Quatro pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) realizaram uma travessia científica inédita, de 1,4 mil quilômetros, sobre o manto de gelo do interior da Antártica, de 5 a 16 de janeiro. Líder da empreitada e diretor do Centro Polar e Climático da UFRGS (CPC), o glaciologista e Acadêmico Jefferson Simões comentou resultados da viagem em entrevista ao portal do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), financiador da expedição.
O Acadêmico Jefferson Simões, na frente do acampamento na região do Monte Johns. Crédito: Divulgação
Iniciada em 5 de janeiro, a bordo de duas caminhonetes adaptadas à neve, a travessia passou pelo módulo científico Criosfera 1, posto latino-americano mais próximo do Polo Sul geográfico, e depois esteve na região do Monte Johns, onde o Brasil deve instalar o Criosfera 2, no verão de 2015 a 2016. Após concluir o trajeto, a equipe embarcou de volta para Punta Arenas, no Chile, de onde despachou material e pesquisa, antes de retornar a Porto Alegre. As amostras recolhidas incluem 107 metros (m) de testemunhos de gelo, que irão para o Instituto de Mudanças Climáticas da Universidade do Maine, nos Estados Unidos.
A travessia, a montagem do Criosfera 2 e a manutenção do Criosfera 1 até fevereiro de 2016 estão garantidos por recursos da Coordenação para Mar e Antártica do MCTI. As atividades integram o Programa Antártico Brasileiro (Proantar), com apoio da Secretaria da Comissão Interministerial para os Recursos do Mar (Secirm), coordenada pela Marinha do Brasil.
MCTI – O que essa travessia pelo interior da Antártica representa para a ciência brasileira? Fazer pesquisa dentro do continente gelado, distante do litoral, atesta a maturidade do Programa Antártico Brasileiro?
Jefferson Simões – A comunidade científica tem agora o conhecimento e a habilidade de fazer missões independentes no interior da Antártica. Não só a pesquisa, mas também a logística foi organizada por cientistas, com o planejamento da viagem e a contratação dos meios de transporte para atuar dentro do continente, muitas vezes a mais de 2,5 mil quilômetros [km] ao sul da Estação Antártica Comandante Ferraz. Isso permite, principalmente, que avancemos estudos em ciências da terra, aí incluindo glaciologia, geologia e geofísica, e também pesquisas das ciências atmosféricas, no local mais limpo do planeta. Em suma, nosso programa se junta àquele pequeno grupo de dez países que trabalham no interior da Antártica – Brasil, Chile, China, Coreia do Sul, França, Itália, Estados Unidos, Japão, Reino Unido e Rússia -, diante de 37 que atuam na costa. Junto com os dois INCTs [institutos nacionais de ciência e tecnologia] voltados à pesquisa antártica e o módulo Criosfera 1, essa travessia certamente atesta a maturidade do Proantar.
MCTI – A expedição durou 12 dias, diante de uma previsão de 19. Em vez de usar os tradicionais tratores, a equipe circulou pelo manto de gelo com duas caminhonetes adaptadas, dotadas de três eixos, tração nas seis rodas e pneus largos. O meio de transporte facilitou o percurso?
Jefferson Simões – Certamente. Por isso, podemos dizer que esse meio de transporte está revolucionando as missões no interior da Antártica. Esses veículos são leves, com baixo consumo de combustível, e relativamente velozes. Um trator movimenta-se no máximo a 15 quilômetros por hora [km/h] e nós chegamos a 70 km/h em alguns trajetos com as caminhonetes. Mas não podemos esquecer que o veículo só pôde ser usado porque avançamos também as técnicas de levantamento por imagens de satélite e a navegação por GPS, permitindo que evitemos os campos de fendas. Ou seja, diminuímos os riscos de acidentes.
MCTI – Você relatou no diário da travessia as boas condições meteorológicas encontradas. Mesmo assim, em certas ocasiões, o grupo trabalhou dentro de trincheiras para evitar o vento gelado. Quais foram as principais adversidades enfrentadas?
