O encontro “UK-Brazil-Chile Frontiers of Science”, realizado em Chicheley Hal, propriedade da Royal Society nos arredores de Londres, foi organizado num formato bem dinâmico. Seis sessões abordaram temas estratégicos, de interesse das três nações envolvidas – e, certamente, de muitas outras também. As questões científicas que foram destacadas envolveram biodiversidade, biologia de plantas e biocombustíveis, ciências espaciais, mudanças climáticas, novos materiais e nanociência, saúde humana. Além dessas sessões, foram realizadas duas sessões de flash posters, onde mais 26 cientistas dos três países apresentaram suas linhas de pesquisa em apenas dois slides, falando de três a cinco minutos. A ideia era agilizar, para provocar perguntas e fomentar colaborações científicas.
A sessão sobre saúde humana foi coordenada pelo biomédico da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro afiliado da ABC Ricardo Fujiwara (à esquerda na foto), junto com Julius Hafalla (ao seu lado), pesquisador da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres. Os palestrantes convidados foram Daniella Bartholomeu, também bióloga da UFMG e ex-afiliada da ABC eleita para o período de 2008 a 2012, e Matthew Rogers (à direita na foto), pesquisador da mesma instituição de Hafalla.
O tema escolhido foram as doenças negligenciadas, nome que se refere a um conjunto de doenças causadas por agentes infecciosos e parasitários (vírus, bactérias, protozoários e helmintos) que são endêmicas em populações de baixa renda. São consideradas negligenciadas a doença de Chagas, leishmanioses, malária, esquistossomose, hanseníase, tuberculose, dengue, febre amarela, ascaríase, ancilostomíase, entre outras. O adjetivo “negligenciada” foi originalmente proposto referindo-se ao fato de que essas doenças não despertam o interesse das grandes empresas farmacêuticas multinacionais, que não veem nessas doenças compradores potenciais de novos medicamentos, e ao pouco financiamento pelas agências de fomento para o seu estudo.

Ampliando os recursos para diagnosticar corretamente a doença de Chagas
De acordo com o estudo realizado pela ABC intitulado Doenças Negligenciadas, a doença de Chagas ainda infecta oito milhões de pessoas no mundo, das quais 23% no Brasil, apesar do avanço significativo no controle da infecção vetorial, causada pelo barbeiro, e por transfusão de sangue. Estima-se que apenas 0,5% destes oito milhões recebam tratamento. O número de mortes é hoje de cerca de quatorze mil por ano – a doença de Chagas ainda constitui a doença parasitária responsável pelo maior número de mortes na América Latina, superando a malária.

Daniella Bartholomeu abordou o tema, falando sobre sua pesquisa, que é voltada para o diagnóstico da doença de Chagas. As ferramentas desenvolvidas para essa doença, segundo ela, também podem ser usadas para outras doenças. “O problema do T. cruzi é que há muito polimorfismo nas populações de parasitas. A resposta do sistema imune frente à infecção com cada uma das linhagens é muito variada”, explicou.
Até agora são conhecidas seis linhagens do T. cruzi, mas os portadores podem reagir de forma diferente à infecção com a mesma linhagem. Além dessa dificuldade, há outra bem significativa: a coinfecção. “É muito comum que a pessoa portadora de uma dessas doenças seja também portadora de alguma outra, pois os parasitas causadores vivem no mesmo ambiente. No caso da doença de Chagas, é frequente que ocorra conjuntamente a Leishmania ou o Trypanosoma rangeli. Então, se não há o diagnóstico correto, o paciente pode ser tratado para uma doença e o tratamento afetar negativamente a outra, acentuando-a ou mascarando-a.”
Daniella explica que muitos pacientes de doença de Chagas não tem manifestação clínica, alguns apresentam comprometimento cardíaco e outros a forma intestinal. “Diferentes indivíduos apresentam diferentes manifestações. É preciso fazer a correlação entre a linhagem de T.cruzi e as manifestações clínicas, mas até hoje nenhum método permite fazer esta correlação em larga escala. Os exames existentes demoram muito a oferecer resultados e não são precisos. Já chegamos a um grupo de antígenos que identifica três linhagens, precisamos agora ampliar esse painel”, relata Daniella.
O problema, portanto, é multifatorial. A ideia de Daniella e seu grupo de pesquisa é partir para um antígeno que discrimine diferentes linhagens, bem como antígenos conservados entre as linhagens, visando o desenvolvimento de vacinas terapêuticas, ou seja, para serem aplicadas nas pessoas já infectadas, diminuindo a morbidade.

