Do ponto de vista formal, os problemas profissionais enfrentados pela mulher durante a gravidez foram resolvidos com a criação da licença maternidade. Mesmo assim, sabe-se que, na prática, a maternidade ainda é uma das principais questões a serem debatidas na busca por uma justa divisão sexual do trabalho. Inseridas ou não no mercado, em muitos países elas enfrentam jornadas duplas – e até triplas – para conciliarem suas profissões com os cuidados da família. Embora já tenha sido uma das lutas centrais dos movimentos feministas, a reivindicação saiu de moda e grande parte dos países ainda não oferece serviços seguros e eficientes de creche. Por conta disso, o retardamento da maternidade se tornou um fato em muitos lugares, influindo diretamente no decréscimo de suas curvas de natalidade.
Na Suécia, por exemplo, as creches funcionam de 8 às 17h, mas os responsáveis são claramente encorajados a buscar as crianças duas horas antes disso. Membro titular da ABC, a especialista em fisiologia cardiovascular Eliete Bouskela morou algum tempo no país e teve de lidar com olhares de censura por usufruir de todo o horário de funcionamento da instituição onde deixava sua filha. Mas outros momentos de discriminação já haviam acompanhado sua vida no exterior ainda durante a gravidez.
À esquerda, Belita Koiller, do Instituto de Física da UFRJ; à direita, a também Acadêmica Eliete Bouskela
Lá, as mulheres têm direito a ficar até um ano sem trabalhar, tendo seu salário mantido pelo governo, após o nascimento de um bebê. Por ser tempo demais para qualquer profissão com um mínimo de competitividade, esses meses podem ser divididos entre o casal. E foi essa a opção de Bouskela. Seu marido, que exercia uma posição de chefia em uma companhia farmacêutica sueca, foi mal visto por essa escolha. Mesmo assim, para o também Acadêmico Luiz Bevilacqua – que, como a professora, esteve presente em simpósio da Academia Brasileira de Ciencias (ABC) sobre o fortalecimento da presença da mulher na ciência brasileira – o simples fato de ser casada com um pesquisador já pode facilitar as coisas. “O cenário é melhor quando se trata de um casal cientista, porque os dois entendem a importância da carreira e há certa cooperação entre eles”, explica.
Por fim, ao retornar ao Brasil para assumir a área de fisiologia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), foi solicitado à Eliete um exame de urina que comprovasse que ela não estava grávida. “Eu fiquei indignada. Perguntei se também exigiam que os homens assinassem um documento declarando que não engravidariam ninguém”, recorda. Mas, apesar de configurar um tipo de discriminação, Bevilacqua diz acreditar que ela se dá menos em função do gênero e mais do próprio sistema de mercado capitalista. “Hoje isso está um pouco superado, mas, quando eu comecei a minha função de engenheiro, entendia-se que a mulher teria filhos e se afastaria do trabalho por um tempo, o que geraria menos lucro para as empresas. Isso era levado muito mais em conta do que a sua capacidade do profissional”, justifica.
Para Luiz Bevilacqua, a discriminação de gênero também é mais forte fora do Brasil
Passando do âmbito empresarial ao acadêmico, são notáveis os esforços de algumas instituições para garantir às mulheres seus direitos no momento da maternidade. Em 2010, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) instituiu a prorrogação das bolsas de mestrado e doutorado em caso de gravidez. Segundo Nilcéa Freire, coordenadora de uma das sessões do evento promovido pela ABC, essa medida se estendeu, no ano passado, para as bolsas de pós-doutorado e de produtividade em pesquisa, também conhecida como bolsa PQ. “Foi um avanço enorme começar a trabalhar as especificidades de gênero dentro do contexto da concessão de benefícios”, comemora a representante da Fundação Ford no Brasil.
Yraima Cordeiro é membro afiliado da ABC desde 2012; em 2006, ela recebeu o prêmio ABC/LOréal/Unesco Para Mulheres na Ciência
Ainda assim, a produtividade das pesquisadoras brasileiras apresenta uma queda considerável durante a maternidade, principalmente no período de amamentação. Inseguras na hora de deixar seus filhos aos cuidados de outra pessoa, elas se tornam menos competitiva no mercado de trabalho. E, para Yraima Cordeiro, essa insegurança talvez seja resultado de uma cultura fortemente pautada pelos preceitos cristãos. Professora da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ela opina: “Apesar do Estado ser laico, vivemos em uma sociedade extremamente cristã e muitas vezes a religião nos coloca naquele papel de suporte e apoio à família.”
E aí entra a noção de culpa judaico-cristã, chamada de síndrome de inadimplência por Nilcéa Freire. Segundo a pesquisadora, as mulheres estão sempre com a angustiante sensação de estarem “devendo alguma coisa”, seja um artigo fora do prazo ou o Natal que chega e elas ainda não tiveram tempo de comprar sequer um alfinete. “Para mim, essa síndrome decorre do principal desafio que nós temos: encontrar uma forma de equilibrar as tarefas da produção e da reprodução do viver”, afirma.
Mas, para a Acadêmica Elisa Reis, essa questão deve ser relativizada. De acordo com ela, existe certo consenso de que as noções básicas de igualdade e individualismo vêm exatamente da cultura judaico-cristã; da ideia de que todo mundo tem alma. Embora não seja religiosa, a professora titular da UFRJ argumentou que esse sentimento não vem só da tradição religiosa. “O freudianismo, por exemplo, tem uma responsabilidade enorme em nos incutir essa noção de culpa. Sempre dizemos que mudar é difícil, mas manter também o é. As coisas não se mantêm iguais por inércia; elas continuam assim porque há interesses que reproduzem determinadas práticas”, alerta.
Representante do CNPq no encontro, Betina Lima também creditou a queda de produção das mulheres durante a maternidade a fatores externos à religião. Para ela, é necessário “não só que as mulheres estejam socializadas para querer mais na vida pública e profissional, mas que os homens também queiram mais da dita vida privada e pessoal”. E isso, em sua visão, é muito difícil sem uma licença paternidade um pouco mais longa.