Quando pequenos, a maioria dos meninos costuma se interessar por carrinhos e jogos de luta. As meninas, por sua vez, se divertem usando maquiagem e roupas das mães ou fingindo, elas mesmas, já terem suas próprias filhas: as bonecas Barbie, Polly e Susi, dependendo da geração e preferência pessoal. O motivo dessa opção divide opiniões entre os especialistas em gênero. Para alguns, escolhas como essas são reflexo de diferenças naturais entre homens e mulheres. Para outros, não se tratam de escolhas tão individualizadas assim. “A sociedade nos educa e impõe certas coisas. Ao ignorar isso, corremos o risco de entrar no famoso labirinto de cristal“, destacou a socióloga Elisa Reis durante uma das sessões do simpósio “Fortalecendo a presença das mulheres na ciência brasileira”, promovido pela ABC no fim de 2013.
Elisa Reis teme que a naturalização das diferenças reflita em atitudes discriminatórias
Elisa coordena o Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Desigualdade, iniciativa vinculada à Universidade Federal do Rio de Janeiro. Segundo ela, a questão de gênero sempre passa pelas discussões do grupo. Ao avaliar o primeiro painel do evento na Academia, a professora evidenciou exatamente a essa tensão entre opiniões. Mesmo concordando com a existência de certas distinções naturais entre os dois sexos, Elisa alerta que muitas dessas diferenças são social e culturalmente construídas.
E aí entra a problemática das referências. Ao assistir televisão, as crianças veem em atrizes – maquiadas, perfumadas e magras – o grande exemplo de mulher bem sucedida. Quantos anúncios mostram pesquisadoras de sucesso em seus ambientes de trabalho? Certamente não muitos. Os modelos masculinos também não fogem ao estereótipo e isso contribui para que, mesmo ingressando em maior número nas universidades brasileiras, as meninas se destinem a cursos bem definidos.
De acordo com o último censo da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), são mulheres 90% dos estudantes de serviço social e pedagogia. Em enfermagem elas representam 83% do total e em psicologia, fisioterapia e fonoaudiologia, 82%. As porcentagens também são altas em gestão de pessoas, recursos humanos, letras e odontologia. A situação se inverte em cursos como economia (38%), física (32%) e matemática (32%), chegando a níveis alarmantes em engenharia (18%). Esses e outros dados foram compartilhados por Maria Margaret Lopes, coordenadora do Núcleo de Estudos de Gênero da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) que também participou do simpósio.
Ganhadora do Prêmio LOréal/Unesco Para Mulheres na Ciência do ano de 2001, a geneticista Mayana Zatz foi uma das conferencistas cuja opinião diferiu das falas de Elisa Reis e Maria Margaret Lopes. Em sua visão, as mulheres preferem determinadas áreas, como as de ciências biológicas e biomédicas, “talvez por uma tendência genética, um instinto materno de cuidar que se relaciona à área da saúde”. A explicação, para o Acadêmico Luiz Bevilacqua, também passa por aí. De acordo com ele, elas pensam diferente do homem e isso não significa dizer que um seja melhor do que o outro. “No caso feminino, os dois hemisférios cerebrais se comunicam mais. Seu modo de pensar, portanto, é mais criativo e intuitivo”, justifica.
Enfática em suas opiniões, Elisa Reis continuou discordando dessa percepção. Para a professora, generalizações indevidas podem levar a uma perigosa naturalização das diferenças. A mesma linha de raciocínio segue Eva Alterman Blay, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP). “Eu acho que não temos esse instinto, mas somos socializadas para determinadas tarefas. A sociedade espera que você se case e tenha filhos”, opina.
As palestrantes Mayana Zatz e Eva Alterman Blay
Mas o debate não parou por aí. Uma das idealizadoras da Olimpíada Brasileira de Matemática para as Escolas Públicas (Obmep), projeto que já mobiliza mais de 20 milhões de estudantes ao redor do país, Sueli Druck levantou um aspecto cultural de grande perigo: a erotização precoce das meninas brasileiras. Diretora da Obmep por sete anos, a professora inicialmente não se preocupava com a questão do gênero; tinha outras prioridades. “O que me inquietava era a condição terrível, principalmente nas instituições públicas, do ensino da matemática no Brasil. Só que os números são tão gritantes que é impossível não prestar atenção a esse aspecto”, explica.
A Olimpíada se divide em três níveis. De acordo com Sueli, no primeiro, que abarca a quinta e sexta séries do ensino fundamental, 45% dos premiados são meninas. Já no segundo nível, em que competem alunos da sétima e oitava séries, essa porcentagem é significativamente menor: apenas 20% do total. Por fim, no ensino médio, cujos estudantes compõem o último dos níveis, o número de meninas vencedoras não chega a 8%. O que acontece durante esse período com o interesse das meninas com talento para a matemática durante esse período?
Para a palestrante, além de seus próprios pais frequentemente contestarem o interesse das filhas pela disciplina, a erotização volta a figurar como um problema. Isso porque, ao conversar com algumas alunas, grande parte delas revelou que ser boa em matemática as prejudicava na hora da paquera. “Mesmo depois de tantos séculos, o estudo da matemática continua estigmatizado”, lamenta Sueli.