Roberto DaMatta tinha 13 anos e ouviu pelo rádio o Brasil perder o título para o Uruguai. A derrota foi sofrida, mas a consciência de como o futebol é fundamental para a sociedade brasileira ficou marcada naquele que se tornaria um dos principais pensadores sobre o país. Autor de livros como “Carnavais, malandros e heróis”, o antropólogo compara, na entrevista abaixo, dois países diferentes, o Brasil de 1950 e o de 2014, mas unidos por uma só paixão: o futebol.

O Globo: Em 1950, o futebol já era o esporte mais popular no Brasil, mas o país ainda não era campeão do mundo. Então, como era o comportamento da população? As pessoas tinham essa mesma alegria, essa obsessão em viver a Copa do Mundo 24 horas por dia como vem acontecendo hoje?

DaMatta: Era mais complicado. Mas eu acho que o engajamento emocional era maior, porque você não via, você tinha que imaginar. Uma das coisas que caracterizam o esporte e o diferenciam de outros tipos de entretenimento é que ele necessita de um investimento emocional. Você admira um clube, você é um clube. Você se liga, de uma maneira que contraria alguns princípios fundamentais da vida moderna, a uma determinada entidade que se torna maior do que você. Você se deixa englobar por uma entidade, desde o clube do bairro até os grandes clubes brasileiros. Então, antigamente, como você não via o que estava acontecendo, você ouvia no rádio e imaginava. Minha consciência do futebol surgiu assim, e a Copa de 1950 foi fundamental para o fortalecimento dessa consciência.

O Globo: O senhor viu os jogos da Copa de 1950?

DaMatta: Eu vou fazer 78 anos no fim do mês, então, eu tinha de 13 para 14 anos. Em 1950, meu pai nos levou, eu e meus quatro irmãos mais velhos, ao Maracanã para assistir a Brasil e Iugoslávia, quando o Brasil ganhou de 2 a 0. Aquilo foi maravilhoso. Mas, antes disso, eu fui dono de time de botão, então, já me sentia um pouco Felipão. Nós brasileiros não discutíamos futebol só como espectadores, nós tínhamos nossos times de botão. Éramos presidentes dos clubes, éramos técnicos, éramos Havelange. Meu time era o Fluminense, e eu tinha botão de todos os jogadores. Eu tirava o botão quando o jogador não estava jogando bem, e às vezes até quebrava o botão como aconteceu com o Neymar. Eu tinha um amigo, que já morreu, o Mario Roberto Zágari, que foi quem me levou para o Fluminense e para o futebol. E ali eu formei minha consciência de menino. O futebol é essencial para a construção da masculinidade brasileira, para você aprender o que é ser masculino no Brasil. A licença para se dizer nome feio, xingar numa torcida é uma coisa fundamentalmente masculina.

O Globo: Mas essa paixão pela seleção brasileira já existia antes de 1950?

DaMatta: A seleção pintou para minha geração naquela Copa. Eu “assisti” ao final da Copa pelo rádio em São João de Nepomuceno (MG). Era o mês de julho e estávamos em férias escolares na casa do meu avô. E há uma dimensão que diferencia o futebol brasileiro é que nós assistimos a um jogo com a família. Eu fiz corrente com meus netos e filhos para ver os jogos do Brasil nesta Copa. Isso significa que o futebol no Brasil tem um elo direto de ser brasileiro, com os relacionamentos. Com a ideia de que você é um indivíduo, mas no momento em que o Brasil joga todas as diferenças do país são neutralizadas pela seleção. Não é à toa que assistimos a um jogo com nossos parentes ou com nossos melhores amigos.

O Globo: Então, o futebol é a construção nacionalista mais natural brasileira?

DaMatta: Eu não diria que é natural, mas é a construção nacionalista moderna do Brasil. O futebol foi inventado pelos ingleses, que eram os caras puros, sérios e brancos, mas nós o roubamos. Esse país de mulatos, de negros, de gente de perna torta, que era considerado um país de analfabetos, foi lá e dominou o futebol. Todos os teóricos racistas do século XIX desacreditavam o Brasil. Gobineau (filósofo e diplomata francês) falou que nós não duraríamos mais de 150 anos. O Agassiz, que era professor de zoologia de Havard, disse que o Brasil não iria aguentar essa mistura de raças. O Brasil, para eles, estava destinado ao fracasso. Então imagina o que representou para o Brasil chegar à final no maior estádio do mundo. Eu sou do tempo em que se falava das maiores maravilhas do mundo, e para a gente o Maracanã era uma dessas. O futebol, portanto, trouxe ao Brasil um elemento moderno que fez com que nós acreditássemos em nós mesmos. Isso não tem preço.

O Globo: E esse nacionalismo não foi abalado com a derrota no Mundial de 1950? A gente soube se reerguer da final da Copa?

