A histórica luta feminina pela igualdade de gêneros não é novidade para ninguém. Tampouco são raras as discussões sobre diferença salarial entre homens e mulheres que ocupam o mesmo cargo profissional e a busca pelo fim dessa espécie de discriminação. Mas e quando se trata de ciência? Considerar a questão dos gêneros deixa de ser importante? Para a socióloga Alice Abreu, é claro que não. “O acesso a uma educação científica de qualidade é direito de todos”, afirma. Além disso, ao abrir mão de suas mulheres, a sociedade desiste também de mais de 50% de sua capacidade intelectual para o campo da ciência. E foi pensando nisso que a Academia Brasileira de Ciências (ABC) promoveu um evento exclusivamente destinado ao tema. Em dezembro de 2013, as experiências, dificuldades, percepções e sugestões de importantes cientistas brasileiras foram debatidas durante o simpósio “Fortalecendo a presença das mulheres na ciência brasileira”.
Esta iniciativa pretende contribuir para a mudança dessa realidade, o que se mostra realmente necessário quando vemos, por exemplo o próprio quadro da ABC. O número de mulheres na Academia demonstra resquícios de uma cultura patriarcal de desigualdades. Mas, felizmente, a situação está melhorando. De acordo com Jacob Palis, presidente da organização, a porcentagem de pesquisadoras dentre o total de Acadêmicos gira em torno de 15%. Embora ainda esteja longe do ideal, vale lembrar que a taxa brasileira já ultrapassou os 5% da Royal Society, instituição britânica que virou referência de qualidade científica. E o mais curioso é que dentre os jovens pesquisadores da ABC, essa proporção é bem maior. “Com os afiliados conseguimos alcançar um patamar de 25% de cientistas mulheres”, aponta Palis. A categoria de membros afiliados da ABC foi criada em 2007 e elege anualmente cinco jovens cientistas de excelência com menos de 40 anos de cada região do país, que ficam ligados à Academia por cinco anos.
Jacob Palis reforça o engajamento da ABC com a causa feminina
Avanços significativos são resultado de muitos anos de luta. No Brasil, só em 1827 foi promulgada a primeira lei sobre a educação feminina. Ela permitia às mulheres o acesso a escolas do primeiro grau, mas continuava a proibir sua presença em níveis mais elevados. Apenas em 1879 o Governo Imperial autorizaria que elas frequentassem o ensino superior. E somente quase dez anos mais tarde, em 1887, diplomou-se a primeira mulher médica brasileira. Seu nome era Rita Lobato, da Faculdade de Medicina de Salvador, na Bahia. Embora envolta nos panos da ditadura militar, a década de 70 foi um marco para o feminismo brasileiro. No resto do mundo, mulheres também decidiam dar um basta às opressões que sofriam; 1975, por exemplo, foi declarado Ano Internacional da Mulher pela Organização das Nações Unidas (ONU).
Hoje, a bibliografia sobre gênero e ciência é cada vez mais robusta e diversificada. Existem – segundo a socióloga Alice Abreu, uma das palestrantes convidadas pela ABC para discutir a temática – desde estudos quantitativos de segregação vertical e horizontal no mercado de trabalho até pesquisas sobre os processos sociais que levam às diferenças de posições entre homens e mulheres na carreira científica. De acordo com a professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), muito conhecimento sobre o tema foi acumulado nos últimos dez ou 15 anos. Mesmo assim, ainda são muitos os desafios a serem enfrentados.
Na avaliação da especialista, o longo caminho para trazer a questão do gênero ao centro dos debates foi bem sucedida. Antes disso, ela explica, “o mundo era visto pelas lentes da assim chamada neutralidade científica e o gênero era, portanto, invisível e desconsiderado”. Em outras palavras, isso significa que, enquanto a ciência era vista como puramente neutra e objetiva, era difícil introduzir no debate outros fatores de análise, como a questão de gênero.
Alice Abreu é professora emérita da UFRJ desde 2009
Para Maria Margaret Lopes, coordenadora do Núcleo de Estudos de Gênero da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é comum estimar a ciência e a tecnologia (C&T) como áreas epistemologicamente superiores. A geóloga, que também esteve presente no simpósio da ABC, ainda destaca não se tratar apenas da inclusão de um maior número de mulheres no campo. Para a conferencista Vera Lúcia Lemos Soares, que atua como subsecretária de Articulação Institucional e Ações Temáticas da Secretaria de Políticas para as Mulheres, existem três momentos a serem pensados na carreira de uma cientista mulher: o acesso, a permanência e a ascensão. E, de fato, a paridade entre gêneros só será plenamente resolvida quando deixar de ser uma questão.
Localmente, cada uma em seu espaço de influência, ela propõe a adoção de práticas pragmáticas, como a demanda por paridade de gêneros nos muitos comitês, conselhos e diretorias dos quais participam cada pesquisadora. Já em uma esfera macro, a Acadêmica identifica nas legislações a garantia de colocar no mapa o imenso repositório de talentos subutilizados ou simplesmente não utilizados para a produção de conhecimento científico. “Tendo em vista que a distribuição de talentos e aptidões é aleatória, quantas mulheres poderiam estar prestando contribuições inestimáveis ao desenvolvimento socioeconômico, à solução de problemas ambientais e à cura de enfermidades?”, indaga. Muitas.
Só não se pode esquecer que é imprescindível contemplar as especificidades da mulher brasileira. E que são muitas, vale pontuar. “Mulheres negras, mulheres do campo ou da floresta, mulheres jovens e idosas, mulheres lésbicas, mulheres indígenas, mulheres quilombolas, mulheres ribeirinhas, mulheres com deficiência e as demais mulheres dos povos e comunidades tradicionais do país”, concluiu Vera Lúcia.