As células-tronco ocupam posição cada vez mais central nas discussões científicas. Capazes de reencenar as primeiras fases do desenvolvimento de um embrião, elas servem como ponto de partida para a formação dos órgãos – e, por conseguinte, do organismo – de um ser vivo. Tal plasticidade as faz cobiçadas por laboratórios públicos e privados do mundo inteiro, em uma corrida científica cujos ”prêmios” envolvem, entre outros, a regeneração de tecidos lesionados, a recuperação de sentidos (como visão e audição) perdidos e a cura de doenças como Alzheimer, Parkinson e diabetes.

Participantes da Conferência de Jovens Cientistas do TWAS-ROLAC

A fim de intensificar o diálogo entre os jovens cientistas desta área promissora, a Academia Brasileira de Ciências (ABC) sediou, nos dias 24 e 25 de novembro, a Conferência de Jovens Cientistas, com o tema ”Biologia do Desenvolvimento e Células-Tronco – Implicações Funcionais”. A realização foi do Escritório Regional para a América Latina e Caribe da Academia de Ciências para o Mundo em Desenvolvimento (TWAS-ROLAC).

Ao lado de Jacob Palis, presidente da ABC, a renomada pesquisadora francesa Nicole Le Douarin (foto à esquerda) abriu a Conferência. ”
A biologia do desenvolvimento] é uma área bastante criativa e ativa das ciências biológicas hoje”, afirmou. ”Além de oferecer novas possibilidades de pesquisa, ela é também importante por suas perspectivas na terapia regenerativa.”

Le Douarin é uma das principais exponentes do ramo. Seus estudos sobre ”quimeras” – organismos formados por células com materiais genéticos distintos – permitiram uma maior compreensão sobre os sistemas nervoso e imunológico dos seres vivos e lhe renderam, entre outros prêmios, a Medalha de Ouro CNRS e o Prêmio Kyoto (1986).

 

Os ‘superpoderes’ das células

Duas características básicas das células-tronco explicam sua importância para a medicina moderna: a autorenovação (capacidade de se multiplicar sem alterar sua constituição) e a potência (capacidade de se diferenciar em outros tipos de células, especializando-se de acordo com suas características). Enquanto a primeira implica na capacidade de se cultivar um número ilimitado de células, a segunda torna possível, em maior ou menor grau, a geração de células especializadas que foram danificadas.

Segundo o Acadêmico Antônio Paes de Carvalho (foto à direita), professor vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e presidente da Extracta, uma empresa de produtos bioativos, ”as possíveis aplicações são muitas: no coração, no sistema nervoso, nos músculos… Nós poderíamos, por exemplo, pegar as células embrionárias e dirigi-las a formar qualquer tipo de tecido.” Carvalho participou da Conferência como ouvinte, para ”aprender mais” sobre o tema.

É o que se pesquisa, por exemplo, com doenças neurodegenerativas como o ”mal” de Parkinson, causado por uma disfunção nos neurônios produtores de dopamina, ou neurônios dopaminérgicos.

”Meu laboratório tem estudado a doença de Parkinson em modelos animais, tentando produzir os neurônios dopaminérgicos a partir de células-tronco embrionárias”, explica o pesquisador do Instituto de Fisiologia Celular da Universidade Nacional Autônoma do México (IFC-UNAM) Iván Velasco, que estuda doenças em um nível cromossômico. ”Nós descobrimos que estas células são boas o bastante
para reduzir os sintomas de Parkinson] uma vez que as introduzimos nos animais.”

Essas impressionantes propriedades se devem ao fato de que as células-tronco são as unidades primordiais dos organismos multicelulares. Elas surgem desde antes da formação do embrião e, multiplicando-se e diferenciando-se, ”constroem” os diversos sistemas que compõem o ser vivo.

Deste modo, além de suas possibilidades medicinais, elas são uma porta para a análise dos processos de formação da vida. ”Até onde a ciência está interessada”, continua Le Douarin, ”elas nos irão dizer muito sobre como os órgãos se desenvolvem e quais as relações entre os diferentes tecidos durante o desenvolvimento do corpo.”

