Os últimos séculos acarretaram uma pressão sem precedentes ao planeta: em 1800, quando os efeitos da Revolução Industrial inglesa já se faziam sentir na sociedade, a população humana mundial atingira a marca inédita de um bilhão, e só chegaria ao segundo bilhão mais de um século depois, em 1927. Em 31 de outubro de 2011, o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) celebrou o Dia dos Sete Bilhões, marcando a chegada da humanidade à nova marca demográfica – um crescimento de 450% em meros 87 anos.

Paralelamente, o campo deu lugar à cidade como espaço predominante do homem: em 2007, metade da população global residia em cidades, com as transições mais velozes em países e regiões emergentes. Em 2010, quase 80% da população da América Latina residia no espaço urbano. Essa concentração sem precedentes inaugurou uma série de desafios que a humanidade ainda luta para solucionar, especialmente no que se refere aos atritos entre os limites do planeta e a necessidade econômica de crescimento e consumo.

São dilemas que se modificam e assumem características únicas a depender de cada sociedade. Em áreas desenvolvidas como Japão e Europa, o envelhecimento e endividamento da população, mais a perda da competitividade econômica, oneram os cofres públicos e comprometem a sociedade em longo prazo. Nos países em desenvolvimento, a industrialização e urbanização agressivas, muitas vezes sem planejamento, expõem as mazelas da desigualdade social e a depredação dos recursos naturais. Com tantos problemas simultâneos, uma ação conjunta parece a única possibilidade de encontrar soluções.

É em busca desta possibilidade que a Academia Brasileira de Ciências (ABC) e a Rede Global de Academias de Ciência (IAP) reuniram, entre 3 e 5 de dezembro, especialistas internacionais nessas áreas para a conferência ”Ciência para a Erradicação da Pobreza e o Desenvolvimento Sustentável: uma Chamada para Ação”, realizada em Manaus, no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), cujas discussões se voltaram, em 4 e 5/12, justamente para os impasses das alterações sociais e tecnológicas e das transições demográficas.

 

Os dois lados da tecnologia

”Gostemos ou não, a economia global está cada vez mais dominada por sistemas de produção em larga escala, com mudanças tecnológicas velocíssimas que permearam todos os setores de trabalho”, diz Jeffrey Sachs, assessor especial do secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, e diretor do Instituto Terra, da Universidade de Columbia. ”A habilidade de digitalizar qualquer tipo de informação resultou também em males sociais, como a queda dos salários na indústria e a eliminação de inúmeros tipos de emprego.”

Autor de três best-sellers do The New York Times e considerado um dos mais importantes acadêmicos do mundo sobre o equilíbrio entre o crescimento econômico, o meio ambiente e a sociedade, Sachs aponta que, ainda assim, a melhor esperança para conquistas sociais jaz nas mesmas evoluções tecnológicas: ”em 1971, o chip mais potente da Intel
Intel 4004
] continha cerca de dois mil transistores. Hoje, são cinco bilhões de transistores – duas milhões de vezes mais!”

No ramo da biotecnologia, por exemplo, as consequências do maior poder de processamento e da redução dos custos de produção podem ser revoluções com poder de aprimorar exponencialmente a qualidade de vida. ”O Instituto Nacional de Pesquisa do Genoma Humano estimou que, em 2001, o sequenciamento de um genoma exigiria investimentos de 100 milhões de dólares. Hoje, cada genoma é sequenciado por menos de 10 mil dólares”, afirmou Sachs. Confira a entrevista exclusiva do economista à ABC.

 

Ampliando a bagagem intelectual

O lado difícil desta revolução está na capacidade intelectual requerida para se lidar com a tecnologia. Com a gradual extinção dos empregos de rendimento médio, os bons empregos exigirão um nível de conhecimento maior e mais específico. Por isso, nunca antes um sistema de educação abrangente e de excelência foi tão importante para os países que desejam persistir na trilha do desenvolvimento.

”A educação acontece de vários modos, mas o mais tradicional é o da escolarização. Ainda que os índices de matrículas em escolas, especialmente nas nações em desenvolvimento, tenha crescido bastante, a qualidade da educação ainda é insuficiente”, informa Jere Behrman, do Centro de Estudos de População, Universidade da Pensilvânia (UPenn). Refletindo a volatilidade dos novos tempos, ”hoje o mais importante não é uma educação estritamente técnica, e sim a habilidade de uma pessoa aprender a aprender.”

Para isso, o estímulo cognitivo deve começar o quanto antes possível. ”A falta de estimulação
em recém-nascidos e crianças] tem repercussões muito graves. Na China, descobriu-se que a falta de estimulação por ambos os pais reduz a performance de crianças no ensino primário em 5%. Na Colômbia, projetos comunitários sobre educação familiar para mulheres ampliaram significativamente a performance de suas crianças: 26% de ganhos em habilidades cognitivas e 22% em domínio vocabular.”

