard, o Acadêmico Roberto Lent abordou o período de 68 a 78. Um contexto difícil, nos anos de chumbo. “Achei de uma grandeza impressionante alguém voltar dos Estados Unidos, nessa época em que muitos queriam sair, dizendo que queria fazer a diferença no Brasil”. Lent explicou que Rocha-Miranda introduziu o modelo do gambá para estudos múltiplos, numa época em que não existia essa prática. “Isso deu ao grupo de neurociência do Instituto de Biofísica da UFRJ uma característica muito própria, que era essa multiplicidade de métodos de estudo”.
Ainda no prédio da Praia Vermelha, Rocha-Miranda e Eduardo Oswaldo Cruz eram vizinhos de laboratório de outros Acadêmicos, como Antônio Paes de Carvalho, Leopoldo de Meis e Gilberto de Oliveira Castro. “Carlos Eduardo me propôs desenvolver a padronização de uma técnica nova para o rastreamento de circuitos neurais quando eu ainda era aluno de iniciação cientifica na medicina, uma técnica de enucleação cirúrgica num dos olhos do gambá para rastrear a degeneração produzida nos axônios, em cortes que produziam figuras que eu observava no microscópio e reconstruía. Isso rendeu meu primeiro artigo”, contou Lent.
No doutorado, Rocha-Miranda levou-o a trabalhar com desenvolvimento e plasticidade no gambá. “O gambá era especial porque é um animal que gera uma quantidade grande de filhotes numa das gestações mais curtas entre os mamíferos, 13 dias, e esses animais, muito imaturos, vão parar no marsúpio, a bolsa ventral, permitindo acesso fácil.”
O problema era capturar o gambá. Tanto Lent quanto Rocha-Miranda moravam em São Conrado e este descobriu o Seu Rodolfo, um imigrante polonês que virou mendigo e que vivia por aquelas matas. Ele então se tornou o responsável por pegar os gambás nas matas. “Só que ele trazia o saco com um gambá, três cuícas, cinco ratos e a gente tinha que pagar por tudo, senão o seu Rodolfo não caçava mais”, relembra Lent. Sua tese de doutorado virou o livro Opossum Neurobiology, publicado em parceria com o orientador, pela Academia Brasileira de Ciências.
Introduzindo a modernidade
O Acadêmico Rafael Linden contou que entrou para a faculdade de medicina para ser cardiologista. Conheceu Rocha-Miranda quando era monitor de fisiologia e soube que ele tinha trazido para seu laboratório um computador chamado PDP-12, com 4kb de memória que, naquela época, era considerado muito versátil, famoso no mundo inteiro por sua capacidade de processamento de sinais biológicos.
“Carlos Eduardo o programava e nos ensinou a programar, fazendo com que o nosso laboratório e vários outros próximos dessem um salto de evolução tecnológica. Trabalharam nesse computador Antônio Paes de Carvalho, Ayres Fonseca Costa, Eduardo Oswaldo Cruz, Eliane Volchan, Henrique Eisenberg, Walter Zin e outros.”
Carlos Eduardo Rocha-Miranda, Eliane Volchan, Rafael Linden e o PDP-12
Como formador de alunos, Rocha-Miranda também tinha um talento especial. “Ele recrutava pessoas porque identificava algum talento naqueles indivíduos, encontrava algo que podia dar certo no laboratório”, contou Linden. De fato, ao longo dos anos, todos do grupo se tornaram destacados cientistas – muito diferentes uns dos outros, mas com vontade de formar pessoas do mesmo modo como Rocha-Miranda, visando a qualificação da ciência brasileira.
Santiago Martinich, Luis Gawryszewsky, Eliane Volchan, Ricardo Gattass,
Carlos Eduardo Rocha Miranda, Cecilia Rocha Miranda, Roberto Lent, Rafael Linden
e Leny Cavalcante
Carlos Eduardo Rocha Miranda, Cecilia Rocha Miranda, Roberto Lent, Rafael Linden
e Leny Cavalcante
“Ele nos fazia perguntas simples e delicadas que nos deixavam sem dormir, pensando. Nos desafiava o tempo todo, nos dava artigos difíceis, nos atribuía responsabilidades e tinha confiança em nós. Isso nos inspirava e inspira até hoje”, recordou Linden.