Estudando a resposta imunológica a protozoários e parasitos
As várias formas clínicas de leishmaniose são causadas por cerca de vinte espécies do protozoário do gênero Leishmania. Algumas formas cutâneas podem levar a grandes deformações e a forma visceral é fatal quando não tratada. Existem hoje cerca de doze milhões de pessoas infectadas no mundo, sendo que o Brasil, ao lado de alguns países africanos e asiáticos, é um dos cinco países mais afetados. Na América Latina, cerca de 90% dos casos de leishmaniose ocorrem no Brasil.
Ricardo Fujiwara se dedica, especialmente, ao estudo de protozoários (Leishmania) e parasitos (helmintos). Ele estuda a resposta imunológica, buscando saber por que diferentes indivíduos respondem de formas diversas ao mesmo invasor. “Muitas vezes, o individuo infectado tem resposta imunológica, mas esta não é suficiente. O que o parasito faz para sobreviver no hospedeiro? Será que ele tem uma contra-defesa? Eles coevoluem com os seres humanos há milhares de anos, queremos desequilibrar essa relação”, explica Fujiwara. O Acadêmico avalia que é possível causar esse desequilíbrio a nosso favor através do desenvolvimento de uma vacina. “O Brasil já tem conhecimento adquirido para isso, temos capacidade técnica e infraestrutura para desenvolver vacinas sem depender das grandes empresas farmacêuticas.”
Um aspecto importante abordado por Fujiwara foi a interação necessária com as ciências sociais. Ele explicou que essas doenças em si não matam, a não ser a forma visceral da leishmaniose, quando não tratada. Mas prejudicam o desenvolvimento das crianças, por exemplo, tanto físico como cognitivo. “A co-infecção, no entanto, pode ser fatal. Um experimento de laboratório mostrou que uma coinfecção por Ascaris e por um vírus, como o do sarampo, num animal de laboratório mata. E o que a gente mais vê em lugares remotos é a ocorrência de Leishmania, por exemplo, junto com diabetes, com alcoolismo, enfim…”
A educação da população e a luta por melhores condições sanitárias podem ajudar a prevenir as infestações por parasitas. “Não temos a pretensão de erradicar essas doenç
as, mas de reduzir a morbidade.”O pesquisador explicou que um vírus é composto de oito proteínas, a Leishmania por oito mil e o helminto, 13.000. “Não adianta bloquear uma proteína, porque tem 15 ou 20 outras que exercem a mesma função. É difícil erradicar, mas pode haver controle. O indivíduo pode passar a não se reinfectar em três meses, como é comum atualmente, pode demorar muito mais tempo ou ele mesmo eliminar o parasito, se a carga for baixa.”

Para Fujiwara, é na busca por soluções que a cooperação internacional e multidisciplinar se mostra mais enriquecedora. “Muitas vezes, duas ou três pessoas de países diferentes fazem suas pesquisas sobre um mesmo tema, mas focando nos problemas. A interação estimula a busca por soluções diferentes.”Ele fez questão de destacar que, embora seja uma doença típica de países tropicais, a Leishmania foi descrita por dois pesquisadores britânicos que trabalhavam na índia, Leishman e Donovan. “A escola de parasitologia inglesa é muito tradicional. Além disso, em função da globalização, a ocorrência das doenças negligenciadas nos países desenvolvidos está crescendo, infelizmente. Esse é mais um estímulo para se promover parcerias na área.”
Conclusões
Para o co-coordenador da sessão, Julius Haffala, o encontro foi bastante proveitoso. Ele trabalha com malária e não conhecia Fujiwara, que o conhecia apenas por publicações. Haffala ficou muito satisfeito com a palestra de Daniella, que considerou ótima, assim como a de Matthew Rogers, seu colega na Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres. Rogers estuda Leishmania e seu respectivo inseto vetor, o flebotomíneo. Haffala relatou que já participou de encontros da série Frontiers of Science na Rússia e na China, organizados pela Royal Society em parceria com as Academias dos outros países, mas é a primeira vez que atua na coordenação. “Acho que é uma grande oportunidade para jovens cientistas do mundo inteiro se conhecerem e interagirem, se vendo como potenciais parceiros de outros cientistas de ponta em áreas diferentes das suas.”
Para os afiliados da ABC – que se declararam muito honrados por terem sido convidados a integrar um grupo tão seleto de cientistas -, a sessão provocou perguntas interessantes da plateia, composta por mais 52 pesquisadores de outras áreas da ciência e uns poucos convidados. Ambos concordaram que é um desafio importante aprender a falar de forma clara sobre sua pesquisa para cientistas de outras áreas. “Muitas vezes estamos muito mergulhados no nosso problema e o olhar do outro, vindo de fora da área, pode dar um outro foco e abrir outra porta. É o caminho para que se consiga estabelecer cooperação científica multidisciplinar”, destacou Daniella Bartholomeu.
Conheça os jovens cientistas afiliados e ex-afiliados da ABC
Daniella Castanheira Bartholomeu cursou graduação em ciências biológicas pela Universidade Federal de VIçosa (UFV), com doutorado em bioquímica pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pós-doutorado realizado no Institute of Genomic Research (EUA), completado em 2005. Atua no Departamento de Parasitologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e seu trabalho é focado no estudo da variabilidade genética do parasita Trypanosoma cruzi e na abordagem genômica para identificar novos alvos profiláticos e antígenos nas doenças parasitárias. Foi eleita no primeiro grupo de Afiliados da ABC, quando a categoria foi criada, com mandato de 2008 a 2012.
Ricardo Toshio Fujiwara foi eleito membro afiliado da ABC para o período 2012-2016. Atua na área de imunologia, voltado para o desenvolvimento de novas formas de controle de doenças parasitárias, tanto na busca de novos fármacos como no desenvolvimento de vacinas. Seu principal interesse é compreender a interação parasita-hospedeiro, particularmente os mecanismos de proteção do hospedeiro. Cursou a graduação em ciências biológicas/modalidade médica, na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), mestrado e doutorado em parasitologia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pós-doutorado na George Washington University (EUA). Atualmente, é professor adjunto no Departamento de Parasitologia da UFMG.