DaMatta: A derrota fortaleceu e ficamos esperando os momentos de vingança. E aí ganhamos cinco vezes o campeonato mundial. A Taça Jules Rimet ficaria com quem ganhasse três vezes a Copa do Mundo, e essa regra deve ter sido inventada por alguém que não acreditava que fosse possível algum país ganhar a taça três vezes. Mas nós ganhamos. Então, o futebol foi o primeiro momento em que acreditamos que era possível fazer a virada da modernidade, da democracia, da igualdade, da obediências às regras, da clareza das regras. Todo mundo no Brasil é capaz de discutir futebol, mas se inibe dependendo do grau de instrução em debater outros assuntos. O futebol é o código comum que nos une como brasileiros.

O Globo: O futebol, então, deu essa coletividade e sentimento democrático ao brasileiro nos anos 1950. Mas, alguns anos depois, entre as décadas de 60 e 70, houve parcela de estudiosos que passou a apontar o futebol como o ópio do povo, uma ideia que o senhor sempre combateu. E é um debate que retornou no último ano no Brasil com as manifestações, como se o futebol fosse usado para apagar todos os nossos outros problemas.

DaMatta: Eu escrevi sobre futebol para provar que era o contrário, que o futebol colocava o Brasil em foco. O maior ópio que existe é o ópio dos radicais. Os radicais são os que vivem constantemente fumando ópio porque não conseguem ver outras perspectivas, eles só tê um ponto de vista. E o futebol obriga uma pessoa a ver o mundo de outros pontos de vista. É uma lição maravilhosa de democracia. O Albert Camus disse que aprendeu tudo sobre honra, comportamento e regras jogando futebol na Argélia. O futebol nós dá essa experiência de colocar em foco o Brasil de maneira positiva. Eu tenho certeza que no momento atual, que é diferente de 1950, a Copa do Mundo vai ter influência, sim, em outras áreas, inclusive a política. Perdendo ou ganhando.

O Globo: Então o senhor acha que a Copa do Mundo vai ter influência nesta eleição?

DaMatta: Que vai ter influência eu não tenho dúvidas. Eu sou um sociólogo da linhagem clássica dos franceses que acredita que a vida social está toda interligada. O que acontece numa parte reflete em outra. Como? Eu não sei. Mas haverá um uso coletivo, positivo ou negativo, de direita ou de esquerda, sobre os resultados. Tanto que houve um movimento violento contra a Copa do Mundo que acabou. Hoje, vindo da Gávea para Niterói, eu vi um movimento gigante de bandeiras nacionais. A Copa do Mundo está se realizando dentro da nossa casa.

O Globo: É curioso porque na época da preparação para a primeira Copa do Mundo no Brasil, o então presidente Eurico Gaspar Dutra tinha um programa desenvolvimentista que ficou conhecido como Plano Salte, que era um sigla que se referia a “saúde”, “alimentação”, “transporte” e “educação”. Ele tinha como objetivo melhorias em áreas que até hoje são problemáticas e que apareceram como demandas das manifestações. São os mesmos problemas. A gente piorou?

DaMatta: Com certeza. Quando eu fui ver Brasil e Iugoslávia em 1950, nós saímos da Rua do Ingá, em Niterói, e fomos até o Maracanã, de bonde e de barca. Tudo transporte público. Fomos até o estádio e compramos as entradas, não tinha essa palhaçada com cambista. Meu pai foi de paletó, os filhos de camisa esporte. Depois voltamos da mesma maneira, de transporte público. E naquela época, quem não ia ao jogo, ficava em casa ouvindo no rádio. Ou então saíam para algumas praças, onde tinham alto-falantes transmitindo as rádios.

O Globo: Naquela época, os jogadores já tinham esse status de heróis da nação?

DaMatta: Mas são os heróis que nós temos. Se você se sentar numa sala e pedir para dez pessoas escreverem os nomes de cinco heróis brasileiros, ninguém vai conseguir escrever. Os heróis são figuras modelo. E o futebol é talento puro, ninguém vai aparelhar um time de futebol. Você não pode ajudar amigos e parantes no futebol, porque se não houver talento você vai perder o jogo. A luminosidade que surge nos jogadores é talento em estado bruto, não é por causa da cor, do nome de família, do nível de instrução, da amizade ou do partido político. O futebol ignora tudo aquilo que o Brasil até hoje usa para hierarquizar a sociedade brasileira. É apenas talento. Se não tiver talento, não consegue jogar.

O Globo: Independentemente do resultado contra do jogo Brasil e Alemanha, o país sai fortalecido da competição?

DaMatta: Certamente. Uma coisa que o futebol ensina, e essa mensagem é muito importante para que os políticos leiam, é que, numa sociedade efetivamente democrática e igualitária, não há um ganhador para sempre. Existem ganhadores e perdedores. Ganhar e perder são elementos constitutivos da estrutura de uma competição.