Evolução e morfogênese
Primeira doutoranda de Rocha-Miranda, a Acadêmica Leny Cavalcante contou que chegou a ele vinda do Ceará, depois de um mestrado na Califórnia em fisiologia endócrina, já mãe de um bebê de um ano. “Como dizia René Thom, só existem duas questões em biologia: evolução e morfogênese, e era isso que Carlos Eduardo propôs que eu fizesse, estudasse as conexões da retina com o cérebro. Ele era inovador em neurociência e estimulava a colaboração entre seus alunos. Eu e Rosalia Mendez-Otero, por exemplo, tivemos uma colaboração duradoura.”
A parceria com o mestre foi além. Durante os doze anos em que Rocha-Miranda atuou na Diretoria da ABC, convidou Leny para ajudá-lo como editora do Anais da ABC, que tinham perdido a indexação no ISI em função da irregularidade. Ela reorganizou o periódico e estabeleceu a publicação de artigos apenas em inglês, substituindo a publicação multilíngue anterior.
Metodologia de primeiríssima linha
Vinte anos depois de ter sido aluna de iniciação científica de Rocha-Miranda na Praia Vermelha, Eliane Volchan foi fazer pós-doutorado no laboratório de um prêmio Nobel e os experimentos não tinham protocolo nem a metodologia que ela tinha aprendido com Rocha-Miranda 20 anos antes, sem tecnologia.
“Carlos Eduardo nos ensinou a fazer uma ficha para cada penetração de microeletrodo no cérebro do gambá, para cada célula que estávamos estudando, uma documentação fotográfica para cada célula. Nós fotografávamos e filmávamos o experimento, fotografávamos o histograma de cada célula, batíamos na máquina de escrever o relatório de todo o experimento e no dia seguinte discutíamos com o grupo. Nas semanas seguintes, refazíamos todo o experimento e furávamos no cartão de holerite todas as propriedades das células que a gente tinha estudado.”
Segundo Volchan, com os recursos atuais os grupos têm serviços especializados em documentação de pesquisa. “Mas a gente fazia essa documentação de forma espetacular e precisa. Isso fazia parte da personalidade de Carlos Eduardo, pois com essa documentação todos da equipe tinham acesso aos dados e podiam discutir o que estava acontecendo. Isso dava confiança a todos, era uma forma democrática e cooperativa de trabalhar que refletia sua personalidade. “
“Amigo, mestre, padrinho e companheiro de grandes empreitadas”
O Acadêmico Ricardo Gattass fez um depoimento emocionado, no qual discorreu sobre todo o apoio que recebeu de Rocha-Miranda nos principais momentos de sua carreira e sobre a parceria que construíram. “Eu segui o Carlos Eduardo em todas as coisas que ele empreendeu e apoiou, por isso me considero um afilhado”. Relatou que o acompanhou na Sociedade Brasileira de Neurociência e Comportamento (SBNeC), na SABRO e na Diretoria da Academia Brasileira de Ciências (ABC) por 12 anos, principalmente pelo prazer de sua companhia, e congratulou-o pelas grandes contribuições científicas. “Ele deveria ter recebido o Prêmio Nobel junto com Charles Gross pela descrição das face cells”, destacou.
Gattass apresentou um vídeo com um depoimento do professor Robert Desimone, diretor do McGovern Institute, no Massachussets Institute of Technology (MIT), gravado especialmente para o evento, cumprimentando Rocha-Miranda e referindo-se a ele como um mito na área da neurociência.
Em 1994, Rocha-Miranda recebeu do Governo brasileiro, através do Ministério da Ciência e Tecnologia, a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito Cientifico. No ano seguinte, a então denominada Academia de Ciências do Terceiro Mundo (TWAS) lhe outorgou o Prêmio de Biologia 1995. Em 2005 foi homenageado com o título de Pesquisador Emérito do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e em 2006 recebeu da SBNeC a Medalha Neurociências Brasil.
Para encerrar a cerimônia, foi entregue ao homenageado (na foto ao lado com sua esposa, Cecilia) uma placa, replicada na parede do auditório, na qual se lia: “UFRJ/IBCCF 70 anos – Homenagem de seus colegas, alunos e colaboradores ao Prof. Carlos Eduardo Rocha-Miranda por sua carreira dedicada à formação de neurocientistas no Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho e por seu papel decisivo na consolidação das neurociências na UFRJ e na América Latina.”