 

Entraves naturais e éticos

É claro, as células-tronco não são todas iguais, tampouco aquelas de um determinado tipo respondem da mesma maneira aos estímulos dos pesquisadores. De acordo com Velasco, ”os procedimentos de diferenciação não são 100% eficientes. Você pode começar com células bem primitivas, induzi-las a se especializar, mas nem todas responderão como esperado. Assim, você termina com uma mistura de células desejadas e diversas outras geradas durante esta diferenciação irregular”.

A capacidade de autorenovação, por exemplo, pode trazer disfunções que levem as células-troncos de um indivíduo a se reproduzir descontroladamente, resultando em câncer. Esse é um dos focos da pesquisa de Luis Gustavo Dubois (foto à esquerda), doutor em neurociência pela Universidade Pierre e Marie Curie (Paris VI, França):

”Acreditamos hoje em dia que, quanto mais agressivo é um tumor, maior a chance de ele possuir células-tronco. Esse tipo de célula-tronco talvez seja responsável pela recorrência de tumores após tratamentos, então estamos procurando um jeito de impedir que elas continuem vivas.”

Devido às variações na potência celular – ou seja, a capacidade de diferenciação -, esta característica também apresenta seus empecilhos. As primeiras células-tronco, produzidas logo após a união entre o espermatozoide e o óvulo, são onipotentes, pois podem gerar todas as demais células do corpo. Elas são responsáveis pela formação do embrião, que abriga as células pluripotentes. Conforme o organismo se desenvolve, surgem células-tronco de potências gradualmente limitadas.

Como as células onipotentes só existem antes do surgimento do próprio embrião, as células pluripotentes acabam como as mais cobiçadas pelos pesquisadores. Entretanto, obtê-las diretamente danifica ou destrói o embrião, o que fomentou por décadas um intenso debate ético entre a comunidade científica e outros setores da sociedade.

 

Pesquisadores latinos na corrida científica

Por isso, Paes de Carvalho admite que a obtenção de células pluripotentes dos embriões humanos ”não é eticamente possível”. Entretanto, é possível ”pegar células de outra pessoa e apresentá-las a substâncias químicas capazes de orientar sua diferenciação”. Conhecida como reprogramação celular, a tática foi introduzida por Shinya Yamanaka em 2006 e gera, a partir de células maduras, as chamadas células-tronco pluripotentes (iPSC’s, em inglês). Em 2012, o método rendeu a Yamanaka o Prêmio Nobel de Medicina.

Stevens Rehen (foto à esquerda), coordenador do Laboratório Nacional de Células-Tronco Embrionárias (LaNCE/UFRJ), atualmente estuda o tratamento de desordens mentais como esquizofrenia e Parkinson com base nas iPSC’s. Um dos palestrantes convidados para a Conferência, ele dissertou sobre as aplicações da reprogramação celular em seus estudos.

”Nós estamos combinando reprogramação celular com a técnica de produção de organoides. Pegamos as células da pele ou da urina dos pacientes e as reprogramamos para criar células neurais. A partir daí, nós as deixamos em uma espécie de forma, que faz com que elas se reorganizem como um cérebro em desenvolvimento. No final, você obtém uma espécie de ‘minicérebro’, e isso muda bastante a forma de se analisar doenças ou transtornos mentais associados ao desenvolvimento.”

Além de Rehen, mais de 20 renomados pesquisadores vieram ao Rio de Janeiro compartilhar seus conhecimentos sobre o tema, representando instituições da Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Cuba, Equador e México. Para o Acadêmico Vivaldo Moura Neto (foto à direita), doutor em ciências pela Universidade Pierre e Marie Curie e atual diretor de pesquisa do Instituto Estadual do Cérebro Paulo Niemeyer, os propósitos do evento foram ”espetacularmente atendidos”.

”O objetivo deste encontro era fazer com que jovens da América Latina pudessem trocar conhecimentos e discutir seus trabalhos, e estes foram de muito boa qualidade, sem dever nada aos que a gente vê nos melhores periódicos científicos.” Para ele, as pesquisas com as células-troncos seguem um caminho ”irreversível”.

 

”Se há problemas, erros ou dificuldades, eles vão ser corrigidos. O homem tem uma inteligência sem limites e saberá superar eventuais obstáculos”, concluiu.