Segundo o acadêmico, o custo-benefício de uma educação pré-escolar adequada supera todas as alternativas (ex.: visitas domésticas, creches especializadas). O estímulo às matrículas de meninas e a redução das taxas de abstenção de garotos, além do mais, são mais incentivos que enriquecem a vida intelectual de uma sociedade em longo prazo. A ABC também conversou com Behrman, confira aqui.

Problemas da alta idade: desafios demográficos no mundo desenvolvido

O cultivo intelectual das novas gerações é crucial para a formação de uma nova e competente classe trabalhadora. Para países como o Japão, entretanto, um sistema educativo excepcional (7º lugar entre 65 países em matemática e 4º em ciências e leitura, segundo o PISA 2012) pouco ajuda, quando jovens são o que há de menos em uma população cujo envelhecimento sobrecarrega a dívida pública – 226% em 2013, a maior do mundo.

Para países em semelhante situação demográfica, Aya Abe, especialista em pobreza e desigualdade social do Ministério de Saúde, Trabalho e Seguridade do Japão, não vê um futuro promissor. ”É muito difícil quando um país chega a este ponto. Ainda estamos tentando achar soluções.”

Em sua apresentação, a acadêmica explica que concepções erradas sobre seguridade social durante o desenvolvimento econômico do Japão (anos 60 a 80) deixaram o país hoje em um ”beco sem saída”. ”O modelo de seguridade japonês reforçou a assistência familiar no combate à pobreza. O público só ajudaria o indivíduo caso ele não conseguisse assistência por conta própria ou com ajuda da família.”

Na década de 80, quando 65% dos domicílios japoneses eram compostos por famílias de duas (pais e filhos) ou três gerações, a regra parecia fazer sentido. Em 2013, porém, essa divisão abrangia pouco mais da metade dos domicílios, com a outra metade contendo apenas solteiros ou casais sem filhos. Como resultado, ”não há estrutura familiar suficiente para proteger os indivíduos da pobreza.”

Por sua vez, o governo é incapaz de compensar este ”furo” no sistema social, pois boa parte dos gastos públicos está direcionada, por lei, à previdência social – um fenômeno a que Abe se refere como ”populismo de idade”. Como resultado, os custos são transferidos para as novas gerações, engessando ainda mais uma economia em estagnação desde os anos 90.

Segundo Abe, o Japão serve de lição aos países em desenvolvimento, que futuramente podem passar pelo mesmo tipo de transição demográfica e endividamento. ”O sistema de seguridade social não deveria se basear em grupos sociais específicos. Nosso maior erro foi construir um sistema imediatista, imaginando que a composição demográfica não se alteraria. Portanto, a prevenção é a melhor maneira de evitar o problema em que hoje nos encontramos.”

 

A situação do Brasil: meio caminho andado

Apesar de sua recente estagnação econômica e dos alertas de endividamento público (55% em 2013, menos do que a média global de 64%), o Brasil ainda tem espaço para preparar sua população jovem e lidar com a transição demográfica, que se encontra em fase intermediária. Além do mais, nos últimos 15 anos, o país se saiu muito bem no combate às históricas desigualdades sociais e na elevação econômica da população como um todo.

”Com sinceridade, quando me perguntam as causas exatas para o sucesso do Brasil, eu não sei dar uma única resposta, porque foram várias”, diz o economista André Portela, da Fundação Getúlio Vargas (FGV). ”Políticas públicas
…] e a valorização da renda do trabalho foram fundamentais, mas houve muitos outros fatores que, juntos, fizeram a diferença.”

Segundo Portela, que coordena o Centro de Estudos em Microeconomia Aplicada (C-Micro) do FGV, uma das mais relevantes conquistas do Brasil foi a redução da desigualdade: de cerca de 0,65 na escala GINI (principal índice do fenômeno, onde o valor mais próximo de 1 significa uma desigualdade pior) em 1989, a desigualdade brasileira caiu para 0,53 em 2011 – ainda alta, mas com a tendência decrescente mantida.

”Em comparação, outro país que enriqueceu bastante – a China – teve um aumento de 0,35 a 0,45 em desigualdade no mesmo período”, informa, ressaltando que o progresso brasileiro deu-se ”porque as classes mais baixas cresceram mais rapidamente que as altas. Para se ter uma ideia, é como se os 10% mais pobres tivessem crescido em um ritmo chinês e os 10% mais ricos em um ritmo sueco.”

Em uma avaliação geral, o país aproveitou bem a primeira fase de transição das economias da pobreza à riqueza – quando um país de baixa renda alcança o status de renda média. Como exposto durante a conferência, porém, novos e mais complexos obstáculos se colocam no caminho para o desenvolvimento, e uma boa performance passada não indica sucesso continuado no futuro.

Brasileiros e brasileiras de todas as idades – especialmente aqueles com poder de decisão política e econômica – devem ouvir as palavras do distinto time de especialistas reunidos pela ABC e a IAP e, desta forma, com sorte, construir um futuro onde o progresso econômico não signifique regresso social e ambiental.