Em entrevista à coluna Conte algo que eu não sei, de O Globo, o Acadêmico e químico Angelo da Cunha Pinto fala sobre o seu trabalho de pesquisar remédios na natureza e produzir um banco de dados de extratos de uso terapêutico, na UFRJ.
“Sou químico, tenho 65 anos, e estudo a biodiversidade vegetal brasileira em busca de substâncias de alto valor agregado, principalmente fármacos. Mais do que nunca tenho que acreditar no meu trabalho. Tive um câncer que produziu metástase no pulmão e na coluna, e hoje faço quimioterapia com Taxol, um remédio derivado de um planta, o Teixo do Pacífico. Estou me aproveitando daquilo que procuro desenvolver. De todos os anticancerígenos e antibióticos, 30% são naturais”.
Conte algo que não sei
As plantas devem ser olhadas não só pela beleza, mas como biofábricas altamente especializadas que produzem substâncias que devem ser aproveitadas pelo homem. Até hoje, cerca de 30% dos fármacos da terapêutica médica são obtidos, derivados ou sintetizados a partir de produtos naturais
Qual o tamanho da nossa farmácia a céu aberto?
O Brasil abriga um quinto do total global das plantas superiores e, no entanto, só tem um fármaco industrializado, que é o Achéflan, um anti-inflamatório de uso tópico, derivado da erva baleeira. Nossa produção está restrita aos cosméticos e suplementos alimentares. Não chega na indústria farmacêutica, fica nas prateleiras de produtos naturais.
Mas há patentes de remédios estrangeiros que usam nossa matéria prima…
Os colonizadores foram se apropriando de tudo. O maior roubo da história é da Hevea brasiliensis, a borracha que os ingleses levaram para a Malásia. Mas o Brasil também se beneficiou em outros casos. Os portugueses trouxeram tudo para cá: manga, cana de açúcar, café, jaca… Dentre as nossas principais exportações, a soja veio da China. O milho é do México. Todos os grandes naturalistas vinham para o Brasil para coleta de plantas e animais. O interesse começa com a carta de Pero Vaz de caminha, que relatou a nudez das índias e a coloração dos índios. O vermelho vinha do urucum e o negro, da seiva do jenipapo que hoje é usada em tatuagens.
O olhar estrangeiro é predador ou revelador da nossa riqueza?
O que chamam de biopirataria hoje não é mais um grande problema. Qualquer substância que entre na clínica você tem um rastreamento dela. Se veio de uma planta brasileira, pode provar e buscar reparação numa grande questão internacional. A legislação brasileira não permite a patente de nenhuma espécie da flora. Mas, se eu trabalho em alguma planta usada por determinadas comunidades tem que haver repartição dos direitos caso surja algum produto. Como na extração natural é muito difícil de haver o controle da qualidade que se consegue com produtos sintéticos, a indústria passa a se desinteressar por isso. Se seu alvo de estudo for uma única substância, vai procurar sintetizá-la artificialmente para não pagar a ninguém.
Mas a descoberta do princípio ativo não tem dono?
Se os resultados do estudo são publicados na comunidade internacional, eles são de domínio público. É o que fazemos até hoje. O estado de São Paulo criou uma rede virtual para sequenciar o DNA de uma bactéria que causava o amarelinho, uma doença que traz prejuízo incrível ao cultivo da laranja. Os resultados foram publicados na capa da Nature em 2000. A partir daí, surgiram, pequenas empresas que se dedicam ao estudo de sequenciamento genético e de novos fármacos. É o modelo para biodiversidade: negociar o conhecimento agregado.
O que se tem feito no Rio?
Hoje temos um grande projeto, o &Flora, para o levantamento dos 8% que restam da Mata Atlântica no Rio. Estamos construindo um banco de extratos dessas plantas, que nos permite estudar seu uso contra doenças, que não tem medicamentos convencionais e alguns tipos de vírus, como o da Aids. A UFRJ adquiriu um banco de extratos com 12 mil extratos que vai ser disponibilizado para a comunidade científica.
Como era fazer ciência na ditadura sob a tutela dos militares que você combatia?
Queria fazer pesquisa e o IME (Instituto Militar de Engenharia) era o melhor lugar. Já tinha sido preso duas vezes por participar do movimento estudantil antes de passar para o mestrado. Fiquei numa ilha da Marinha com o pessoal do teatro. Hoje sou tratado como maior respeito e tenho prazer de trabalhar aqui.
Como beneficiar o maior número de pessoas sem prejudicar comunidade que produziu aquele conhecimento?
Isso já é bem definido pela legislação internacional. O problema é a dificuldade criada aqui no Brasil. Para eu estudar uma planta, tenho que ter a permissão do ministério do Meio Ambiente. Você não pode ter um banco que seja quase um almoxarifado intocável
O poder das plantas floresce na comunidade e dá fruto nas corporações?
É uma visão ultrapassada, temos que mudar o paradigma para aproveitar tanto o conhecimento tradicional quanto o conhecimento tecnológico disponível nas grandes corporações. Só se avança com esse equilíbrio. O Brasil precisa de um grande projeto para a biodiversidade. O grande exemplo vem do governo Vargas que criou os soldados da borracha. Agora, devemos estimular a ida de doutores para as regiões Norte e Centro Oeste, que têm uma grande carência nesses estudos. Hoje, o número de pesquisadores em toda a região Norte é o mesmo que se encontra numa grande universidade do Sudeste. Desde o descobrimento, que fica todo mundo no litoral. Nunca avançamos para o interior.
O suposto atraso dos índios brasileiros, que viviam da conservação na natureza, é o paradigma do futuro?
Temos que aprender com eles, a começar pela famosa terra preta, altamente rica em nutrientes. A gente começa a perceber que eles tinham e têm um conhecimento que foge à nossa visão ocidental clássica. Certas tribos africanas usavam plantas para caça que tinham a mesma substância extraídas de espécies diferentes pelos índios sul-americanos. Como eles faziam essa seleção? O conhecimento ancestral é fundamental para quem trabalha com química de produtos naturais.
A perda de espécies causada pelo desmatamento é uma viagem sem volta?
Há uma grande dramaticidade nisso. Em vez de ficar lamentando, temos que aproveitar aquilo que temos. A nossa grande perda é não extrair tudo que nossa biodiversidade oferece. Nós somos os grandes culpados da situação atual.
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