Jefferson Simões – Dificilmente você terá um dia com vento zero, e qualquer brisa abaixa rapidamente a sensação térmica. Ou seja, há perda de calor pelo corpo. Isso aumenta muito o risco de hipotermia. Assim, é comum na pesquisa glaciológica cavar as trincheiras, para proteção e também para amostrar com detalhe os primeiros metros. As principais adversidades foram alguns dias com vento mais forte, embora nunca passando de 30 nós; o frio, mesmo que não tenha caído além dos 23 graus Celsius negativos; e cerca de 80 km do trajeto com dunas de neve de 20 a 50 centímetros de altura, as chamadas sastruguis, que parecem um campo de quebra-molas. Foi uma viagem muito tranquila. Lembro que no passado tivemos que ficar três dias sem poder trabalhar devido a intensas nevascas, e no norte da Antártica já passei até dez dias em uma barraca!
MCTI – Um dos objetivos da travessia era gerar dados para avaliar impactos da ação humana sobre a atmosfera nos últimos 50 anos, como a presença de substâncias poluentes na superfície antártica. A equipe retirou amostras de gelo e neve para estudar essas variações. Há alguma previsão para as primeiras respostas? Como funciona o experimento?
Jefferson Simões – Finalizada a missão de campo, agora começa o trabalho de investigação laboratorial das amostras coletadas. Um dos principais estudos que faremos será a medição da concentração de carbono negro, que resulta da combustão incompleta de combustíveis fósseis e biomassa. Esse é o tema da tese de um de meus doutorandos. Os primeiros resultados estarão disponíveis em dois anos. Esses trabalhos ocorrem em câmaras frias, muitas vezes em dois turnos diários, onde os testemunhos de gelo serão descontaminados, subamostrados e finalmente derretidos. Só então faremos as análises químicas. Mas, evidentemente, as investigações não acabam aqui. Com os resultados das análises químicas em mãos, finalmente começaremos a interpretar, ambientalmente, o que ficou no testemunho de gelo. Existe algum indício de poluição da América do Sul chegando ao interior da Antártica? Quais as diferenças em concentrações químicas entre as diferenças áreas atravessadas? Como as variações do clima afetam essas concentrações? Existe alguma evidência clara de ligação entre as condições ambientais dos sítios amostrados e o sul da América do Sul?
MCTI – A travessia também teve como objetivo mapear e preparar o local para a montagem do módulo científico Criosfera 2, prevista para o verão de 2015 a 2016. O ponto escolhido deve coincidir com o topo da bacia de drenagem de gelo que se divide entre os mares de Amundsen e Weddell. Por que o Brasil se interessou por essa região?
Jefferson Simões – Por três motivos. O primeiro de
les é o fato de ser uma região de confluência de massas de ar que vêm do sudeste do [Oceano] Pacífico e do Atlântico Sul. Assim, deve haver um forte sinal da variabilidade ambiental da América do Sul. Em segundo lugar, o local faz parte da bacia de drenagem da geleira da Ilha Pine, que desperta o interesse científico da comunidade científica internacional. Por último, podemos ter apoio logístico contratado diretamente pela comunidade científica a apenas 300 km de distância.
les é o fato de ser uma região de confluência de massas de ar que vêm do sudeste do [Oceano] Pacífico e do Atlântico Sul. Assim, deve haver um forte sinal da variabilidade ambiental da América do Sul. Em segundo lugar, o local faz parte da bacia de drenagem da geleira da Ilha Pine, que desperta o interesse científico da comunidade científica internacional. Por último, podemos ter apoio logístico contratado diretamente pela comunidade científica a apenas 300 km de distância.
MCTI – O local de instalação do Criosfera 2 já está definido? Quando o módulo estiver pronto, como o Brasil poderá contribuir para os estudos acerca das condições ambientais locais?
Jefferson Simões – Sim, será a aproximadamente 60 km do Monte Johns, um rochedo de 90 m no meio do manto de gelo antártico. O módulo e os nossos estudos do clima, incluindo testemunhos de gelo, poderão contribuir para o entendimento da variabilidade do clima e da acumulação anual de neve da geleira da Ilha Paine ao longo dos últimos 300 anos. Isso é importante para outros estudos que pesquisam a resposta dessa geleira às mudanças ambientais no presente. Restará ainda um grande desafio ao Programa Antártico Brasileiro: uma missão ao manto de gelo da Antártica Oriental, mais fria, mais alta e mais seca do que a Antártica Ocidental.